.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

26/02/2021

mostra-me um homem cem por cento satisfeito e eu mostrar-te-ei um fracassado





pintura hiper-realista - steve mills

 


estou cansado de viver dentro deste cérebro tagarela: de um lado os pensamentos sem interesse. do outro. os pensamentos longos. capazes de dizer quase tudo. e o corpo paralisado. com medo de lhes tocar. com medo de os degolar. de os matar. de acabar de vez com as narrativas apólogos – os pensamentos mortos não servem para nada. ninguém escreve com pensamentos que não respiram. em putrefação. a cheirar a defunto. a cheirar a fim – quando me ocupo de mim. pergunto-me: o que fazer com o que penso? o que fazer com as interrogações do que penso – é então que ganho coragem e escrevo o que me vem às mãos. escrevo para memória futura. para os que por cá ficarão depois da minha insignificância partir – um dia. quando os filhos dos meus filhos quiserem compreender melhor a sua prole. com as suas virtudes e defeitos. terão o que escrevo. que é muito dos meus pais. que é muito dos avós que não tive. que é muito de uma linhagem que não conheço – quando me escrevo não quero que tudo faça sentido. quero que encontrem algum mistério. mas também certezas – quero que encontrem brigas. mas também paz – quero que encontrem amor. mas também desencanto – quero que encontrem erro. mas também acerto – quero que encontrem desilusão. mas também uma genialidade tonta para criar coisas – quero que encontrem a fé com que faço essas coisas. quero que encontrem o vigor com que acredito nessas coisas que faço. e de nunca me dar por vencido – é com a certeza de que um dia tudo fará sentido que organizo por ordem de importância os pensamentos. e levo-os à boca. e ali fico a mastigá-los. revolvendo-os. tomando-lhes o gosto. medindo a sua intensidade. a sua doçura. ou raiva. ou indignação. ou ainda esperança – largo então tudo no papel. como se fossem cuspidos a vómito. e é quando se dá a reação química. digo química como poderia dizer milagre: apareço nas palavras em carne e pensamento – um dia quando me encontrar na decantação final. quando o que não tem importância deixar de ter mesmo importância. ficarei apenas eu. sentado numa cadeira. a escrever o que sei. e sei sempre tão pouco. a imaginar como serão os que depois de mim virão – “mostra-me um homem cem por cento satisfeito e eu mostrar-te-ei um fracassado - thomas edison” – não desisto de fazer a diferença. digo. já fiz a diferença. os meus filhos são os meus passos a caminhar pelo futuro



22/02/2021

sampaio. simão. antónio...





pintura - rené magritte


 

sampaio!? queria chamar-me outro nome qualquer – sampaio deriva a partir do latim sanctus pelagius. que significa santo pelagius. santo marinho – com o passar do tempo acabou por sofrer algumas alterações na grafia. passado a sam peaio. são payo e. por fim. sampaio – em portugal teve origem num senhor de honra em trás-os-montes: vasco pires de são payo. que tinha a sua morada numa aldeia perto de vila-flor – muito bem. eu até gosto dessa terra para lá dos montes. mas sou minhoto e não faço a menor ideia se algum dos meus antepassados viveu nesses solos que suportam três meses de inferno e nove de inverno – a questão é que me saturei do sampaio. parece-me um nome com pouco sal. com a fonia um bocado esguia. e sempre que alguém me chama sampaio. traz-me a esperança de que o meu pai ainda está por perto – ao senhor meu pai o nome caía-lhe como a honra do vasco pires. já a mim. não sei porquê. mas fico sempre com a ideia de que não tenho destino para sampaio. nem a honra do vasco – precisava de ser muito mais bonito. mais assurgente. com mais visibilidade. mais certeza no futuro. com um bigode a sombrear o lábio. precisava de mais sorrisos de dia e mais sono á noite para sossegar a sorte – custa-me saber que vou morrer com este nome de gente importante. gente que veio de roma com pergaminhos de centurião e eu. perdido à procura de um nome que diga a bota com a perdigota – às vezes gostava de me chamar simão. não o leproso. mas o simão que foi pedro. o pescador. que no meu caso seria não um pescador de peixes. mas da vida. aquele que tem fé e acredita. e que para cada acontecimento menor. sabia pela fé que haveria de chegar um objetivo maior – heráclito dizia que nada é permanente exceto a mudança – por isso é que não quero mais chamar-me sampaio. preciso de mudança. preciso de outro nome para o que resiste em mim. para o que não sei escrever. para o que não sei dar vida – sampaio cansa-me. gela-me os pés. e não raras vezes deixo de andar – depois. as mãos. sinto-as trémulas. enrilhadas. a ficarem moribundas de medo. como se já soubessem que a vida já não traria dignidade – por último. o coração. a bater devagar. a bater gelo. gelo-pedra. pedra inútil – e o ar. pesado como chumbo. a carregar desassossego – um coração pedra só dá beijos gelo-pedra – toda a humanidade quer mudança. porque só com mudança sobrevive ao paradoxo temporal: não vamos ao passado mudar nada. como acontece na ficção. mas tudo o que fizemos no passado muda o futuro – o manifesto político de marx e engels pedia para que os proletários se unissem. que se revoltassem porque a única coisa que poderiam temer era os seus grilhões – também eu sou um proletário. e o júlio. o antónio. o saramago. o luís. a florbela. a sophia. e o simão também seria. todos têm em comum os grilhões. e por isso escreveram os seus “manifestos” – eu também gostava de escrever o meu. não o manifesto do que nasce nestas mãos ingratas. não. mas o manifesto do que penso. do que sinto. e às vezes sinto tanta coisa – mas rapidamente dou conta de que simão também não seria um bom nome. está muito ligado á cristandade e eu pequei demasiadas vezes para andar a bater com a mão no peito – não quero chamar-me nome nenhum. nem simão. nem antónio. nem saramago. nem luís. nem florbela. nem sophia. talvez me chame tonto – tenho que aceitar o que sou. e acatar com obediência o destino arrastado que me tocou – a minha absolvição mora agora ao pé de uma cruz que já não aceita crucificações – talvez o melhor seja mesmo morrer sem nome. inutilmente sem nome – a minha última morada será um frasco de cerâmica. e a lápide escrita a burrona por fora: aqui jaz tudo o que este tonto foi 

 

 

19/02/2021

palavra





pintura - gustave caillebotte

 

 

o padre lorenzo milani disse: “enquanto houver uma pessoa que sabe 2000 palavras e outra sabe 200. esta será oprimida pela primeira – só a palavra nos torna iguais” – é por isso que me amarro a cada palavra que aprendo. para me deixar de sentir oprimido. para me libertar do cativeiro da incerteza. e do medo que guardo do mundo dos pensadores – penso como seria diferente se soubesse mais palavras. como me sentiria mais livre a escolhê-las. a torná-las mais minhas – mas não me escondo atrás do que não sei. olho o mundo e escrevo o que me escorre pela ladeira do tino – depois. deixo as palavras fazerem o sentido contrário. regressa tudo ao pensamento. não com a singeleza com que as levei ao papel. mas mais judiciosas. mais equilibradas. mais informadas. a dizerem mais coisas. coisas que nunca imaginei que pudessem dizer. e interrogo-me: são minhas as palavras. ou de outra entidade desconhecida? foram contaminas no novo mundo? ou apenas amadureceram? ganharam competência de se reproduzirem assexuadamente? ou sexuadamente? não importa o que penso que sei. ou não sei. nem porque as escrevo assim. ou de outro modo. se são cultas. ou iletradas. o que importa mesmo é saber que a arte nem sempre pode ser compreendida. a arte é a procura do belo – é o meu belo que procuro levar-vos quando escrevo – toda a cultura é humanista. e eu. enquanto “sarrabiscador”. gosto de um humanismo universalista. gosto de manter a minha janela aberta ao mundo de todos – eu estou no centro do mundo. e todos contribuíram para o que escrevo – termino com uma máxima do escritor e pensador mário cobos: “Nada acima do ser humano. nenhum humano abaixo de outro”  eu digo: nada acima do pensamento – nenhum pensamento abaixo de outro – o que me chegar por bem. no bem guardarei. e ao papel levarei – é isto que sou. uma letra insignificante no mundo da escrita

 


12/02/2021

chocolate quente





foto - google

 

 

esta semana na RTP1. no programa entrevistas “na primeira pessoa”. a jornalista fátima campos ferreira teve como seu convidado o herman josé krippahi – o herman josé é um prodigioso actor. humorista. entertainer. músico. compositor. considerado o pai do humor em portugal – entrevistar alguém com as habilidades cognitivas do herman. e com uma narrativa de vida ímpar. é para qualquer jornalista um momento relevante na sua carreira profissional. e uma excelente oportunidade de proporcionar aos espectadores a descoberta de um lado íntimo e pessoal do entrevistado que. geralmente. nos é ocultado enquanto artista – óscar wilde dizia que um homem culto é aquele que sabe encontrar um significado bonito para as coisas bonita – o herman nesta entrevista mostrou-me isso mesmo – a certa altura da conversa a fátima faz uma referência ao seu pai. perguntando-lhe como tinha vivido a sua morte – depois de uns breves segundos de reflexão. responde: as memórias do meu pai são um chocolate quente de inverno – fiquei maravilhado com a expressão. e percebi rapidamente que é esse chocolate quente que bebo com as memórias do meu pai – apesar de o ter perdido há vinte e quatro anos. as suas recordações são agora para mim. um chocolate quente delicioso e aconchegante – a sua saudade continua a marcar o meu tempo. e de uma forma geral de toda a família – continua a ser a figura máxima de uma linhagem que não o esquece. e a guiar-nos com o seu exemplo de amor. tolerância. bondade. perdão e serenidade – o seu legado somos nós: filhos. netos e bisnetos – apesar das suas memórias serem um maravilhoso chocolate quente. a saudade de o abraçar não arrefece




08/02/2021

eu. o meu primo toni e o meu pai





fotos google



 

tinha acabado de saber que o meu pai e a minha mãe iriam viajar. no dia seguinte. para estremoz – nessa bonita terra alentejana. havia um daqueles curandeiros com mãos milagrosas. constava pelo país dos doentes. que com mezinhas e pancadinhas punha as colunas mais rijas do que as colunas dóricas do parthenon – a viagem na época não era fácil. não havia autoestradas. e os quatrocentos quilómetros eram feitos no vagar da preguiça. devagar. devagarinho. e quase parados – a coluna da minha mãe. maltratada pelo trabalho. já não dava para grandes estiradas [pensava eu]. a opção era pernoitar pelas redondezas. descansar. e regressar pela manhã do dia seguinte – para mim era uma grande notícia. em boa verdade. o curandeiro podia até ficar nos montes urais. quanto mais longe. mais quilómetros de liberdade. com carro e casa só para mim só podia mesmo ser dádiva do céu – não ficava bem sozinho. ficava com a lurdes. governanta da casa e do meu equilíbrio financeiro. era ela que aumentava significativamente o meu pecúlio semanal. ao desviar uns trocos do orçamento que mantinha a casa nutrida – nos dias de hoje seria acusada de peculato e abuso de confiança – mas para ela o crime compensava. afinal eu era o seu menino d’ouro. e como a cozinha era farta. menos uma rasa de feijão não conduzia a nenhum tipo de racionamento. e permitia-me manter o nível de vida abastado mas isto de conduzir sozinho era um aborrecimento. na adolescência precisamos sempre de um compincha. uma testemunha viva e credível. alguém que pudesse confirmar. sob palavra de honra. a destreza e coragem dos feitos. e para isso. nada melhor do que o meu primo toni – o toni tinha menos um ano do que eu. mas muito mais ajuizado – creio que estaria por volta das catorze primaveras. um companheiro fantástico. bom. às vezes temos medo de dizer certas palavras. mas o toni era um rapaz excecionalmente bom. educado. nada malandro. sossegado. gordinho. cara redondinha. uma falha nos dois dentes do tamanho do arco da porta nova de braga. sempre a escorrer água. inverno e verão gotículas de transpiração caíam-lhe em bica pela face. como se estivesse permanentemente em exercício físico – era uma joia de rapaz. ainda o é. ainda há poucos meses tivemos oportunidade de rever e gargalhar com algumas das nossas malandrices [com tempo contarei outras façanhas nossas] – foi muito bom aquele encontro. fez-me muito bem. lavou-me a alma. uma prova de vida e de memóriamas como ia dizendo. o meu primo era muito sossegadinho. mas quando estava comigo alinhava em tudo. era o compincha ideal para a minha intrínseca necessidade de movimento e ação – bem. adiante os meus pais saíram e o meu primo veio para minha casa. e por lá nos mantivemos num reboliço saudável e nada perigoso durante todo a hora de laboração da fábrica [os meus pais tinham uma pequena fabrica de artigos de pele] – naquele dia as horas teimavam em manter-se atrasadas. a noite aproximava-se persistentemente lenta. e enquanto a empresa não encerrasse não havia carro. este estava alocado a serviço externo e sempre em movimento – jantamos cedo o que era hábito em minha casa. e logo logo saímos porta fora com a chave da 4L na mão: depósito cheio. e prontos para fazer quilómetros – dois putos. menores de idade. sem carta e sem nenhuma noção da gravidade das suas ações. e mais grave. motivados para perigosas infrações ao código da estrada. para piões. derrapagens. para não falar no excesso de velocidade – a juventude dos rapazes tem destas coisas. precisam de adrenalina para crescer. para se fazerem homens – a minha sorte é que a lurdes era. ainda é. pegada aos santos e ofícios da igreja. uma devota de cristo. e as suas preces começavam sempre com um pedido expresso de proteção à família e. em particular. ao seu menino – e para que não houvesse esquecimentos. e como agradecimento ao sagrado. oferecia umas missas de ação de graças. e velas de luz e fé – “quem vive a sua fé brilha como a luz” [jesus]. a lurdes vivia a sua fé e brilhava como mais ninguém – com a devoção da lurdes tenho a certeza de que andava comigo sempre um anjo da guarda. ela e o santíssimo era tu cá. tu lá – bons tempos – a primeira paragem foi no café luso-brasileiro com uma entrada de cernelha. em grande estilo. com o corpo a bambolear de um lado para o outro. pernas arcadas. em estilo forcado aldo lima: “oi. oi. oi. ei amigos lindos”. e em vez de levar as mãos à cinta. levava a chave de ignição em exibição pindérica era muito gajo àquela hora da noite. bem-trajado. com estilo. com carro. só nos faltava mesmo duas gajas boas para arrasar. a inveja dos meus amigos escorria como óleo pelo chão da casa de pasto – era uma época diferente dos dias de hoje. os carros eram escassos. e os que havia. na sua maior parte. eram de gente com algumas posses. ou então de trabalho. a grande maioria das famílias não tinha carro. tempos verdadeiramente difíceis e de sacrifício – o café fechou. como sempre fechava pelas 23 horas. e resolvemos. antes de recolher à cama. dar mais uma curva pelas redondezas com passagem pelo bom jesus. sameiro e falperra. o triangulo turístico da minha cidade – tudo corria na perfeição. maravilhosamente bem. e os meus dotes de condutor estavam mais do que certificados – quando chego à minha rua. já tinha batido a uma da manhã na torre da igreja do carmo. qual não é o meu espanto. vejo o carro do meu pai estacionado em frente a casa – primeiro senti uma passagem de corrente trifásica pelo corpo. e de seguida. um friozinho pela espinha. e o coração numa aceleração de um motor V6. e pensei: estou metido num grande sarilho. vais levar poucas. vais – o meu primo toni ficou em transe. e se já era normal suar. a partir daquele momento começou a arfar num silêncio medroso. a arrastar a voz para o pânico. a água que lhe corria pela face era tanta que mais parecia um fontanário – bem. a questão que se colocava é como iria resolver o problema. como é que iria enfrentar o meu pai sem que levasse um bom par de estalos. e bem pior. levar o sermão da praxe e missa cantada. que doía muito mais que a pancada – foi quando tive a brilhante ideia de entrar pela porta do terraço nas traseiras da casa – não era coisa fácil. mas valia a pena tentar. a porta costumava ficar aberta. entravamos à socapa. e pé ante pé.  metíamo-nos na cama com o complô da lurdes. e quando o meu pai viesse [novamente] ao meu quarto. fingíamos que estávamos a dormir – no dia seguinte tudo seria diferente.  ao meu pai tudo lhe passava com um bom soninho. o despertar traria um novo dia. a tolerância tinha passado do vermelho a amarelo vivo. e o mais certo. era a coisa resolver-se com uma reprimenda com a promessa de que na próxima façanha apanharia a dobrar – entre a minha casa e o começo da rua havia quatro casas – a primeira fazia esquina com a praça do comércio. era um bloco de apartamentos com lojas no rés-do-chão e dois andares de habitação – na esquina a mercearia do sr. joaquim e da dona inês. mas era mais conhecida pela mercearia do “lakota”. [um dia irei escrever sobre o zeca. filho mais velho do proprietário e meu amigo] e já no começo da rua a saparia ferreira. do senhor ferreira. que não importava as vezes que eu passasse à sua porta. olhava-me sempre para os sapatos. seguindo-se uma saudação gentil. deformação profissional. seguiam-se as casas do doutor lemos. médico de família. e da dona aninhas. mãe do conceituado piloto de rally bracarense rui lages. por último. a do senhor meu pai – é agora que verdadeiramente começa a história – subimos ao segundo andar da primeira casa onde havia uma escada que dava acesso ao telhado. tínhamos que subir ao parapeito do corredor e dar um impulso para o vazio até atingirmos a escada. não era coisa fácil. se falhássemos eram apenas três andares. íamos diretos à cave. mas com a graça do senhor e do meu anjo da guarda lá subimos sem derrapagens – assim foi. começamos a atravessar os telhados. pelo caminho umas telhas partidas. a noite estava escura como breu. não dava sequer para perceber onde púnhamos os pés – o meu primo toni estava em pânico. estava tão branco que se via no escuro. mais parecia um fantasma – bem. lá fomos indo com o credo na boca. e quando demos conta estávamos no terraço – estaria tudo bem e resolvido se a porta da cozinha não estivesse fechada. ficava aberta todo o ano. mas naquela noite estava fechada a trinco e ferrolho – só podia ser gozação do meu anjo – agora é que estávamos metidos numa grande alhada – comecei a forçar a porta. mas depressa a luz se acendeu. pensei: é a lurdes. tinha sono de passarinho e ao mínimo barulho acordava – soube mais tarde que era o meu pai – mas pelos visto ninguém dormia naquela casa. a minha mãe sentada na cama em ais de aflição. a lurdes em orações à santíssima trindade. e o meu pai. que já sabia do que a casa gastava. a prometer fazer de mim um saco de boxe. a brincadeira estava perigosa e em roda livre – escondemo-nos a um canto e esperamos que a luz se apagasse. a solução era fazer-me homem. entrar pela porta da frente a cantar a portuguesa e resistir até que a voz doesse –não demorou nem cinco minutos e ouvimos o carro do meu pai a zarpar em alta velocidade. tinha ido á minha procura. de cabeça perdida. a rogar-me pragas e coriscos. confesso que com razão – depois de uma viagem cansativa. com a minha mãe aos ais e lamentos de sorte. chegar a casa de noite. esgotado. e não poder descansar porque o filho taralhouco se lembrou de dar umas voltas com o carro da empresa. ninguém merece ter um filho assim – mal ouvimos o carro a arrancar voltamos a subir ao telhado. atravessamos outra vez os telhados. desta vez como íamos em passo de corrida quebramos as telhas que faltaram com a primeira passagem. descemos o mais rápido que era possível. e plantamo-nos em frente à porta de casa – o objectivo estava cumprido. chegar a casa antes do meu pai – abro a porta. e com as costas hirtas. o queixo erguido em modo de coragem. enfrento as escadas como se fosse para o cadafalso. tinha valido a pena. foi uma grande noite de piões e acelerações o meu primo toni estava um farrapo. completamente branco e desfigurado. não sei se tinha anjo protetor. mas estava a precisar de amparo espiritual. as pernas entraram-lhe em fraqueza. parecia que estava a subir o everest – coitado podia ter morrido naquela noite. aquele coração já não era um motor V6. pelo barulho era mais um V36 com as vielas partidas – a lurdes de plantão ao cimo das escadas. em camisa de dormir. com cara de padeira de aljubarrota.  só dizia:

- o menino não tem juízo. valha-nos nosso senhor. os seus pais preocupados. valha-nos nosso senhor. e acenava a cabeça com tanta força que até fazia corrente de ar  

mal se acabava de subir as escadas tínhamos o hall com a sala de visitas à esquerda e o quarto dos meus pais à direita – a luz do quarto estava acesa. abeiro-me da porta com cautelas. da maneira que corria a eletricidade naquela casa nunca se sabia se os sapatos tinham ganho asas. felizmente que não. estava apenas a minha mãe sentada na cama. não sei se por causa das costas. se por mim. mas pela cara o prenúncio não era bom.  o pior podia muito bem estar para chegar – perguntou-me aonde é que andava. não sei o que lhe disse. mas com certeza alguma parvoíce. alguma desculpa esfarrapada. e diz-me uma frase que guardei para a vida

- o teu pai vai-te matar

o meu primo entrou em colapso. já não abanava. quebrou. ficou mudo e só voltou a articular palavras com tino no dia seguinte. deve ter pensado que se o meu pai tinha coragem para me matar. a ele. então. seria morto e esquartejado – fomos rapidamente para o quarto e é quando eu tenho mais uma brilhante ideia. e digo ao toni: mete-te na cama rapidamente. cobre-te. enrola-te nos cobertores. não deixes nem o nariz de fora.  o meu pai quando está zangado fica de cabeça perdida. quando começa a dar porrada as mãos só param quando lhe faltam as forças. para te partir um braço é com duas palheiras – assim fez o meu primo. enrosca-se nos cobertores. não se via nadinha daquele corpo redondinho. apenas uma lomba nos cobertores. parecia uma trouxa de roupa. e eu a seu lado também coberto até às orelhas. mas com uma pequeníssima abertura para o lado do meu primo – não podia perder ponta da história – quando o meu pai entra casa digo ao meu primo toni: não te mexas. mesmo que apanhes alguns tabefes não te mexas. é muito pior. e nem te ponhas com lamechices. não abras a boca. se te mexeres ou gemeres irritas muito mais o meu pai. e é menino para te partir os dois braços – e assim foi. o que ele não sabia é que o tinha deitado no meu lugar. era mesmo um bandido da pior espécie – o meu pai entra pelo quarto dentro. encosta-lhe a boca à suposta minha cabeça. e com a voz muito alterada. de cabeça completamente perdida. diz a berrar umas quantas ameaças e juras de que no dia seguinte a coisa não ia ficar assim – nem sabia se o meu primo estava morto ao vivo. creio que deixou de respirar só para não se mexer. coitado. podia ter morrido do coração [era a segunda vez no mesmo dia] – eu. bandido mesmo. debaixo dos cobertores divertia-me à brava e só esperava pelo primeiro safanão para dar cor a uma noite inesquecível. a cereja no topo do bolo – o toni esteve em paragem cardiorrespiratória. mas felizmente recuperou. não foi fácil. a taquicardia era aguda – eu sabia perfeitamente que no dia seguinte já não haveria consequências de maior. tudo se resumiria a uma conversa e mais umas quantas ameaças – o meu pai era um homem bom. com uma tolerância de anjo. sabia como ninguém o que é ser jovem. era um ser de luz. não conheço ninguém que não gostasse dele – para o meu pai tudo se resolvia com uma conversa.  fiz-lhe coisas que não lembra ao diabo. era um terrorista – nunca conheci ninguém com uma alma tão gentil como a do meu pai – hoje. percebo o seu sofrimento. deus me livre de um dos meus filhos me ter feito algo deste género. confesso que não sei se teria a mesma bondade do meu pai. os tempos também são outros – mas não creio que tenha sido um mau filho. era apenas um jovem com uma vontade enorme de crescer e fazer coisas – ainda hoje mantenho essa energia e esse espírito




 

05/02/2021

aurora & aurora





foto google




enquanto a noite teima em mirrar. a teimosia teima em desabrolhar – as estrelas abalam delicadamente para norte. marte apaga-se. e a lua toma a china com o seu luzente luar – e eu em hostilidades com a deusa do alvorecer. pergunto-lhe: porque me trazes o sol se só me encontro no escuro – porque me mostras o mundo. se quando caminho por ele me perco – e é nesta luta de sombras e luz que me esfarrapo por encontrar uma palavra especial. para um escrito que se quer também especial – mas. infelizmente para mim. a perseverança confunde-se com a falta de arte. ou de dicionário – é assim a vida de quem peneira palavras em rio seco – como não estava a ter arte nem sucesso nesta busca doentia. fui assolado por um pensamento: porque raio de sorte. ou coisa de uma qualquer identidade maior. é que quando nascemos não trazemos um manual de instruções – facilitaria imenso a nossa vida – ajudava a montar o destino: seguíamos as etapas da nossa criação em folheto. e no final eis: igualzinho a mais mil da linha de montagem – sabias pela mecânica da montagem o que te estava destinado: não serás escritor. não serás cientista. não serás condutor de ambulâncias. não serás livreiro. nem aquele polícia de barriga e bigode farfalhudo – serás parvo – o melhor parvo do mundo. modelo de luxo. com alguns extras que irão fazer de ti um parvo especial. uma edição limitada: fígado com capacidade de destilação extraforte para whiskys velhos. gin com predominância de zimbro. margaritas coloridas. e vodka preta e branca para prevenir o racismo – pulmão com filtro de carvão activo. preparado para receber qualquer tipo de fumaça: cigarro três vintes. canábis do alentejo. charutos de havana. e até fumo de carros com o motor partido – na cabeça dois olhos que enxergam tudo a cores. com focagem automática do rico e do pobre. do roto e do nu. da virtude e da aldrabice. do escritor e do rabiscador. e quando não quiser ver fecha os olhos. e tudo fica bem – duas mãos que não sabem escrever. nem apertar parafusos. nem moldar o gesso. pintar. dar cartas. ou roubar carteiras. em boa verdade. duas mãos inúteis – duas pernas prontas para fugir. para jogar à bola. à macaca. e ao esconde. esconde. e ao corre que a vida vai-te apanhar – seria um gajo de outro mundo. talvez até alien. ou mesmo criação divina. com tecnologia de ponta. coisa de anúncio de TV – bem sei que tinha que mudar hábitos. e em vez de rezar a um deus poderoso e omnipresente. rezava aos técnicos de software – era como se nascesses com o destino certificado. com garantia. código de barras. e número de série – se alguma coisa corresse mal reclamava-se à detentora dos direitos de produção. que logo enviaria um técnico especializado para reparar o desvio no destino traçado. e se a coisa fosse grave: sucata com o podre. e substituía-se a máquina por um modelo mais recente e fiável – e a vida voltaria ao percurso talhado – aurora. aurora. deusa dos dedos rosados. como lhe chamava homero. porque me iluminas estas mãos inúteis. se é na escuridão que as sinto – e assim estou. com voltas e mais voltas. e a interrogação persiste: porque raio me meti por este atalho? possivelmente. por culpa de algum fusível no lóbulo central. ou curto-circuito nos neurónios. talvez tenham apanhado humidade. gosto de sonhar com gaivotas. com o mar de uma forma geral – a salitra corroeu as ligações – ou sabotagem: a parteira em vez de me dar uma sapatada no rabo deu-me um murro nos circuitos – ando para aqui em volta das palavras que não me levam a lado nenhum – por este andamento nem como parvo me distingo – mas se não há livro de instruções porque raio é que a janela não me mostra o futuro? porque raio é que plantaram à minha frente uma cordilheira que chega ao céu – porque raio é que não tive direito a um jardim de magnólias. e no seu meio um portal para viajar no tempo. ou um banco feito de esperança para poder catar o verão – estou nu. com os fios descarnados. tão nu que nem as vogais querem nada comigo: chamo-me smp rg – eu corrijo-me. acreditem. eu corrijo-me. apago as consoantes. antes me quero invisível. a parvo nas bocas do mundo – todo o homem precisa de um pedaço de terra para viver. a minha terra são as palavras. os meus sonhos as raízes. a minha força a família

 

p.s. – a minha irmã chama-se aurora. é também uma deusa e mais velha do que eu treze anos. e ainda esta semana lhe dizia que uma das minhas mágoas persistentes foi não ter os nossos pais mais novos. gostava de ter brincado com eles. de viver um pouco a sua juventude. de os ter mais perto de mim. menos adultos. menos responsáveis. menos preocupados – mas não lhe disse tudo. também gostava de a ter tido a ela mais nova. adolescente. menos senhora. menos aperaltada. sei lá. podíamos ter ido à discoteca. e ser eu a tomar conta dela. em vez de ser ela a tomar conta de mim – a vida é o que é. e nada pode ser alterado. só as palavras é que podem ser diferentes. é isso que faço. escrevo para tornar tudo diferente. porque em boa verdade. o que amo mesmo neste mundo. é a minha família. que para mimcomeçou nos nossos pais