.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
29/11/2019
27/11/2019
chegará o dia
chegará o dia em que direi:
que se foda a respiração
e todo este corpo
que mais não é
do que carne alimentada por dois pulmões
que respira mortalidade
ou vida estúpida
ou fuga à morte
ou outra coisa qualquer
que nos mantém ligados às ruas
aos sinais de trânsito
aos mercados com as suas vendedoras
às gaivotas tontas que agora aparecem na minha cidade
como se um mar se guardasse num charco
e ao pequeno almoço que é quando começa o dia
e o corpo curvasse ao café expresso com fé
que a sua cafeína seja a força motriz
para levantar voo até saturno
mas se não houver espaço
estrelas ou cometas
que as borras do café se transformem em raiva
para levantar o mundo
que tenho dentro de mim
20/11/2019
eu. os peixes e o cloro
em dezembro de 2010
resolvi trazer para casa um aquário e cinco peixes miscigenados na raça e na
cor – instalei a caixa de vidro num local aconchegado e protegido das correntes
de ar. forrei o fundo com joguinhas brancas. encalhei uma nau
naufragada do tempo do vasco da gama. plantei umas algas verdes fofinhas
para que os guelras pudessem jogar ao esconde esconde. encrostei uma
ânfora que borbulha bolhinhas de oxigénio e. mais uns quantos bisegres
para que o fundo da caixa reproduzisse. dentro das inúmeras limitações.
o fundo do oceano – depois de tudo devidamente preparado e ornamentado inundei
a caixa de vidro com água da companhia – delicadamente. abri a saca de
plástico transparente. que me permitiu transportar os guelras da loja
até casa e. um a um. com delicadeza. operei o transbordo
para o meu oceano pacífico privado – e ali fiquei a apreciar os meus novos
animais de estimação. quer dizer. os meus novos guelras de
estimação e. rapidamente percebi. de que os peixes e as crianças têm
uma característica em comum. só precisam de liberdade para serem felizes
– ali estava eu parado. também imerso em prazer. a degustar o meu
novo e excêntrico “affair” hídrico. suplementado com uma convicção firme
de que tinha acertado no escolhimento dos novos inquilinos para o meu exótico
aquário – os guelras estavam felizes e confiantes no seu novo habitat. estavam
enérgicos. corriam como loucos. davam piruetas com curvas e
contracurvas. faziam bolhinhas pela boca e as barbatanas não paravam de
bater. mais parecia o voo das andorinhas a anunciar a primavera.
tal era a velocidade e alegria com que se moviam de um lado para o outro –
estávamos todos felizes. eu. os peixes e o max. que ao meu
lado. intrigado com a singularidade dos feitios e cores dos novos amigos.
não parava de abanar a cauda – estava tudo a correr dentro da normalidade
perspetivada pela vendedora. especialista em animais de todas as
espécies. quando me apercebi que algo estranho estava a acontecer. os guelras estavam tremulosos e. os
olhos esbugalhados não paravam de piscar – esta altercação não
estava prevista no manual de boas práticas de manuseamento e bem-estar de
peixes ornamentais – entrei em pânico. não sabia nada da anatomia de
peixes. em toda a minha vida só com cães tinha partilhado afetos.
não fazia a menor ideia de como se tratava um peixe e muito menos avaliar a
gravidade dos seus sintomas – será que estavam todos a ter um AVC por
intoxicação da água? ou seriam apenas pequenos espasmos nervosos de adaptação
ao seu novo lar? o que me desassossega. é que para o bem e para o mal.
sou eu o único responsável pelo seu bem-estar – estamos numa época em que não
se pode facilitar com os cuidados aos animais. ainda me culpam de maus
tratos e quem sabe. acabo em tribunal acusado de negligência – e pior.
estou sujeito a que a qualquer momento me toque a campainha e me apareça à
porta a CMTV acompanhada pelo PAN [partida das pessoas. dos animais e da natureza]–
comecei à procura do que poderia estar a causar aquele pisca pisca e pensei:
será que os peixes estão nauseados com o cloro da água da companhia? é bem
possível. a água ultimamente não tem andado grande coisa – se fossem
humanos. percebíamos com facilidade se o problema recaía sobre a má
qualidade da água. reviravam os olhos. esfregavam-nos e logo concluíamos
que a maleita passaria com umas gotas oftalmológicas – mas a verdade é que os
guelras não tem mãos e as barbatanas são curtas. creio que nem esticadas
chegam aos olhos. que chatice. nem uma comichãozinha podem ter –
deus lá teve as suas razões para que na sua infinitude sabedoria não lhes desse
mãos – mas a verdade. é que se lhes tivesse implantado umas mãozinhas.
tinha-me aligeirado a resolução do problema. misturava na água umas gotinhas
para a conjuntivite e logo via se o pisca pisca diminuía – vá-se lá entender
deus e os peixes – mas o melhor é meter a viola ao saco e calar-me. não
vá o todo o poderoso aborrecer-se com este meu palavreado e ainda lhes
desarranja os intestinos – já deveria saber há muito
que os desígnios de deus são insondáveis e nunca questionáveis – começo a ficar
preocupado. sinto que o pisca pisca está mais intenso e também os sinto
mais paraditos – pudessem ao menos chorar para eu perceber a gravidade do piscar
do olhos – mas como se veria uma lágrima no meio de um oceano? os peixes são
uma dor de cabeça – pensando bem. talvez nesta coisa das lágrimas a
minha preocupação seja uma tolice. os peixes não choram não por não
terem lágrimas. mas porque não tem sentimentos – a verdade é que também
conheço muitos humanos assim. sem lágrimas e sem sentimentos e não vivem
no meio do oceano – quem sabe se deus quando criou o mundo animal tenha
concebido os peixes propositadamente assim. diferentes de todos os
outros animais – talvez quisesse um animal que não fosse bem animal. distinto
de tudo o que tinha criado até ao momento. distante dos homens.
escamado. com guelras para sobreviver escondido na água. frio.
sem sorrisos. com mau feitio e indiferente a tudo que existe fora do
mundo aquático – e por mais tentativas do homem para influenciar o seu modo de
viver. domesticar. ou até mantê-los em cativeiro. a
resposta seria sempre um desapego silencioso por tudo o que o rodeia.
sem emoções. sem latidos ou abanares da cauda. sem rosnar.
sem miar. sem asas e sem sonhos – tudo o que este animal marítimo
traz ao mundo dos humanos é um alheamento sincronizado do movimento das
barbatanas com o abrir e fechar das guelras. abana o rabo e pisca os
olhos para assinalar a marcha pela profundeza dos oceanos – deus
substituiu-lhes então as mãos por guelras para que não pudessem abraçar. de
seguida. tirou-lhe a voz para que não pudessem dizer: gosto de ti
e ainda insatisfeito. trocou os pulmões por guelras para que não
pudessem arfar quando se apaixonassem – por fim. meteu-os nos oceanos e
mandou-os multiplicarem-se. dizendo-lhes: vocês serão o maior
desafio para a humanidade – os homens nunca compreenderão a vossa
indiferença. nem tão pouco aceitarão a forma como vos amais – e assim se
fez a vida dos peixes desde a criação do mundo até à compra do meu aquário – a
vida dos animais com guelras é realmente muito complicada e insípida – foi
quando pensei como a criação do homem foi especial. como é bom dizer a
alguém gosto de ti. abraçar e sentir o calor da retribuição. o
carinho de um abraço. um sorriso. uma palavra ou uma lágrima – deus
fez um grande trabalho – enquanto me inebriava com as correrias dos guelras. sentado a meu
lado o meu cão seguia atentamente as acrobacias dos seus novos camaradas com
espanto. percebi no seu olhar que estava feliz. não sei se por
achar que teria ganho mais cinco companheiros. ou apenas porque estava solidário
com a minha alegria – a vida só tem sentido quando não desistimos dos afetos.
mesmo quando esses afetos são difíceis de alcançar. como com os peixes –
encostei a minha cara ao aquário e com um sorriso de quem gosta de fazer novos
amigos apresentei-me: sou o sampaio. muito gosto. sou o
vosso encarregado de bem-estar. espero que se sintam confortáveis na
vossa casa. que também é a minha – fiquei à espera de uma resposta
emocional. um olá. uma cambalhota com um mortal à retaguarda. um
borrifo de água. mas nada – foi quando fui levemente surpreendido. depois
da apresentação fiquei com a ideia de que já não piscavam os olhos e.
estava para jurar. que até sorriam – fiquei em paz e resolvi não mais questionar
ou mudar o que deus fez – olhei novamente… e decidi batizá-los.
escrevi o texto: aquário
sampaio rego 20 de novembro de 2019
aquário
os meus olhos encheram-se de peixes – eugénio.
amarelo. explícito na sensibilidade – camões. nos olhos a sua
marca – excêntrico. chama-se dali. são cores – torga. veste-se
de negro. talvez saiba da morte – pessoa. sempre ele. um
vira casacas. à noite caeiro – eu… sou aquário de ascendente
[hoje]. mas só depois de carneiro
sampaio rego 20 de dezembro de 2010
11/11/2019
serei o quê?
um dia
serei o quê?
um abraço
uma voz
um amigo
um
inimigo
um viajante
um bobo
um
escritor
um poema
um
caminho
uma forma
de andar
um dia serei
o quê nesses vossos olhos?
um sopro
um lenço
de mão
uma
palavra
um beijo
uma forma
de rir
uma
lágrima.
uma
fotografia
um
momento
um sol
um dia
que se cruzou numa rua
um dia serei
o quê nessa vossa boca?
uma
oração
um pecador
um
sedutor
uma flor
um gesto
uma fé
um
sorriso
um
teimoso
um
sonhador
um carro
de velocidade
um dia serei o quê nessa vossa recordação?
um arrependimento
um arrependimento
um azar
um
desastre
um amor
uma
paixão
um pai encantado
um filho
extremado
um marido
apaixonado
um avô
história
uma
saudade que não passa
um dia
serei o quê?
serei o
quê nessa vossa vida?
serei
para vós o mesmo quando o inferno me pungir a alma?
serei
para vós o mesmo quando o céu me postular não o que vós pensais. mas o que as
mãos carregam?
serei
adeus ou serei goodbye
serei
lágrima ou serei silêncio
serei
saudade ou serei vai com deus
serei
cerimónia fúnebre ou serei cerimónia de conciliação
tudo o
que sou será pertença de um único dia: o dia do juízo final
e então…
nesse dia estúpido
serei o
quê nesses vossos olhos?
serei o
quê nessa vossa boca?
serei o
quê nessa vossa memória?
alguma
coisa sei que serei
porque
ser nada
seria
castigo que não mereço
07/11/2019
teatro
[dedicado a júlio saraiva poeta e
jornalista já falecido]
sou teatro…
parei agora para pensar um pouco
sossegar-me destas aflições
vocês compreendem…
não é fácil representar toda a vida.
nesta pausa
posso ser quem sou
inclino-me,
seguro a cabeça com as mãos
fecho os olhos
e vestido a preceito desde a última
cena
viajo até à nascente,
lá… onde vivem as fadas.
neste encontro,
não preciso do ponto
nem do contraponto
e nas luzes da ribalta
surgem sonhos infrangíveis
neste pensar, encontro-me
em palcos dourados,
tribunas,
plateias,
camarotes,
frisas e palmas
é o teatro gigante
e eu tão pequeno
tudo esgotado,
tudo de pé
chamam-me os aplausos
em coro,
acenam cachoeiras de flores
que eclodem aos meus pés.
é a primavera
pensava eu.
…
mas os olhos ainda raíam
deste descer à verdade.
rompem as pancadas de molière
o contrarregra vai subir o pano
também eu subo à vida
acabou o teatro.
no dia em que postei o teatro no luso
poemas. agosto de 2009. recebi uma mensagem privada do poeta e
jornalista júlio saraiva que. amavelmente. fez questão de me
dizer que tinha apreciado imensamente o poema e. na sua simplicidade.
pediu-me autorização para o levar para o seu blogue – nem queria acreditar que o
júlio saraiva se tinha dado ao trabalho de me escrever. que me elogiasse
e quisesse divulgar o poema na sua página – é a primeira vez que torno público
este episódio. confesso que fiquei um pouco envergonhado e pensei:
e agora o que vai ser de mim. como vou manter o nível. que dirá o
júlio quando ler o meu próximo poema – admito que nunca me senti nem confortável.
nem feliz com a poesia. só a prosa me enredava o tempo com alegria – entrei
em pânico e achei que o melhor para a minha poesia seria silenciar-me.
quanto menos pessoas soubessem deste episódio melhor – não sei se alguma vez o
postou. confesso que não sou muito bom a tomar conta da vida dos outros.
mas também não é importante. valorizo mais o impulso. valorizo
mais a verdade do momento. e esta é sempre mais apreciada quando emerge na
espontaneidade – uns tempos depois faleceu e nunca tive oportunidade de lhe
agradecer aquele gesto. principalmente. nunca tive oportunidade
de lhe dizer como aquela mensagem. naquele momento. me ajudou a
renovar a vontade de escrever – o luso era um espaço pequeno para tanto ego
gigante. sobrava a vaidade. a arrogância. a falta de
humildade e. principalmente. o bom senso e a tolerância – reconheço
que havia colegas intragáveis. com mau carácter. monstrinhos egocêntricos
que projetavam uma grandeza que em boa verdade não tinham – ser grande entre os
pequenos não os tornavam especiais – não era fácil lidar com esse lado negro
dos poetas – mas bem lá no fundo confesso que aprendi muito
com os meus camaradas do luso e a todos estou agradecido – depois. tal como os
mágicos fazem magia. o júlio também fez acontecer um momento excecional
para mim – durante um tempo esqueci tudo o que era mau – a modéstia chega sempre
mais depressa por quem não precisa de se por em bicos de pés para ganhar altura.
já são grandes e ponto – que nunca lhe falte nada esteja ele onde estiver. mas
se faltar. que não seja papel. lápis e… amigos. para que.
em companhia. beba o seu “choupinho”
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