.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

24/07/2017

amo-te porque existes dentro de mim











apenas uma pequena nota sobre a celebração dos meus trinta e três anos de casado – o casamento é um compromisso de amor entre duas pessoa que juram cuidarem-se até que a morte os separe – tudo o que sobra deriva desta única premissa: o amor – mas para os homens é muito mais do que um compromisso [quase sempre] selado aos olhos de deus. é essencialmente a libertação em definitivo da volubilidade jovem. da imaturidade. do egoísmo e da irresponsabilidade – essa libertação trouxe-me a segurança das noite que. com o seu efeito lento e repetitivo. me ensinou a crescer numa cumplicidade graciosa – nunca mais parei de crescer. tu também – prometi amar-te um dia de cada vez. assim fiz – ao fim do dia. depois de o sol se esconder. os lençóis abriam-se em seda. os chinelos descansam aos pares à entrada dos sonhos sempre compartidos – nunca tivemos medo do tempo. envelhecemos a saber sempre tanto um do outro – fecho os olhos. dou-te a mão e levo-te ao dia onde tudo começou e recapitulo o meu sim: sim. aceito esta mulher na alegria e na tristeza. na saúde e na doença. em todos os dias da nossa vida – nunca mais aquela igreja teve uma noiva tão bonita – acasalamos os olhos na eternidade. depois. ansiosos. unimos as mãos e trocamos um beijo que é todo feito de gratidão e entregamo-nos um ao outro sem medo de nenhuma palavra – os nosso filhos são a nossa graça e testemunhas de que os dias passaram a correr – o amor ensinou-nos a viver numa cumplicidade que também é aceitação – não me canso de te pedir perdão mesmo que na maior parte dos dias não ouças as minhas palavras – são mais de doze mil noites – amo-te porque existes dentro de mim




12/07/2017

deambulações noturnas XX




foto - sampaio rego




frequentemente o pensamento veste-se de mendigo – arrogante. o ego. só olha para os botões de ouro em camisa de seda – engano tremendo – muitas vezes. por baixo dos farrapos. existe a alma de um poeta privado de papel para cobrir a sua escrita em noites de aprumo literário



03/07/2017

no meu peito já não cabem gaivotas*




adelino ângelo



1.    a morte física ou da personalidade
a morte física de um corpo – declara-se o óbito quando é devidamente comprovada a inexistência de sinais vitais no corpo humano. isto é. a total falência dos seus órgãos e ausência completa de atividade cerebral – o médico-legista declara o término da vida apontando as possíveis causas da sua morte permitindo deste modo o desaparecimento do corpo para sempre do mundo sensível





2.    a morte emocional
aponto o meu foco para uma morte menos dolorosa. menos repentina. uma morte que vai acontecendo aos poucos. quase sempre a passo de tartaruga. tão lenta que o sistema de alerta cerebral acaba ludibriado pelo seu vagar: a morte emocional – esta. sem que na maior parte das vezes a ciência saiba explicar. acontece quando as defesas do corpo. num conluio terrorista. consente o descarnamento da sua rede de neurónios. permitindo deste modo. que a sua intimidade seja exposta a uma censura coletiva. insensível e muitas vezes injusta – dá-se então o curto-circuito. o cérebro atrofia. o corpo estremece de medo. de seguida estremece de um frio que é mais do que gelo. é um imobilismo aterrador perante o desconhecido – o corpo humano revela na plenitude total a sua fragilidade – só há uma forma de se proteger. imolar-se na indiferença. esquivar-se ao raciocínio e esconder-se no mais fundo dos silêncios que guarda em si – e ali fica. parado. quase sem respirar para enganar as chispas que agora lhe caiem dos olhos em forma de apatia letal – se hoje o mundo ruir este corpo já não lhe pertence – tudo que lhe sobrevive resiste num cosmos desocupado de emoção – do passado só reconhece o barulho. sempre impertinente. como se o mundo andasse numa fona irracional. noite e dia. sem descanso. arrastado por um pêndulo ritmado pela indiferença. a marcar os dias num desinteresse total pela quietação – e o que ainda sobrevive à derrocada sentimental é agora tratado com doses maciças de um químico afectivo. fertilizado no útero de uma mulher mais pura do que o céu – resistir é agora a única mensagem emitida por si e apenas para si – mas a sua vontade já não chega – o corpo por dentro contorce-se numa desordem impossível de acalmar. enquanto por fora. a ressaca é feita de imagens que já não quer compreender – tudo o que compreende acaba a magoar – não se quer compreender os livros. a religião. a família. o amor. a compaixão. a vida. os amigos. a razão porque se nasce ou porque se demora tanto tempo a morrer fisicamente – no caos da morte emocional já não é possível acontecer uma nova ordem. um novo recomeço. um novo ciclo de vida imaginado. traçado ou idealizado – corpo e mente degradam-se numa responsabilidade repartida. uma guerra sem vencedor em que cada uma das partes responsabiliza a outra pela falência emocional – cai por terra a regra da sobrevivência do mais adaptado – o corpo perde o medo à dor enquanto e cérebro perde a vontade de chorar. e assim. se esvaia de forma definitiva as frugais probabilidades de um regresso à lucidez – enquanto a memória se apaga seletivamente o silêncio vai-se alastrando ao corpo todo – o mundo já não é mensagem –  já nada traz movimento. as mãos recusam brigar enquanto os pés se recusam caminhar – apaga-se as origens para não a envergonhar. apaga-se o amigo para não o magoar. apaga-se a felicidade para não trazer saudade. apaga-se a ambição para evitar o erro. apaga-se o futuro porque só o presente existe. apaga-se a fé porque deus é um mito. e por fim. apaga-se a luz para que ninguém nos veja no escuro – louvar a vida é um provocação ao destino que pode terminar a qualquer momento tragicamente. basta que o mal vença o bem uma única vez – o mundo é um vício que nos pode matar de uma overdose – levanto os olhos abatidos e transformo o vinho em água. desmultiplico o pão. elimino a confiança e digo-lhe apontando para o céu: quem me seguir entrará no reino do inferno e viverá na dor para toda a eternidade – o silêncio pinga agora uma única pergunta: porque eu? – não há resposta – e todos os mortos emocionais perguntam o mesmo e a resposta é desespero: salve-se quem puder porque cada cabeça terá a sua sentença – fecham-se as portas por fora. correm-se as janelas para a escuridão e entrega-se o corpo à tortura até que a coragem se sobreponha à mágoa – é obrigatório expiar o erro – sofre corpo. sofre corpo porque só a dor torna o homem superior – um corpo doente acredita em tudo – mas para que interessa tudo isto se o corpo está a morrer de apatia – não interessa. não interessa e não interessa – o corpo que morre emocionalmente ignora os estímulos humanistas. os valores morais. a justiça. a liberdade. a fraternidade. a solidariedade. o amor pelo próxima mas acima de tudo o amor por si próprio – este corpo. desfalecido e esgotado. é forçado a refugiar-se em zonas escuras. proibidas. suicidas. onde prolifera a autocomiseração que não é mais do que uma viagem ao centro da dor inesgotável. indomável. selvática. impiedosa. acabando por se perder numa espiral de tragédias. de desastres e de fatalidades que raramente permitem a sua reutilização para uma nova vida – com a morte emocional perde-se tudo. até a dignidade – este mundo mata pela mentira. oferece a todos o que só pode dar a alguns – termino com uma frase do mia couto: “quem vive num labirinto, tem fome de caminhos”

- a terceira parte do texto será dedicada à morte terapêutica
- *título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu peito não cabem pássaros