hoje. voltei a entrar em tua
casa e lembrei-me da parábola do filho perdido – empurrei a porta e caminhei.
benzi-me. ajoelhei e falei-te como se nunca te tivesse abandonado – mas a
verdade é que não estavas lá para me ouvir. não me vieste receber de
braços abertos e não mandaste “matar um cordeiro para fazer um banquete porque
este teu filho estava morto e reviveu. andava perdido e foi encontrado”*– a
tua casa estava cheia de silêncio e os teus santos. sisudos. não
tiraram os olhos do céu – era como se nada vivo existisse entre o teu altar e a
porta que deixa entrar gente magoada – percebi então que não pequei contra o
céu – não se pode pecar contra o que não existe – levantei-me. passei
por s. judas tadeu e meti na caixa das esmolas um papelinho com um
recado para ti: estou em minha casa
pôr-do-sol – um gesto. uma cabeça cheia de
incertezas e os olhos pousados em coisas sem mobilidade: um candeeiro.
um lápis. uma agenda de um ano que já não me lembro. uns
quantos papeis sem o menor interesse. uma miniatura da nau de cabral e
uma parede paspatur – nesta parede existo como nunca vivi [as máquinas
fotográficas escondem coisas do tamanho do king kong] – voltemos ao pôr-do-sol.
voltemos a um não defunto avelhentado. escurecido de medo.
desacertado do relógio. do tempo que passa. da régua que mede e
de um mar-gaivota a planar no peito – tenho a certeza que numa outra vida fui
marinheiro – olho as mãos e mudo-lhes a cor. atiro-as para os raios de
luz e amarro-me ao que escapa da escureza – entre os dedos um rosário de coisas
a passar como se fossem feridas – será que ainda sou eu? ou será que se me
aplica o paradoxo do navio de teseu? acho que já nada resta do que me trouxe a
este pôr-do-sol. não tenho a mesma forma. nem os mesmos sonhos.
as mãos fizeram-se em letras e os pensamentos romperam-se pela inutilidade –
estou amarrado num corpo que se metamorfoseou para chegar a adulto – estou
agora numa espécie de estágio de crisálida. estou parado.
enrolado na vida a tentar compreender o meu insofrimento à incerteza – estou a
pensar e a sentir o corpo. a respirar em forma de perdão – quem não pede
perdão nunca será perdoado – não posso chegar ao futuro sem ter a certeza de
que a minha intolerância à incerteza não tem uma explicação – respiro.
concentro-me na parede paspature caminho de foto em foto– vou –
“nenhum vento sopra a favor de quem não sabe pra onde ir”*–
não
sei se a incerteza nasceu comigo ou
se me entrou no corpo com a primeira golfada de ar – há coisas que nunca
saberei. talvez seja melhor assim. às vezes é melhor não saber a
verdade – sei que a incerteza mora com os fantasmas. percorre as mesmas
paredes. os mesmo cortinados. as mesmas luzes escorridas.
os mesmos sons escondidos e solta as mesmas lágrimas – o que sei mesmo é que
tanto a incerteza como o fantasma precisam do humano para existir – e aqui
estou. parado. quase sem respirar. a controlar o medo.
a justificar-me com o paradoxo de teseu. a dizer que sou o mesmo apesar
de quase nada restar das incertezas que me fizeram crescer – se vos pudesse
mostrar como foi difícil chegar a este pôr-de-sol – estou desfigurado.
alterado. o medo ganhou garras e o que era para voar cravou-se à parede
paspatur – resta-me uma obsessão doentia de uma felicidade que em boa verdade
não sei se existe – viver não deveria ser tão complicado – ”você nunca vai
saber o que vem depois de sábado, quem sabe um século muito mais lindo e mais
sábio, quem sabe apenas mais um domingo”**– toda a minha vida
viajei pelo meu corpo à procura de explicações para as incertezas.
atraquei em lugares que nem sei se existem. mas uma coisa sei.
nunca atraquei em amesterdão e nunca encontrei a ana dos olhos enxutos*** –
uma brisa me soprou que vem aí mau tempo**** – acredito que sim.
estou quase certo de que a ira de poseidon chegará logo depois do pôr-do-sol –
viver com as incertezas não é uma escolha voluntária – e aqui estou a ver
coisas. a ouvir coisas. a misturar coisas. a centrifugar
coisas. e o centro do pensamento cada vez mais estúpido.
projetando obscenidades para a parede paspatur numa discordância trapézica que
baloiça entre merece e não merece – a parede paspatur continua indiferente. mouca.
desligada da minha incerteza doentia e melancólica – e eu preso à vida de uma
forma que não a compreendo – o pôr-do-sol está [também] prestes a falecer.
amarra-se ao que resta da cidade. esvai-se entre as casas numa tristeza
depressiva. angustiante e uma brisa fria toca a janela como se já fosse
morte – será que se pode colocar o paradoxo de teseu ao pôr-do-sol? não sei –gostava de imaginar um corpo inteiro de certezas. gostava que abril
fosse o mês certo para quem quer nascer. gostava que todos os úteros se
emprenhassem de flores e pássaros e mesmo que os rios não cheguem ao mar com o
sol em vénus que o pôr-do-sol me conforte quando o corpo se fizer inverno – foi
tudo tão rápido e incerto – estou cansado. apetece-me encostar o corpo
ao vento e ficar para o dia seguinte – não há nenhum pôr-do-sol igual a outro –
neste corpo ocupado de incertezas o que resta de luz dá apenas para aclarar a
opacidade das coisas que me rodeiam – aos poucos. todas as coisas se
tornarão turvas. densas. estranhas e com formas monstruosas –
tenho que aproveitar o que resta do pôr-do-sol. esconder as sombras dos
fantasmas e correr como se ainda não fosse tarde para que a boca não sinta a
minha ausência – mas se o corpo cumprir um destino e as pedras do caminho uma ironia
sem tino. então… quero desaparecer. querochorar
prostrado o fim desta minha eternidade e que esta enorme realidade termine como
se de uma história de amor se tratasse. e porque a morte não pode ser um
equívoco. nem punhal sem desígnio. enveneno o que resta de mim
numa última golfada de ar e vomito em sangue o meu nome para as pedras que um
dia pisei – só as pedras guardam em silêncio o que resta de um homem – soubesse
eu caminhar como um pássaro e sorrir como uma amendoeira em flor e a distância
para o céu nunca seria medida de abril – como será o pôr-do-sol no dia
seguinte? tenho medo do escuro. tenho medo do que vejo no escuro.
tenho medo do que não vejo no escuro. tenho medo mesmo sabendo que
algumas coisas só existem quando penso – como se houvesse um trono para quem
vive a pensar. não há. tudo o que somos está no que gerámos com
as mãos e depois. se formos sábios. levamo-nos para dentro das
coisas universais – abril é um mês cruel – e aqui estou neste pedaço de terra
minúsculo onde existo. a olhar o pôr-do-sol a morrer para mim. e
pergunto-me se o mundo não seria mais pequeno se não tivesse nascido em abril –
vivo mesmo sabendo que não sou nada. mesmo sabendo que poderia ter sido
outra coisa que não nada. se de arte o corpo se tomasse – procuro-me até
que o destino me encontre. pois sei que no fim… tudo passará se
um pouco de mim não ficar… nem que seja apenas pesar – nunca digas nada
que o mundo não compreenda e nunca faças nada que o mundo não aceite sem pensar
– o mundo é assim. é um todo distraído e impiedoso e só fazendo parte
desse todo distraído e piedoso é que serás capaz de compreender as tuas
incertezas nas certezas do mundo – e as coisas sem parar de passar pelos dedos…
a magoar – quero esquecer tudo o que guardo nesta parede paspatur. quero
apanhar o vento e navegar no que resta dos mares. procurar-me em cada
ilha. em cada gaivota. em cada dia de sol ou chuva.
buscar-me em todas as incertezas até me encontrar com a última certeza – depois…
em paz. procuro um pôr-do-sol e relembro todos aqueles que me
fizeram existir. sento-os comigo. abraço-os e segredo-lhes vida.
peço-lhes a absolvição e por fim. aceito-me numa incerteza boa e parto
na saudade de ter existido até ao meu último pôr-do-sol… como diz
gustave flaubert.salvo se formos cretinos. morremos sempre na
incerteza do nosso próprio valor e do da nossa obra – sei que um dia abril
descansará em mim
*lúcio
sêneca
**paulo leminski:
***
música de chico buarque: bom tempo – adaptação da letra
**** música de chico buarque – ana de
amesterdão –
chico buarque venceu o prémio camões 2019 –
trazê-lo para o meu texto é a minha pequeníssima homenagem à sua carreira como
músico e escritor
gosto
de
quem passa do meu lado e também gosto de quem passa do outro lado – gosto de
quem passa para cá e também gosto de quem passa para lá – gosto de quem desce
do céu e também gosto de quem sobe do hades – gosto dos desconhecidos e também
gosto dos conhecidos – gosto dos amigos porque gosto e também gosto dos amigos
porque gostam de mim – gosto da minha família e não posso parar de gostar
porque são sangue do meu sangue – gosto da minha companheira porque sem ela
nunca saberia pronunciar o verbo gostar no incondicional – gosto de a ter a meu
lado. gosto de a respeitar. gosto de lhe dizer que é a mãe dos
meus filhos o que concede valor divino a este gostar – gosto de a segredar. gosto de a ver sorrir. de a sentir feliz. respeitada por mim e por quem lhe passa na vida. e gosto de lhe dizer: amo-te – gosto de a olhar nos olhos. gosto de a abraçar e mesmo nos dias
em que não a abraço sei que não parei de gostar – gosto do silêncio do abraço. de a trazer para dentro de mim e
escondê-la do mundo da estupidez e da raiva de quem não cabe dentro de um
abraço – gosto de abraços. de
abraçar e ser abraçado – um homem sem abraços é um homem pequenino. raquítico e enfezado – gosto de fazer
alegria mesmo que dentro de mim a tristeza não me queira ver sorrir – gosto da
vida cheia de gente. de gente que
fala. que fala porque gosta de falar
e que abraça porque gosta de abraçar – e agora. depois dos “cinquentas”.
mais sábio. mais tolerante. também gosto daqueles que encontram
desculpas para nada aprenderem com a doçura de um abraço. para a sua falta de gentileza por fadiga. de cortesia por sexismo de género. de educação por iletrismo e de nobreza por défice de excelência –
só não gosto de gente que procria a vulgaridade conspurcando as relações sociais
com um neandertalismo que julgava extinto – mas não importa. o importante mesmo é que gosto deste mundo redondo. azul. com mares. sol e sal. mesmo que às vezes me apareçam bestas
quadradas. negras. sem mares. sem sol e sem sal – mas a vida é o que é. e hoje sabe-se que a evolução do homem não está completa. e também se sabe que alguns ficaram
para trás. perderam-se na
centrifugação do mundo e foram jogados para os polos – mesmo assim. gosto de andar por cá e continuo a
gostar desta terra que herdei fruto de um abraço especial há mais de cinquenta
anos – pudesse eu explicar-lhes o valor desse abraço que me gerou. quer dizer. eu poder. podia. mas valeria a pena?! haveria QI?!
haveria vontade de sair dos polos?! não importa. existirei sempre para além da escuridão. do erro. da tristeza. da desilusão – sempre – e na minha
mão. umas quantas flores colhidas em
mim… para vocês