.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

23/11/2013

púrpura




james ensor
 
 



acreditei que o luto estava encerrado. disse. acreditei – esta coisa da morte é estranha. quando menos se espera volta a viver como se nunca nada tivesse partido – se eu me compreendesse talvez pudesse escrever alguma coisa com mais sentido. mas não. não me compreendo. quiçá uma parte de mim está morta e quem escreve este rascunho de coisa nenhuma não é mais do que uma debilidade de uma parte do corpo que teima em escrever para viver

[quando saio à rua vejo tudo tão vivo. como se nunca nada tivesse partido do mundo)

tu que me estás a ler. sim tu. tu mesmo. achas que estou louco? sabes o que é a morte? sabes? já sei o que vais responder. vais dizer que sabes o que é a vida. e que a vida são pássaros a voar em bando e roupa a secar num estendal de uma varanda num quarto andar desabitado – mas quem me manda escrever? quem? neste dia de merda talvez o certo fosse mudar a terra naquele vaso que ninguém consegue ver – o bando de pássaros vê – um dia vou mostrar-vos – talvez depois de morto os sonhos possam florir anunciando a ressurreição de quem chegou sempre atrasado às palavras. no vaso que ninguém vê



21/11/2013

mário cesariny - é importante foder




mário cesariny




É IMPORTANTE FODER

É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que um tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d’ir urinar.

Isso eu o quis dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
“O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é
”Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até).

Também aquela do “outrora-agora” e do “ah poder ser tu sendo eu
” foi um bom trabalho.
Para continuar tudo co’a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.

Mário Cesariny



in “o virgem negra” assírio & alvim (1996)



07/11/2013

dissertação sobre os loucos moinhos de vento de dom quixote - 4 de 4




autor desconhecido 




no corpo. em local desconhecido. um minúsculo grupo de átomos ligados por  palavras fundem-se: nasce o texto – as trompetes rompem o silêncio e anunciam a nova obra do cavalheiro-artista. alegria – no céu. as nuvens desistem de profetizar tempestade e o céu dá agora lugar a um novo astro-anunciador. este. indica o caminho aos amantes da leitura para as novas do homem que escreve – a comprovação. em papel. é feita de vocábulos organizados pelo talento dos olhos que ouvem no silêncio – no corpo. a gente silenciosa parte para o descanso. recolhe à mudez das catacumbas do homem que guarda o cavalheiro. harmonia – é a hora do leitor apaixonado. é a hora da calmaria. é a hora da serenidade – tudo escrito à mão numa paixão abençoada pelo ouvir dos olhos  – “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo” [carlos drummond de andrade]. sinto – o momento é de paz – o cavalheiro feliz. digo. quase feliz. se não houvesse aquela dúvida persistente. talvez hoje fosse o dia certo para morrer acorrentado a uma palavra de gratidão – mas há – a dúvida perdura. sufoca o mundo das pessoas que guarda sem nome. das gaivotas. dos frutos. da sorte. dos animais. das árvores. da chuva. da criança protegida no colo da sua mãe. da bicicleta que nunca existiu. do vento norte. dos pesadelos das noites do nada. do corpo a pedir morte por um distúrbio mental – paranoico. vive num delírio permanente na procura da palavra que nunca existiu. mito – o cavalheiro que escreve vive doente na recapitulação de um texto que nunca está pronto. louco – lê. volta a ler. a calma a doer. e já vai em cem dias. e o coração a segredar pânico para um abismo de silêncio sepulcral – não! acabou. não leio mais. a perfeição é a morada dos deuses. só conheço a casa onde guardo o corpo. agonia – solidão. sofrimento. suicídio – chegou o momento. coragem. um dia tinha que ser. o cavalheiro resistirá. o homem resistirá. sobreviver é também escrever – o homem que escreve ali. relembro. os olhos também. o sentimento. o mesmo de sempre. de dentro. medo – tantos corpos parados a murmurar cada vez mais baixinho. e as noites que nunca foram noites em memória-dor. teimavam iluminar um caminho que nunca encontrei – louco. acreditei no silêncio das noites. e o corpo cada vez mais doente por não saber distinguir a loucura da ambição genuína. resignação – tudo parte. tudo na vida é assim. tudo tem um principio e um fim. eu também. o cavalheiro também – para trás uma porta aberta indica desespero: perder para sempre as palavras ouvidas com o olhar – mais medo – agora sou de quem não me conhece – sobra-me o corpo. tudo o resto nu. despido pela leitura – contratava a morte por um dia – mais medo. muito medo. terror. as palavras no leitor podem dizer o que nunca senti. mais terror – não há boa escrita sem consciência. sem angústia. sem gemido. sem arrependimento – amanhã sei que escreveria tudo diferente – morte e ressurreição – para o leitor a descoberta de novas vidas. ou talvez não. talvez assim assim. não importa. nunca haverá certezas para olhos que não ouvem – no cavalheiro. finalmente um momento silencioso anuncia descanso. acredita na mensagem das palavras. paz – o belo não tem pressa. aparece a cada leitura e descansa num marcador de livro: é ali que a vida parou. mais tarde será noutra página – tudo é agora texto. fundido em verdade ganhou existência terrena. como o verde das montanhas. como o mar batido a vento. como instrumento que trabalha a terra. como árvore de fruto. como flor a nascer e o fruto a aparecer – as palavras dão pão às bocas e a saciam a alma de quem as lê. tudo é real na escrita de quem escreve para falar. o cavalheiro mais não é do que um homem a lutar pela sobrevivência do homem que lhe oferece o corpo para se revelar – para o homem que lê a leitura é apenas a junção das letras de dois homens que se toleram para sobreviver – a boa leitura é invisível. sente-se – no corpo  o sentimento da leitura encurta o tempo e tudo é  como se hoje fosse o primeiro dia do universo – lá está adão. e eva. nus. desta vez sem parra. e o cavalheiro ali a ouvir tudo com os olhos. com  as árvores vergadas ao fruto – assim está o homem que escreve. vergado pelo peso das palavras – há um novo mundo sempre que há um novo texto e também um novo cavalheiro – o homem que escreve prolonga-se na procura da perfeição – a morte não sobrevive à imperfeição – escrever pouco e dizer tudo é delírio – para o cavalheiro o texto já não mais voltará a pertencer-lhe. a alma do homem-escritor perdida para sempre – e o humano que lê gosta e ama. não gosta e não ama – recorda e ama. não gosta e esquece – acredita e sonha. não acredita e o pesadelo acontece – sente verdade e acalenta. experimenta mentira e o gelo aparece – exigente. egoísta. quer sentir as palavras como se fossem suas. uma boca para compensar outra – sou também tu –“ser poeta é ser mais alto é ser maior” – uma vida à procura do belo-supremo e o tudo é quase sempre nada ao dia seguinte – as palavras de ontem estão mortas. o belo é agora arrependimento. a história repete-se. tudo que é palavra está amaldiçoado – tudo se resume a dar vida ao ouvir dos olhos – o escrevedor vive com o nascer das palavras e morre com o sono  


[4 de 4] – fim 




29/10/2013

dissertação sobre os loucos moinhos de vento de dom quixote - 3 de 4




jeans paladino





a morte do cavalheiro é também a morte das palavras que não sabe escrever. o suicídio é adiado pela honra. resistência – escrevo erro. ninguém me sabe pelo que escrevo. sou assim. retorcido para dentro do que penso. procuro - cavo o que é meu. e mais um buraco. e outro. e mais outro e todos os buracos ocupados com nada – como o vedor procura a água eu procuro as palavras. e tudo seco. e a vara aponta para todos os livros que guardo no tampo da secretária – cavalheiro. sonhador por dentro. louco por fora. e o homem no seu tino perfeito – e as celebridades ali. mesmo ao pé de um texto destruído por mãos de quem escreve por necessidade. nada – dostoiévski tem uma frase que ilustra bem esta loucura doentia de fazer do nada aconchego: “não podendo encontrar o seu lugar no mundo, o homem deixa de ser homem, tornando-se um sonhador” – tal como zero mais zero é igual a zero. também o nada mais nada é igual a nada. utopista – tudo isto é nada – quem sabe se a loucura de escrever nada não é mais que um sintoma de deficiência vitamínica no enredo do que quero escrever – um dia queixei-me a um médico de dores intensas nas articulações das falanges – disse-me que talvez fosse défice de cálcio. não há nada a fazer. ainda não há cura nem prevenção para esse mal – aconselhou-me a fazer muitos exercícios com os dedos. assim faço. agora todos os dias. as dores não param de aumentar. não sinto melhoras – tenho dias que as dores aliviam um pouco. nas mudanças de textos. sempre que começo algo novo sinto-me mais confiante e as dores ficam adormecidas enquanto o cavalheiro sonha. expectativa – é assim desde o dia que comecei a tentar escrever. dores. mais dores e mais dores –  desespero com o silêncio das mãos pregadas no papel que não pára de florir estrelícias. esperança – esta flor não necessita de sol direto para abrir em flor. ambição – os cavalheiros que escrevem precisam – o tempo de quem escreve é feito de escravidão. sentado. ali fico à espera do milagre dos olhos. do ver dentro. do ver fora. do sentir dentro. do sentir fora e rabisco o que vejo. o que sinto. e a palavra embala a sofrer. vai para o papel? não. e mais outra e outra e os dias a contar para um homem que não gosta da idade que tem – escrevo para não envelhecer – corpo curvado. um sorriso para dentro. um ai. um acenar de cabeça leve. a testa a franzir no sentido do queixo. e o corpo a derrear para o lado do nada – só ele é que ainda acredita que existe vida nos buracos do corpo. demência – e depois o sentir do puxar das mãos para trás das costa enquanto os olhos gritam raiva por não alcançarem tudo. papel – tudo se torna maior que o cavalheiro. e o nada é gigantesco – no papel nada. no cavalheiro nada. dentro do homem tudo o que pode matar – o tudo é agora imenso para quem não sabe escrever – atiro o corpo ao chão. as mãos à guilhotina. e a cabeça ao fundo da terra onde os bichos nunca escolhem os cadáveres – dentro da terra não há cavalheiros. só homens. todos iguais. sem nada que os traga à vida. só à superfície as lápides falam da eternidade do tempo. livros – o lápis partido dois dedos acima do meu tamanho descansa perpetuamente no rascunho de um cavalheiro sem nome. lápide vazia – sobra a música. johann sebastian bach a esmagar com suavidade a esperança de uma clave de sol desenhada em papel de música. piedade – escrevo como se hoje fosse o meu último dia de cavalheiro – escrevo com a mesma bondade com que as gaivotas vivem na perpetuidade do mar. e tomam cada pedacinho do oceano como se fosse a sua casa. tranquilidade


[3 de 4] – contínua 



25/10/2013

dissertação sobre os loucos moinhos de vento de dom quixote - 2 de 4




alexandre pavan


e a vida sem quase nada é gasta a anotar a presença de quem se me demora no olhar – e são tantos os que por aqui ficam em silêncio. a ocupar o tempo. sem pressa. a falar baixinho. e sempre com tanta coisa pendurada no corpo – chegam em pezinhos de lã. sem olhos. sem sorriso. sem fé. e com os braços a suspirar em todas as direções. olham sul esperança. e eu ali a ouvir com os olhos – gosto de ouvir assim. a sentir os corpos a invadir o que é só meu. e o cavalheiro ali. aflito. a guardar tudo que consegue agarrar. às vezes tanto. dorido. pesado. às cores. também a preto e branco. e o que era meu deixou de ser: sou feito de gente. sou nós – quem entende este nós? alguém? não sei. não sei mesmo. sei que os sinto. sinto toda esta gente amarrada ao corpo. nosso. e o espaço dentro do cavalheiro cada vez mais apertado para o homem que já não consegue viver sem ele – a culpa é do homem que escreve. deixo entrar sempre tanta gente pelo corpo. mas como faria a escolha. pela roupa? pelo corte do cabelo? pelas mãos? não sei. sou um ingénuo? não. preciso deles para falar. quer dizer. para escrever o que sou com eles – são eles que me fazem escrever. é com eles que sinto – só não sei porque aceitam viver num corpo agitação. não sei mesmo. imagino que seja esperança. talvez acreditem que a eternidade é feita da palavra escrita – loucos. alguém pode acreditar que posso dar a eternidade ao que quer que seja com o que escrevo – pobre gente. enganados por todos. até pelos cavalheiros – já não há cavalheiros como antigamente. esses sim. tudo que escreviam era para sempre. basta olhar para a minha estante e vê-los vivos. com as capas duras. gravadas a ouro importante. e os nomes como se fossem família. orgulho – escrevo. não tenho outra forma de dizer o que sinto se não escrever. mesmo que nunca chegue a ter a certeza de que o que escrevo é verdadeiramente sentido. loucura – a dúvida das palavras é grande. do homem que escreve é o dobro – se houvesse uma palavra para cada coisa que sinto. mas são tantas a dizer sempre tanto e o corpo encurralado em ilusão.  serei capaz de escrever a minha vida sentida na primeira pessoa? o que sinto é verdade? tenho a certeza que não. se fosse verdade escrever seria fácil e as palavras surgiriam a qualquer instante do dia. baixavam da boca às gargalhadas – o papel branco. raivoso. agonia. nem uma pinga de tinta. nem uma palavra escrita. solidão – e os olhos cada vez mais cansados de procurar as palavras desta gente que me entra pelo corpo. pesam – tem de existir uma área de bem-estar neste corpo enorme. tem de haver um local de sossego onde o olhar descanse do que sente. tem de haver – acredito e procuro – talvez esse local esteja escondido nas pernas. não escrevo com as pernas. nem penso. nem corro. as pernas servem para me manter de pé. e quando quero parecer maior também servem para me colocar em bicos de pés. não fico muito maior. mas há quem pense que sim – mas a vida dobrou-me e passo a maior parte do tempo de joelhos à procura de palavras perdidas – dentro do corpo que escreve. um nada gigantesco. sinto-me tomado por um nada que não sei explicar. tenho mais de meio dia gasto no corpo. e nada de palavras – sinto que a solução é trazer os corpos até às mãos. povoá-las. dar-lhes vida. escrever – nenhum relógio de sol marca o tempo sem sombra. projeção – a chegada da noite é a qualquer hora. acontece com a escrita. recolha – um papel. e logo aparece gente sem nome. e ali ficam dias e dias a fazer de conta que o tempo não pesa para os homens que gostam de escrever. para os cavalheiros – talvez saibam ler o futuro de quem trabalha constantemente orações subordinadas. sabem que o erro e o belo está na mão que escreve. na linha da escrita. no apuro da dúvida. mestria – somos tantos dentro deste corpo – mas ali ficam. às voltas no papel. à espera da palavra mais-que-certa para perdurarem na eternidade de uma folha – escrevo. escrevo cada vez o que é menos meu e mais desta gente que não se cansa de me acompanhar. tudo é deles. tudo. não tenho nada meu. nem o cavalheiro. nada – quem sou eu para lhes retirar o que só a eles pertence? o homem que escreve não é dono de nada. escreve porque escreve. escreve para ter voz. escreve para dar sentido ao que sente. ao que lhe entra pelos olhos dentro. escreve para não adoecer – não conheço mais nenhuma razão para escrever – escreve porque o coração não se cansa de bater palavras – quem sabe um dia a ciência faz “mea culpa” de tudo o que disse sobre o coração –  afinal o músculo não bate por bater. o músculo bate paixão. bate pessoas. bate abraços. bate vida. bate sentir – há um fundamento sério dentro do homem que não escreve para aceitar esta gente sem nome dento de si. sente-os  – o cavalheiro sem eles não existiria – e o homem que escreve em alerta. vigilante. tenso. a doer. a devastar minuciosamente cada corpo. em espera. estáticos. clementes. transparentes. humanos. e eu a sentir. a ver como sentem. tudo. tudo de um lado ao outro – sinto.  paulatinamente sinto. escrevo. e esqueço o mundo dos que me amam tal e qual como sou. nada – o coração a trabalhar calmamente. sereno. doce. sem ruído. e o silêncio perfeito silencia a dor das palavras que nascem a ferros – a cada batimento um golpe no músculo que sustenta o cavalheiro. e o homem vai sofrer – pela boca a chegada de um sopro frio de melancolia existencial. mais silêncio – e os corpos que me ocupam a passearem de um lado para o outro sem saberem que os sinto como se fossem meus. nascidos de mim. cobertos de palavras. alimentam-me a esperança de um dia saber falar sem ser a escrever – e o cavalheiro em duelo de morte promete ao homem o sossego – um dia cravo o lápis no coração – a beleza perfeita está sempre nas palavras que ficam por escrever. sofrimento


[2 de 4] – contínua



18/10/2013

dissertação sobre os loucos moinhos de vento de dom quixote - 1 de 4




autor desconhecido
 



sou um escrevente de histórias do peito – só falo com o que escrevo. sou assim: grande na idealidade. descolorido na boca. vacilante nas mãos – mas escrevo. sem palavras seria quase nada – sempre que me conto em palavras os dias tornam-se pequeníssimos. as narrativas agigantam-se em embaraços. o corpo estremece e a janela que me abriga do mundo já não é solução para os medos – escrevo. digo. tento escrever. a procura da palavra autêntica é contínua[mente]. trabalhosa. esgotante. e o belo oculto na minha falta de arte – quando escrevo transformo-me num cavalheiro – fato preto. camisa branca. adornada com laço de cetim. preto-cinza. colete de veludo escuro. justo ao tronco. botões madrepérola e dois bolsos pequeníssimos debruados com duas costuras fortes. elegância – apesar de pequeniníssimos estes bolsos são marcantes. é no seu interior que faço descansar os dedos magoados de agarrar o lápis com que me narro – são assim como os abrigos dos pastores no meio das montanhas: feitos de pedra granítica. entrada rente ao chão onde os homens entram de gatas. sem janelas. terra batida. cama de urze e fetos. e em tão pouco o corpo descansa da imensidão do mundo. isolamento – vive no sossego de tudo que marca tempo. com as estrelas acama. com o sol desperta – despojados de qualquer conforto. ali resistem à demora do tempo de uma nova pastorícia – acolher. proteger e agasalhar o pastor e o seu rebanho é a sua missão. palavras – os meus bolsos também são assim. abrigos graníticos.  acolhem-me sempre que o corpo é açoitado pelo desalento de não saber trazer às mãos o sentir em palavras – um deles. o da direita. a sul do coração. guarda o tempo numa engrenagem fantástica: rodinhas minúsculas. parafusinhos insignificantes. chapinhas retorcidas e outras coisas que o meu saber não sabe descrever. tudo isto a fazer andar o tempo com uma precisão inacreditável – é neste tempo que sofro pela falta das palavras – o homem faz coisas incríveis – quantas mãos abençoou deus para purificar estas criaturas com o dom de fazerem coisas genuinamente incríveis? quantas? e todos estes homens divinos encurralados num bolso minúsculo a tomar conta do meu tempo. relógio – no silêncio. feroz. posso ouvir um tic-tac. delicioso. suave. compassado. intervala com o ritmo intenso do coração ansioso – tic. relógio. tac. coração. tic. relógio. tac. coração e tudo isto numa cadência perfeita. melodiosa. a grandeza do tempo no corpo a gastar vida tantas vezes inútil – e as mão a pedir papel. muito papel. e um lápis com o dobro do meu tamanho. enorme. e dentro de mim tudo agora é perfeito. tudo mesmo. tudo que pode ser feito com palavras escritas – sou feito de gaivotas. de liberdade. de braços abertos ao vento. ao tempo. e o meu melhor amigo. de braço dado. caminha comigo a passo. em palavras nossas diz-me: sabes! há uma razão para o vento existir. belo – talvez haja – lembro-me de no passado ler num qualquer livro que não recordo o nome que o belo é aquilo que desespera – acredito. sinto-me desesperado – na mão a bengala. punho de marfim. feita à mão por mais um par de mãos abençoadas. talvez haja um grupo de deuses divididos por áreas de interesse. a criar homens com dons para tornar o mundo mais belo. e todos aqueles que gosto desiludidos com tanta falta de palavras – na cabeça uma cartola imponente. pomposa. importada do país de sua majestade – sempre ouvi dizer que o primeiro cavalheiro nasceu nas ilhas britânicas. não sei se é verdade mas para o caso também não é importante – para perturbar este cavalheiro da escrita [desconhecido do homem que escreve] na sua infindável busca da palavra mais-que-certa. a dúvida e a sua mais-que-perfeita omnipresença em toda a criação. sou aflição – uma maldade autofágica para uma criatura muda que tem como o mais belo dos prazeres a escrita. ingratidão
 
[1 de 4] – contínua



14/09/2013

pecado proibido





mário dionísio - assinado com pseudónimo josé chaves. exposto na II EGAP (1947) onde foi apreendido pela PIDE. no museu da república e resistência e na casa da cultura de coimbra




sinal vermelho. proibido virar à esquerda – sentido proibido. proibido seguir em frente – sentido obrigatório. proibido virar à direita – em sinal azul. a mensagem é de auxílio. informação: na rotunda seguir em frente – gosto dos sinais que aconselham – quadrados. fundo azul e pelo meio um branco-relevo a dar movimento à informação. e tudo isto sem destoar na sua circunscrição geométrica – são sinais engraçados. sustentam a organização rodoviária com ilustração atraente: letras maiúsculas gigantes. casinhas. escolinhas. chavenazinhas. talherinhos e figurinhas simpáticas e determinadas em movimento – há naquele movimento-parado-decidido uma convicção segura do caminho; as pernas firmes. uma para a frente. outra para trás. e tudo exprime ação. direção. determinação. afirmação de uma vontade própria – é para ali que quero ir – confesso que tenho um fraquinho por estas silhuetas –
             [lembram a banda desenhada dos meus tempos de criança]
estes sinais a que raramente damos atenção. são bons sinais. amigos do homem aberto ao mundo – orientam sem reprimir. sem obrigar. permitindo o livre arbítrio. o direito da escolha – escolher caminho é liberdade – no meu tempo não se ensinavam estas coisas nas escolas. não havia liberdade. nem preferências. e os sinais eram todos de sentido obrigatório – no exame de admissão ao liceu as perguntas eram as de sempre: quantos castelhanos matou a padeira de aljubarrota? por quem perdeu o olho camões? como se apresentou egas moniz com sua família ao rei de leão? quem salvou os portugueses de entrar na segunda guerra mundial? o conhecimento administrado com censura ligado a sinais obrigatórios – sem conhecimento não há liberdade – a liberdade é tão antiga como o homem – já santo agostinho. no século V se preocupava com as questões da liberdade humana e a origem do mal – um dia. o pecador acordou e disse: o caminho é por aqui – para trás ficou definitivamente a vida de boémia. vadiagem. desinquieta e  voluptuosa – possídio. seu amigo pessoal. descreveu santo agostinho como um homem que trabalhava afincadamente rejeitando para sempre o desejo da carne. luxo. mordomias – não houve nenhum sinal obrigatório para esta opção de vida – nunca lhe passou pela cabeça que um dia os homens não seriam guiados pelos seus ideais. antes por sinais de obrigatoriedade presos a postes de ferro pintados a servidão: o caminho é por ali. quer queiram ou não – não vou por este caminho porque alguém entende que devo seguir outro rumo – como deixamos que isto aconteça quando todos sabemos que o caminho está errado – e o povo sem raiva para novas revoluções – está na hora de derrubar os sinais de sentido obrigatório – o povo das revoluções envelheceu e os jovens não conhecem a linguagem de maio de sessenta e oito. cresceram no conforto e a resistência é coisa dos livros – estamos todos sem forças para enfrentar estes sinais de desgraça – temos que reagir. afinal estão espalhados em todo o mundo e falam todos a mesma linguagem – um sinal de proibição é igual aqui ou na coreia do norte – bem. na coreia atrás do sinal há uma bala para quem não respeitar os sinais – nestes países os sinais são sagrados. como na índia o são as vacas – mas nós não estamos na coreia. nem na índia. nem na austrália. nem na alemanha. estamos em portugal. estamos todos naquele país que no século XV se atirou ao desconhecido e fez história na história do mundo – vamos continuar a permitir que o nosso país levante mais sinais de terror – não sou anarquista. pelo contrário. gosto de regras. gosto de boas regras quando estas derivam da vontade do homem sábio e justo – mas há homens sábios e justos a segurar os sinais do meu país? não. não há – então…. voltemos a fazer história
 



09/09/2013

rotundus




leonard da vinci



não gosto de rotundas – rotunda. proveniente do termo em latim: rotundus. em linguagem de mestre-de-obras significa toda a construção em forma de círculo – as rotundas da minha terra nasceram para dar vitórias-rotundas aos mestres-da-política – todas as rotundas são filhas de atos eleitorais e oriundas de várias famílias políticas – miscigenação – sem a promiscuidade das várias linhagens políticas as rotundas nunca encontrariam habitat favorável à sua reprodução – ostentando formas de mistura pouco condizentes com os costumes do povo nativo. impõem a sua cultura correligionária com o seu “modus operandi” e depressa esquecem a ligação de um povo a uma terra que os guarda à séculos – esta gente. simples. honrada e determinada. sempre teve por hábito caminhar em linha recta superando as adversidades da construção infindável de um estado-nação – a nossa história tem raiz. alma. paixão. sacrifício. língua e muita coragem. não somos um povo qualquer. e que. por via disso. não conseguimos compreender esta nova obrigação de tornear rotundas-ocas. rotundas-de-eleição – rotundas estas que não servem para coisa nenhuma a não ser a permuta do voto – estes comportamentos indignos. indecentes. indecorosos quebraram todas as normas da respeitabilidade do homem-político trazendo o descrédito a toda classe – para aristóteles. o homem é um animal político atingindo a sua plenitude no espaço da pólis – para este filósofo a “cidade ou a sociedade política” é o “bem mais elevado” e por isso os homens se agrupam em comunidades. da família à pequena aldeia – esta aliança do bem-comum dá origem às cidades e aos estados – onde está este homem-político? talvez só tenha existido mesmo na antiguidade – o que seria de nós sem os filósofos? onde encontraríamos o saber. esperança. lisura. escrita do bem. o pensamento puro. não digo o pensamento sem erro. digo puro. decantado do pecado. da ambição desmedida – não sei. não sei mesmo. sei que fazem falta. quero acreditar no conhecimento como remédio de todos os males – os homens das rotundas. profetas do prazer. discípulos de epicuro na parte que lhes servem os intentos da ganância. esquecem o princípio fundamental da sua doutrina de vida: a amizade – não acreditava na vida para além da morte mas acreditava na generosidade do dar prazer em vida. acreditava que era fundamental dar prazer para o poder receber – dito por outras palavras. “o melhor meio de ser egoísta é não ser egoísta - sereis vosso melhor amigo. sendo um bom amigo para os outros” – as rotundas do meu tempo não fazem amizades; são redondas mas não simbolizam a aliança do povo com os seus representantes políticos – não há honra nas minhas rotundas. victor hugo diz: "há pessoas que observam as regras de honra como se veem as estrelas: de longe” – o meu país está doente. muito doente e esta nossa gente não merece esta dor de um mal que não é hereditário – na origem destas novas doenças estão os políticos de um regime que se diz democrático – mentira. o poder não é do povo – transmissíveis ao homem pelo homem. independentemente da sua cor política. o corpo desumaniza-se numa crueldade animal em nome de uma militância interesseira – o que estava morto já não está mais – o pecado voltou a despontar. e o reaparecimento de enfermidades que pensávamos ultrapassadas voltam a emergir – as revoluções dos povos contra a tirania dos valores da dignidade humana ainda não terminaram – várias são as teorias formuladas pelos sociólogos para o aparecimento destas novas estirpes – no entanto. apesar dos estudos ainda não serem conclusivos. um grupo de estudiosos aponta para a principal causa destas maleitas à mutação do vírus – as principais características desta nova praga são a flexibilidade. adaptabilidade e mutabilidade – embora este vírus necessite de uma célula hospedeira para se reproduzir. este manifesta um facilidade rara para a reprodução de cópias. dando origem não à morte do hospedeiro mas à infeção crónica – os mais afetados com este vírus-parasitário são os idosos. crianças. desempregados. jovens licenciados. contratados a prazo. entre outros – infelizmente não se vislumbra nenhuma vacina a curto prazo para exterminar esta estirpe parasitária – só com uma nova filosofia política seremos capazes de erradicar para sempre esta desumanidade – as rotundas são filhas de muitas mães e raramente se sabe quem é o pai biológico – mas afinal para que servem as rotundas? as rotundas foram construídas principalmente para os atos eleitorais – depois do escrutínio dos votos. os vencedores. isto é. os que tiveram mais votos. são impelidos a circular na rotunda das rotundas – a mãe de todas as rotundas – festejam aos pulos e de punho no ar gritam vitória – vitória. vitória. vitória. até que o dono da vitória lhes diz que está na hora de saírem da sua rotunda – o DNA está contaminado e os santos já não são agostinhos – o pecado veio para ficar. não há remição da desvirtude. nem retiros espirituais capazes de salvar as almas de gentalha que vive à custa do sofrimento do seu semelhante – já ninguém fala. gritar é felicidade e nas rotundas grita-se – o povo da rotunda está satisfeito – quem não está na rotunda não é da boa gente e quem não salta é estúpido – brevemente teremos mais um círculo eleitoral e mais uma rotunda para quatro anos




03/09/2013

Tabacaria




fernando pessoa




TABACARIA



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.



Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.



Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.



Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.



Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?



Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.



(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)



Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.



(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)



Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente



Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.



Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.



Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,



Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.



Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.



Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.



(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



Álvaro de Campos, 15-1-1928



23/08/2013

quase escrevia a frase mais bonita de sempre




jamie salomon y jackie k. seo



escrevo num quase tempo. um quase texto – percebi que o tempo apesar de malévolo levou-me ao refinamento do supérfluo – escrevo – avalio o tempo ao segundo de um quase – tenho quase a certeza que vou acabar este texto um dia – este quase não tem definição. talvez previsão. talvez adivinhação. talvez ilusão. talvez desilusão. talvez alucinação. talvez um jogo de xadrez onde o cheque à vida é diário e o mate é uma certeza absoluta – xeque-mate. e o que há para fazer fica para sempre parado no quase – quase conseguia realizar aquele sonho. quase – não sei explicar o quase – passei a vida encavalitado em muitos quase[s] e agora quase nada me resta –

– sartre trata o nada em oposição ao ser –

aceitamos a vida com uma palmada no rabo. um biberão. o primeiro passo. o primeiro dia de escola e depois. é como se tudo acontecesse em vinte e quatro horas – existo cunhado por um nome. um número de existência e tudo se resume a uma impressão digital. única. dizem os entendidos – pelo batismo. sou de um outro mundo. crente. piedoso. justo. vigiado por um deus que está em todo o lado – a vida eterna é prometida para lá da minha compreensão – um choro. uma concha. e água na cabeça iluminada por uma luz que nunca iluminou coisa nenhuma – quase cheguei a acreditar que os santos um dia me ouviriam – nunca me deram importância. nem mesmo quando lhes prometi levar ao seu dono o meu peso em cera pura – bastava que me tirassem este quase das mãos. bastava – para o mundo sensível sou um pedaço de papel. existo em livros enormes de letras douradas. capa rija. guardado por funcionários públicos indiferentes ao serviço de um estado também indiferente – vivo ali até que o bicho da traça se alimente do meu número – esqueço o nome. somos todos números e moro na página cento e cinquenta do ano da santíssima trindade – sou filho de um ano – quase era um ano bom se não fosse aquela tromba-d'água – ceifou a flor da árvore e o fruto putrificou voltado para um raio de luz vagaroso – quase lhe acontecia vida – não aconteceu. chegou tarde. quase chegava a tempo. mas o céu escuro anunciava dúvidas e depois. do nada. apareceram aquelas pedras enormes de granizo –

– uma fotocópia por favor. frente e verso –

no tempo uma recta sem fim. deito mão a uma equação de resultado infinito: quase era imortal aos vinte. quase era imortal aos trinta e aos quarenta o corpo deixa de fazer somatórios e afinal tudo se resume a resto zero – a fumarola acesa e a missa de corpo presente agendada. falta apenas acertar a hora com os convidados – quem disse que as retas não tem princípio nem fim? a força gravitacional não admite corpos suspensos no ar por muito tempo – o centro da terra é humano e o eixo imaginário afinal existe. quase perpendicular a uma quase tangente. roda numa espiral de morte anunciada e tudo se resume a tempo –

– galileu afirmou que o movimento só tem sentido quando comparado com outro ponto de referência –

não tenho ponto de referência. tudo roda com o desinteresse do tempo pelo que acontece. consome voltas a um eixo que roda unicamente sobre si – quase não sou – quase saía a cor branca. saiu vermelho vivo. e o meu quase preso aos caprichos de um jogo de sorte ou azar – sorte. azar. sorte. azar. sorte. azar. sorte e roda a rodar – azar. quase dava escritor – os polos iguais repelem-se. não deixam juntar as letras com perícia para uma quase lucidez da arte de bem escrever –

– tudo é uma roleta de casino. vermelho ou preto. par ou impar –

e a demência a ganhar tempo para tomar de vez o corpo e tudo amarrotado dentro do pensamento – páginas de mim agoniam numa quase morte no caixote do lixo – tudo morre. até a minha quase vida feita em papel – morte gritam as palavras. morte gritam os verbos no gerúndio e o passado a rir distrai o futuro com um quase ser feliz – quem sabe um dia tens o tempo dos homens justos numa árvore plantada na página dos fidalgos da casa mourisca e verás que os negrões de vilar dos corvos nunca foram assolados por tragédias. quase eram. mas não foram – há um tempo para os homens que sabem escrever e um quase tempo para os outros – nasci e morri dentro de um quase. quase era afortunado. quase sabia ler. quase escrevia a frase mais bonita de sempre. quase guardei as pessoas de que gosto para sempre. quase a vida foi justa. quase já não tenho medo. quase tudo aconteceu como imaginei. quase não me arrependo de nada – quase –

– "Em todos os homens a consciência tem só uma maneira de ser. Reprova sempre o mal, aponta sempre a culpa." [júlio dinis] –

aprendi a contar o tempo de uma forma estranha. não reconheço os dias. sei que aparecem pelo nascer do sol – todos os dias ouço a chegada das manhãs – trazem penduradas ao pescoço umas quantas estrelas famosas – todas mortas. digo que estão mortas. quer dizer. quase mortas. soletram com dificuldade o seu nome – fico com a ideia de que o sussurram para não serem enterradas em valas comuns –

– no fim da vida. as estrelas guardam dentro si matéria degenerada –

todas as estrelas querem pertencer a uma constelação e assim adquirir por direito próprio um nome na lápide: ursa maior. nasceu e morreu para dar quase dimensão à arte – cassiopeia. nasceu e morreu bem-fazente do quase surrealismo – ursa menor. nasceu e morreu para dar norte a todos os quase homens errantes – pegasus nasceu e morreu para dar asas à quase imaginação – hércules. nasceu e morreu para dar quase força aos imperfeitos – cruz. nasceu e morreu para fazer quase perto o longe –

– cinquenta –

ano a ano risco no calendário um traço de trezentos e sessenta e cinco dias – já só o faço uma vez por ano. tenho medo de ouvir dizer: quase chegava ao novo ano – não sei o que há do outro lado deste quase –




21/08/2013

agosto








acampado na apúlia [praia]. adormecia o coração ao som deste "slow" - passaram 35 anos - mas a paixão ainda vive - era um puto fixe

20/08/2013

what a wonderful world







está cada vez mais difícil acreditar. mas os humanos ainda estão em maioria neste mundo animal - um dia. o azul vai reaparecer ainda mais translúcido e a equidade será a bandeira dos povos para sempre – acredito

15/08/2013

retalhos – número de série 14082013s(r)ego04




                                                          berlinde de bruyckere




não mais há liberdade para um texto levado até ao leitor - sempre que escrevo fico sentado numa pedra - ou levo com ela




12/08/2013

sorefame – importante construtor de material circulante ferroviário










foto google




I.

1943. as estradas do mundo estão cobertas de explosivos – em portugal o metal de côr branca torna-se abastança dos que vivem da terra – os candongueiros. a soldo dos alemães. pagam pelo volfrâmio valores impensáveis a gente afeita à escravidão do trabalho nos campos – finalmente uma oportunidade traz alguma dignidade à vida miserável das gentes do interior – trocaram o sol dos campos pelo escuro das minas e fizeram-se nos novos mercadores do século XX – substituíram os camelos pelos burros. as areias pelos montes. os oásis pelas aldeias e criaram a rota do ocidente: o destino não era veneza mas berlim. capital do império nazi – winston churchill bem protestava. mas antónio salazar. com habilidade. lá ia conseguindo acalmar os ingleses com a promessa do fim da neutralidade – a prioridade para o nosso ditador era impedir que portugal entrasse para o conflito que mais vítimas causou [60 milhões] em toda a história da humanidade – por tudo isto. a terra e o governo aceitavam ser esburacada e o volfrâmio com pressa marchava para as fábricas da guerra – na capital do império as notícias do conflito chegam pela voz de fernando pessa que. via BBC [rádio] de londres. dava conta do avanço das forças hitlerianas pelo mundo – todas as noites. os ouvidos dos portugueses colavam-se à rádio. a voz da verdade do mundo livre tinha hora certa para chegar – o medo agigantava-se na casa das famílias. ninguém queria ver os seus filhos partir para uma guerra desta dimensão – as consequências trágicas da nossa participação na I guerra mundial ainda estavam bem presentes na memória dos portugueses – as baixas humanas quase chegaram aos dez mil mortos. milhares de feridos. para não falar nos custos económicos. um desastre com consequências sociais muito graves – os telégrafos não paravam de picar fita. decifrar a notícia rapidamente é crucial para que o jornal da manhã informe a população da coragem com que os soldados da aliança tentam impedir o avanço do inimigo – as páginas dos jornais tornam-se cada vez mais escassas para dar conta de todas as atrocidades cometidas pelo avanço no terreno das forças nazistas – chegam as primeiras notícias da perseguição ao judeus pela polícia secreta do estado [gestapo] – recomeçou a carnificina de um povo originário das tribos de israel – talmud. é a palavra da fé numa aliança secular entre deus com os filhos de Israel – no entanto. desta vez. depressa perceberam que as leis e mandamentos de deus reveladas a moisés no monte sinai não lhes serviriam de proteção – a sobrevivência é a fuga – começaram a chegar ao nosso país os primeiro refugiados judeus – poucos foram os que se fixaram definitivamente em portugal. a maior parte apanhou o oceano e rumou para o brasil e estados unidos da américa – de país em país a cruz suástica conquista o mastro das soberanias numa europa cada vez mais vermelha de sangue – resistia estoicamente leninegrado e londres – o mundo volta a ter um inferno aceso pela mão do homem – o papel da imprensa é importantíssimo. os jornais são a fonte de notícias e informação mais credível na época – apesar do pouco espaço editorial para informações não relacionadas com a guerra é notícia a intenção do governo português criar uma nova indústria – pequenas empresas da porcalhota juntaram-se para dar corpo a um plano estratégico de interesse nacional – o projeto aparece. os fornos aquecem. o minério derrete e o milagre acontece – novos operários. ainda sem nome. trabalham o ferro com mãos fundidas numa liga resistente com mais de nove séculos – o ferro é um elemento químico. uma união de minérios. com símbolo Fe. liga com a fé de deus do regime fascista do nosso país – e novos homens de fato macaco. de gancho em punho. atiram-se com coragem ao fogo de um inferno nunca antes trabalhado – a confiança destes novos operários é agora guardada em coquilhas-molde – há um novo saber. passá-lo de geração em geração é obrigatório – todas as grandes nações do mundo assentam nesta herança de sangue e dentro deste correrá para sempre a cultura. a tradição. a língua. a bandeira – a alma de um povo como o nosso nunca morre. renova-se com o melhor dos seus antepassados – tudo agora é aço. temperado pela força do acreditar de gente com esperança – neste complexo industrial há gente de todos os cantos do país. vieram à procura de uma vida digna para os seus filhos – deixaram tudo para trás: a família. a fome dos campos cobertos de invernos rigorosos. o ceifar da erva tenra para os animais. as desfolhadas de um pão que o diabo amassou. a meninice descalça com os seus pés gretados do gelo. a malga de sopa de couves e feijão. a sardinha para quatro e as casas acesas com candeeiros de petróleo de luz trémula e sombria – partiram vazios de tudo. dentro de si as memórias e a certeza de que as campas rasas dos antepassados nunca mais seriam aparelhadas – desta vez a morte dos seus avós chegou para sempre. a saudade não vence [ainda] as distâncias – deixaram a noite e acreditaram nos rumores de uma nova luz cristalina para os lados da capital – tudo valia a pena naquele tempo. a vida era parida em quartos escuros e a infância roubada para sempre no secar das tetas – aprender era trabalho e a escola um mistério que só os ricos sabiam desvendar – para a gente que vivia do que a terra fazia o favor de dar. escrever era revolver o solo de enxada na mão. ao ritmo das estações do ano – semear. regar. colher e sobreviver – finalmente a vida dava-lhes razão: para bater o ferro não é necessário saber ler e escrever – e a nação a respirar vaidade com esta gente de trabalho e silêncio – o fontismo está morto. mas o seu povo à beira-mar plantado não – nasceu a sorefame



II.

pouca terra. pouca terra. o comboio apita caminho – pouca terra. pouca terra. passo a passo. assinala a conquista de novas terras a gente nova – e a gente esquecida no tempo de uma nação ingrata a levar os seus afazeres à cabeça para dentro de braços lusitanos – o norte e o sul estavam ligados desde os primeiros anos do seculo XX. mas agora tudo é diferente. nos carris a fadiga dos materiais é nacional. e as rodas de ferro estão cunhadas com a mesma cruz de valentia com que partiram as naus do tejo à descoberta do novo mundo – descobrir outro portugal com a mesma esperança dos nossos navegadores – há uma audácia neste povo que ninguém entende. somos corajosos. destemidos. arrojados. atrevidos e o medo é sempre para conquistar – somos nós. somos lusitanos. e agora a fazer rolar as rodas das locomotivas como viriato o fez com as pedras – as pedras eram enormes. os homens também – tudo começa com viriato. a defesa da soberania lusitana é feita contra os invasores romanos – verdadeiramente ninguém ainda hoje sabe dizer quem era este homem que empurrava pedras nos montes – dizem que era pastor e que os romanos lhe chamavam dux – dux fez-se guerreiro e das debilidades fez a robustez – tudo estava na força dos braços – mas os traidores também fazem parte da nossa história: o melhor amigo entregou-o à morte do inimigo – vendeu a soberania a troco de um par de mordomias – foi um de nós que o traiu – talvez seja sina da nação parir traidores –

mas…

falamos da sorefame. importante construtor de material circulante ferroviário – nós somos como somos. e dentro de nós há povos de tantas partes do mundo que não é possível saber porque somos assim – somos assim porque somos. e nunca seremos capazes de valorizar o que construímos no tempo desta pátria que não se cansa de ser nossa – este país é único. apesar de todas as imbecilidades dos seus governantes o povo continua a envelhecer como afigurou o nosso primeiro afonso – e de branco e azul tomamos o verde da esperança e o vermelho do sangue – sina. penoso o sofrimento e o povo obrigado a cantar o fado para caminhar – uma nação feita com a penitência de gente enganada de século em século – vendemos tudo. tudo. e a nossa identidade é agora um estrangeirismo que não sabemos entender – dois caracteres em chinês. um verbo em alemão e por fim a vénia inglesa. cor-de-rosa como manda a tradição – e o mundo mais uma vez cortado à faca dos interesses que não são os nossos e o talento de um povo em fuga à séculos – já ninguém se lembra do tratado de tordesilhas – construímos e de logo de seguida destruímos – não somos solidários. não há fraternidade. camaradagem. solidariedade. crescemos em demasia. envelhecemos depressa – na juventude somos amigos apenas porque somos. falamos a mesma língua. o mesmo calão. jogamos na mesma equipa. somos do mesmo bairro. vivemos na mesma rua. vamos à mesma igreja. subimos a mesma árvore e o pai do meu amigo é amigo do meu pai – somos – quando nos zangamos resolvemos o problema de punhos ao léu e no final tudo que é importante contínua dentro de nós: continuamos a falar a mesma língua. o mesmo calão. jogamos na mesma equipa. somos do mesmo bairro. vivemos na mesma rua. vamos à mesma igreja. subimos a mesma árvore e o pai do meu amigo é amigo do meu pai – somos – somos deveria ser suficiente para uma nação abraçar e proteger o seu povo – mas a história repete-se e quem diz que a água só passa uma vez debaixo da mesma ponte engana-se – mais uma vez o impensável acontece. as nossas cabeças de ferro contaminado ditam a sentença: sorefame condenada à morte por injeção letal no conhecimento adquirido – nunca mais haverá saber a passar de uma geração-respeitada pelo saber alcançado para uma geração-jovem pronta a saber tudo da vida de quem lhes prometeu um país equitativo – portugal já não corre em carris para lá e para cá – povo deixa de entender o apito da boa nova. a língua já não é de camões e o comboio já não diz: pouca terra. pouca terra – ninguém entende o barulho desta coisa que anda para lá e para cá – do somos já não resta nada. nem fado. nem futebol. nem fátima. nem traidores. estes ficaram na praça do comércio a olhar para d. josé I de portugal. nome completo: josé francisco antónio inácio norberto agostinho de bragança. cognominado o reformador devido às reformas que empreendeu durante o seu reinado – que cognome daremos ao nossos governantes? defunteiros? – josé sócrates I. o defunteiro – passos coelho I. o defunteiro – e os séculos vão passar e de nós nada haverá. nem dor. nem agonia. nem perda. nem ossos. nem remorsos. nada de nada. só história em papel enganado e vendida em escolas aos filhos da geração do pecado – estamos em pecado mortal. não matamos mas deixamos matar – o último traidor tinha vendido o país a espanha – raios parta esta gente parida na revolução de abril – abril não foi feito para isto. este somos não é liberdade. igualdade. fraternidade. não é cravo – gentalha de malfeitores. fizeram-se políticos. homens do saber. e sem saber como nos fizemos ao longo dos tempos – gente falsa. esta que diz e desdiz. não entendem o somos – somos: um povo de camaradagem nas guerras contra castelã. de camaradagem nas naus dos descobrimentos. de camaradagem nas camaratas da guerra ultramarina. de camaradagem na história da nação – já não há nevoeiro que traga um d. sebastião – ó gente que decide! o que fizeste à nossa nação? que fizeste ao nosso somos? agora as rodas de ferro não conhece as nossas gentes. vem de terras distantes. feitas por mãos que não nos entende. não são. não querem saber do somos – uma bomba(rdier) acabou com a sorefame – não foi uma bomba atómica. não. foi uma injeção. aniquilou a empresa. aniquilou o saber de gente que nunca soube escrever para se defender – foi um envenenamento controlado à distancia: primeiro a falência de um rim. depois um pulmão de seguida um válvula do coração e quando tudo fazia acreditar que a culpa seria atribuída ao colapso dos principais órgãos da máquina. primeiro corta-se um perna e de seguida outra – o corpo cai desamparado e o que era ferro trabalhado é agora sucata – lágrimas. ainda não. mais tarde o povo chora – ninguém acredita que dentro do ferro retorcido houve um dia ali gente de martelo em punho a fazer bater o coração de centenas de vidas – e o povo culto grita: é lixo. é lixo. vai para reciclar – o que é nacional nem sempre é bom diz o político feito às três pancadas numa revolução de cravos que diz: o futuro somos nós – já não somos – já não falamos a mesma língua. não temos o mesmo calão. não jogamos na mesma equipa. não somos do mesmo bairro. não vivemos na mesma rua. não vamos à mesma igreja. não subimos a mesma árvore e o pai do meu amigo não é amigo do meu pai – já não temos ninguém capaz de voltar a ensinar um modo de vida que já ninguém sabe como nasceu – eles sabem que há coisas que nunca mais podem voltar a fazer história – assim se destrói o tecido empresarial de uma nação – primeiro um milhão para as pessoas. depois um milhão para o abate e depois um milhão para calar os que mandaram abater – o trabalho está concluído – agora pagamos a mercadoria que nos faz falta – ficamos para sempre sem um saber que não vem nos livros e já não há mais gente sem saber ler e escrever para nos ensinar – no passado o ferro era batido ao som da lembrança das pedras a rolar monte abaixo – já não somos como dantes – somos desempregados. somos desgraça. somos descartáveis – somos gente sem esperança –




01/08/2013

alívios




anton semenov 







para cada patranha esculpida germinarei cem verdades – não há beleza na mentira nem dignidade na ingratidão – um dia acordarás com as portas a bater




//




“a faca não corta fogo” - herberto helder

 


28/07/2013

estou assim







.

.

nunca entendi muito bem a metamorfose do corpo ao sétimo dia. no passado. em minha casa. este dia era dedicado ao senhor –



– hoje já não há senhores em minha casa. o último a bater a porta foi o meu pai



não gosto do domingo


22/07/2013

imelda marcos




                                               coleção de sapatos de Imelda marcos 
                                                                   foto google




certo dia. na feira da literatura do luso poemas. um poeta ambulante desta “escola”. elitista [penso]. postou no seu espaço de opinião umas linhas de sua autoria sobre um qualquer assunto que já não recordo – lembro-me que gostei – despertada a minha modesta atenção. peguei no teclado. toquei as teclas com muito jeitinho e comentei como entendi – não sei se bem ou mal. comentei com a arte que ao longo do tempo fui capaz de amealhar – não foi muita. confesso com vergonha – já fiz muitas coisas na vida. não nestas coisas da literatura. destas. infelizmente. nada sei. mas de outras que sendo menos eruditas. ensinaram-me a compreender vagarosamente o que os hábeis escritores vão escrevendo numa arte que invejo – confesso que a minha destreza para a escrita é muito modesta. mas na oralidade o desastre é multiplicado por dez – um mal nunca vem só – daí a importância da “escrituração” para os mancebos como eu – escrever é comunicar – nesta habilidade feita a punho é sempre possível voltar atrás. reescrever o que pensamos estar menos bem. repensar. voltar a reescrever – fico sempre com a sensação de que quando reescrevo a emenda é pior que o soneto – aprendi a suportar com tristeza esta marca – burro velho não aprende línguas –

     [prosseguindo. penso ainda]

comentar um autor. que através da escrita. teve a mestria de conquistar a minha [leitor] atenção. deve ser gratificante – que inveja tenho desta gente que é lida – eu bem tento. mas nada. ninguém me comenta – só deus [se houvesse] e eu é que sabemos a dor que me consome o corpo – as palavras são sempre tão difíceis de juntar –

     [andando]

confesso que para mim comentar. é na maior parte das vezes um impulso  impregnado de gratidão. com resultados quase sempre inesperados pela perturbação emocional com que me entrego ao teclado. quero dizer: desfecho de escrita duvidosa –

     [raios partam a minha sorte]

é amargo para quem não tem o dom da escrita – dentro da cabeça milhentas coisas lutam desesperadamente por um lugar no papel. as ideias penetradas por um sentimento maravilhado pulam de lado para lado. empurram-se. esmagam-se e arrumam-se como podem no espaço branco de uma folha a4 sem expressarem uma milésima parte do que deveriam dizer – tanto deslumbramento e o corpo sem forma de o mostrar – e a desarrumação aos gritos no branco da folha – desordem emocional é tudo o que ganhei por um dia ter aprendido a ler –

     [que inveja da cegueira dos analfabetos. nenhuma letra os atrapalha]

mas nem sempre somos o que queremos. na maior parte das vezes somos o acaso de um caso na vida – um dia o meu pai e a minha mãe resolveram dar um beijo no período fértil. aconteci – cresci a imaginar coisas e de cravo na mão parti no meio de uma manifestação a cantar zeca afonso – quando olhei para mim era homem –

     [menos homem do que sou hoje. era um garoto de maior idade]

assim foi. e o tempo a fazer-me crescer e a consumir vontades – os dias eram pequeníssimos para tudo o que sonhava fazer – as coisas do saber exigiam-me tempo que não podia dar e tudo foi ficando adiado em nome de ideais que hoje já não existem  

     [também o meu muro caiu. eu e berlim unidos pelo mesmo destino]

os dias tornam-se compridos e impertinentes – envelheço a sonhar com uma casa virada para o mar. um sofá. uma lareira e uma mesa carregada de saber: livros e livros de gente que não sabe que existo. eu ali estou – sozinho para eles. acompanhado de amigos para mim – todos tão diferentes e todos como eu. unidos pela força das palavras – eu e eles virados para a lareira. eu e eles a ouvir o ir e o vir do meu mar e todos felizes com tão pouco – no resto do mundo as minhas gaivotas rasgam o vento numa liberdade que nunca alcancei – se eu pudesse acontecer de novo – na cabeça a morte trágica de romeu e julieta alimenta-me a esperança de eu também partir envenenado por uma última leitura do amor da minha vida: júlio dinis – havia tanto nos livros deste homem: saber. honra. verdade. tradição. família. trabalho. esperança. amor. caridade. humildade. humanidade. havia sonhos – sempre sonhei com um mundo bom –

     [adiante]

uns dias mais tarde recebi em jeito de resposta ao meu comentário um pequeníssimo amontoado de palavras. que reconheço. talvez por minha culpa. nunca fui capaz de as compreender – lembro-me de ficar irritadíssimo – resisti – ao longo de muitos dias não fui capaz de encontrar no meu conhecimento o mérito suficiente para compreender o meu ilustríssimo escrevente – fiquei arrasado. mas logo percebi que o autor escreveu tudo num superlativo absoluto sintético – não tenho estudos para superlativos –  envergonhado. remeti o meu corpo ao silêncio –

     [desonra pensei. e como manda a tradição do país ao melhor soldado japonês. suicidei-me no meu silêncio]

não se vive em desonra – como foi possível não ter sido capaz de interpretar um simples amontoado de palavras – sei que estavam cobertas por uma ambiguidade sarcástica – como foi possível isto acontecer – tudo isto sufocava. tudo isto era como o enrolar da jiboia. apertava cada vez mais e a asfixia total era uma questão de tempo – o que o nobre colega retratou naquele breve comentário pode ser descrito como uma pintura abstrata lírica. de cores pouco definidas. traço largo. firme e suficiente forte para abraçar toda a ingenuidade do leitor ao ponto de o deixar confuso [louco] –

     [havia naquelas palavras um cheiro forte a tons pastel-terra. lembrando o outono. o cair da folha. as primeiras geadas e a morte dos mais débeis  à crueldade da natureza]

lembro-me de ficar com um misto de intriga e fascínio pela imagem do avatar do colega – era arrasadora: os olhos inclinavam-se para dentro. protegidos por uns óculos de massa que mais pareciam uma prisão. a boca como se nunca tivesse falado. perfeita – a barba [percebia-se] cortada à tesoura. a tombar para a esquerda como se impõe a um verdadeiro revolucionário com estudos – toda a imagem era profundamente perturbante. uma mistura deliciosa de madre teresa de calcutá com a heroicidade de che guevara – lembro-me de pensar: a história jamais apagará um retrato como este – nunca lhe perdi a admiração. ainda hoje. em segredo. pé ante pé para não incomodar. lá vou eu dar um escapadelazinha ao seu covil de saber – fico sempre estarrecido com a humildade de quem sabe que sabe –

     [sou um romântico]

fiquei tempos sem fim a olhar para as palavras. ora lia o meu comentário. ora lia a resposta ao meu comentário – hoje posso garantir com verdade que não foi nada fácil aguentar aquela dor de saber que nada sabemos – é como nas corridas de fundo no atletismo. a meio da prova. surge uma dor na zona abdominal. chamam-lhe dor de burro. confesso que não sei o porquê – na dor de burro. sabemos que dói. colocamos a mão sobre o local da dor para comprimi-la mas não há nada a fazer. só pára mesmo de doer quando paramos de correr. neste caso de ler – assim fiz. e logo a dor parou – hoje à distância do tempo já gasto. lembro-me do local da dor e de um pequeno excerto do comentário que originou uma das piores dores de burro que tive na vida – dizia o meu caro colega: as minhas palavras lhe traziam à memória imelda marcos pela adoração que esta tinha por sapatos – este comentário mudou a minha vida – hoje. sou um comprador compulsivo de sapatos. fanático e sem tratamento – tudo faço para embelezar os pés – aprendi que é absolutamente necessário estar bem calçado para que uma escrita se torne credível. formosa e principalmente lida – nunca escrevo descalço. não. nunca mais quero ter aquela dor de burro –

     [escrevi. li. pensei. escrevi e passaram-se provavelmente dois anos]
e agora vou dormir em paz




12/07/2013

confissão




marc chagall



chegou o momento de voltar a colocar o silêncio no corpo – branquear a memória. reconciliar e envelhecer – nada em mim tombou apodrecido




11/07/2013

nuno higino - talvez deus se tenha enganado




nuno higino




Queria centrar-me todo em certas palavras, ocupar o espaço
sem necessidade de coordenadas, errar o tempo
tomando-o por tempos que nunca existiram. Desejaria a sorte
dos que morreram em naufrágios e foram poupados
à habitação dos cemitérios. Nunca tive jeito para ser feliz
[nem para gritar] e pior que isso: condenado à efémera
duração dos sonhos [bastava a poesia para condenar-me]
Talvez Deus se tenha enganado: sobre o barro soprou a vida
em vez do sonho.




    Nuno Higino. Talvez Deus se tenha enganado. Letras & Coisas (2004)