aprendi a
lidar com a tua morte mantendo-te perto de mim - da saudade criei abraços e do
silêncio a tua voz - viverás em mim até que te encontre
20/09/2021
zeza
eu. o parvo. e o parvalhão IV
IV.
estou
agora prostrado de joelhos. com a cabeça a tocar o chão que me sustenta o pouco
que respiro. pronto para aceitar o dia da espada cortana. mas mesmo que a
cabeça me caia nas mãos e os olhos mendiguem arrependimento. entregar-me-ei ao
desaparecimento levando comigo o meu perdão – passei então a esconder-me do
além cobrindo-me com um cobertor do melhor de mim. enrodilhando-me até que o
escuro se confunda comigo. e rogo ao universo que me deixe despedir do corpo
com honra e glória. que o fogo me queime por dever cumprido. e quando tudo o
que fui ficar em pó. possa cobrir o mar de lembranças. tal como as magnólias
cobrem os campos na primavera – das uvas se fez sumo. do trigo se fez pão. e de
mim se fez família – e depois de mais mil noites. quando os olhos de quem amei
me procurarem na estrela que um dia acreditei ser minha. que se acenda de
saudade e gratidão: viver foi o melhor que me aconteceu
12/09/2021
eu. o parvo. e o parvalhão III
III.
agora que
estou a caminho dos sessenta comecei a falar com as estrelas. com os meus pais.
com a minha cunhada zeza. às vezes. quando estou mais louco. falo até com os
botões. mas quando estou perdido dentro de mim. falo com os meus cães. ouvem-me
sempre com atenção. e por mais disparates que possa dizer. sei que nunca darão
um latido de reprovação – os animais trazem em si um amor que o homem ainda não
compreende – pela noite. quando as estrelas me cobrem de medo. falo com o anjo que
me guarda no universo. peço-lhe apenas mais um dia desta vida que aprendi a
viver. e perdão por não ter sido um pouco melhor – começo então a pensar:
quantos dias já vivi? recuso as contas. sei que são muitos. todos eles vividos num
só folego. sem serenar o pensamento. ora aparecia isto ou aquilo. e amanhã é
que vai ser. e se não for amanhã será no dia seguinte. e o corpo a arquear por
cada dia esgotado de nada. e o espelho a mentir-me: quem é o homem mais forte
do universo - és tu. és tu – e eu a caminhar para o fim. e por cada dia de vida
mais um rebo às costas – corria para todo lado sem nunca sair do sítio. cada
vez mais certo de que eram as pernas que faziam o tempo andar mais devagar –
que raio de relógio cuida do caminho feito pelas pernas? – dou corda. ando. e
mais corda. e mais caminho. e mais corda. e as pernas num desassossego
doloroso. e os ponteiros a passar das pernas aos braços. e as horas cada vez
mais esgotadas com as batidas do coração a gemer. a bater. a gemer. a bater. e
as noites cada vez mais escuras. enormes. e eu de um lado para o outro. de
estrela em estrela. a pesar e a repesar o tempo gasto numa balança cruel: deitei
dez anos no prato e acreditei que a felicidade estaria garantida. e depois mais
dez. e ainda mais dez. e mais dez. e os meus filhos homens. doces. bons. com os
olhos a luzir do avô. e dentro de mim a certeza de que lhes ensinei tudo o que sabia.
sem mentiras. com amor. um amor para sempre… para sempre… para sempre – os meus
filhos são a minha grande obra. por eles tudo valeu a pena. tudo. mesmo quando
as dores eram absolutamente cruéis. repito. absolutamente cruéis – o meu futuro
agora é hoje. amanhã se existir é porque resisti a mais uma noite. é porque
acordei para me lembrar o que deixei por fazer – tudo o que me resta é esta
espera agonizante pela missa de corpo presente. pelas últimas palavras: aqui
jaz um homem magoado. pai de três filhos bons e com os olhos do avô – agora sonho
com o dia em que voltarei aos braços da minha mãe. protegido e finalmente
sossegado. em paz – e nesta espera que às vezes desespera. peço apenas que as
pernas façam o que falta do caminho com elegância. e que a memória nunca se
esqueça de que só existo enquanto souber o meu nome – o meu mundo está
finalmente diferente. os pássaros começaram a voar baixinho. os rios passaram a
chegar ao mar tranquilos. as gaivotas perderam o medo e começaram a pousar-me na
imaginação. e a desapoquentação tomou conta dos dias. vivo finalmente – todos
temos um caminho para fazer. o destino não se muda. talvez numa outra
reencarnação possa ser um homem diferente. talvez aprenda a escrever as
palavras mais rapidamente. a juntá-las com acerto. a dizerem o que quero que
seja dito. bonitas. enfarpeladas com tecidos nobres. belas como as estátuas dos
deuses gregos. azuis como o céu. divinas por mando dos anjos. imensas como o
mar. com sol e sal. que digam apenas o que quero que seja dito. numa elegância
estonteante – passei a um estado límpido. decantado a partir de um parvalhão. vendimei-me.
pisei-me até à exaustão no lagar da vida. e extrai tudo o que me foi possível –
agora. saboreio-me. trago-me e penso: como seria se tivesse um pouco mais de
sol e açúcar – envelheci. envelheci mais anos do que os realmente tenho. e
agora. quando olho para o infinito. percebo que também as montanhas estão
diferentes. começaram a tocar o céu. e ali fico a interrogar-me: as montanhas
cresceram. ou o céu aproximou-se de mim? não quero saber. o que sei é que a
única forma de alcançar o seu cume é pela contemplação – subo então para cimo
de mim. e logo dou conta de que fico mais parecido com as montanhas – agora.
sempre que falo comigo sinto-me nas nuvens. as montanhas são do meu tamanho. e
ali descanso e sonho com o dia da saudade eterna. e interrogo-me: o que haverá
do lado de lá? ninguém sabe. mas eu já estou demasiado velho para não acreditar
em alguma coisa. por isso acredito num mundo paralelo. melhor do que este. com
uns portões enormes. um corredor iluminado pela luz dos anjos. e ao fim da luz.
mas não dos anjos. o altar dos reencontros: o meu pai de braços abertos. a
minha mãe a sorrir. a zeza com o cabelo arranjado. o meu sogro calmo como
sempre. e o tio joão a seu lado. afinal sempre foram bons amigos – o que mais
pode ambicionar um homem do que viver em família e ressuscitar em família – será
finalmente o fim de todas as interrogações. de todas as dúvidas. terei pela
primeira vez o corpo cheio de certezas – se hoje for o último dia. que as
montanhas se ergam até ao céu e as estrelas se acendam de glória pelo que alcancei
em vida. que é um pouco mais do que o meu comprimento
07/09/2021
eu. o parvo. e o parvalhão - II
II.
aos quarenta
e oito anos senti-me crescido e sensato. dividi então a minha vida em duas
partes: a parva. que tudo faço para esquecer e perdoar. e a não parva. que
quero glorificar – aprendi a marcar o caminho que fui fazendo com grãozinhos de
mim. e quando me descuidava. voltava atrás e escolhia um novo rumo. mais a
direito. com menos distração. com mais atenção. afinal o que é relevante é
fácil de alcançar – alguns
amigos passaram a desconhecidos e muitos desconhecidos passaram a amigos. e no
meio desta gente nova que me chegou de todo o lado. o encontro com um mundo de
cores inimagináveis. que por desconhecer. obrigou-me a interrogar: porque não
vês o que eles veem? porque não sentes o que eles sentem? porque não gostas do
que eles gostam? e pronto. deixei-me encantar pelo diferente e também eu fiquei
diferente – saí então da minha rua e fui caminhando sem fado. assim como quem caminha
por caminhar – mudei-me de vez. vesti-me com o melhor do que fui encontrando e cheguei
ao melhor de mim – bem sei que não foi uma grande melhora. mas que podia fazer.
mudei o que a vida me permitiu aprender – prendi a alma definitivamente ao desigual.
dei-lhe uma demão de tolerância e comecei a consentir o que era diferente – aos
poucos fui abrindo os portões. deixei entrar um ventinho fininho. doce como
mel. e com este chegou um novo saber: quem vive dentro de si nunca encontrará o
melhor que há dentro dos outros – e lá fui andando. às vezes mais depressa.
outras. devagar por estar sem pressa. e por mais que caminhasse. quando olhava
para trás via o que sempre vi: a família – o meu pai continuava a falar-me.
como se nunca fosse a lado nenhum. como se a missa que ouvi em seu nome fosse
apenas uma ladainha para enganar os anjos que o esperavam à porta do paraíso – amarrei-me
à memória e parti em viagem pelo tempo que perdi a caminhar de um lado para
outro. às vezes com sentido. às vezes em sentido contrário ao juízo. e
encontrei-me com a vida no seu estado mais puro – voltei a encontrar-me na infância.
e entre beijos e abraços. sei agora que um dia fui tão pequenino que me escondi
na barriga da minha mãe. e juro que ouço o meu pai perguntar: é rapaz ou
rapariga o que escondes meu? e os meus irmãos perdidos por ali. tão inocentes
como eu. à espera de uma horinha boa da nossa mãe. afinal. a barriga é a mesma.
cresceram como eu cresci. com a fortuna da nossa linhagem – agora andam por aí.
assim como eu. à procura do dia em que voltaremos todos a sentar-nos à volta da
mesa na rua que nos viu nascer: o meu pai à cabeceira. a minha mãe à direita. o
meu irmão a seu lado. e a minha irmã à esquerda. e eu. que nunca soube em qual
lugar me sentar. agora já sei. sou ao centro. com todos ao meu redor. este será
sempre o meu mundo – resta-me a lurdes de um passado que não consigo abandonar.
e talvez por nada querer esquecer. sempre que olho para ela tenho a certeza de
que o sangue é unicamente um fluído vermelho que corre nas veias. ela é tão
minha como eu sou dela. e esse amor que não tem cor nem dia em que termine. é a
razão da vida existir para lá de qualquer gestação – sou o que sou porque um
dia ela existiu para me fazer crescer – por último os meus filhos que apesar de
continuarem a crescer nunca me saíram do coração e da oração – adoro ser pai.
adoro ser pai dos meus filhos. são a razão da minha vida. sem eles eu nunca seria
um homem de verdade. amo-os daqui até á lua. ou até um pouco mais adiante. e nas
noites de luar. quando me sento na lua a olhar para o meu mundo. percebo que
sem eles nunca saberia o caminho de volta a casa – já me perdi muitas vezes. mas
tudo agora é diferente. não sou parvo. ouço-me. e nos dias em que tenho
dúvidas. recolho à cama e amarro-me à minha maria joão e sossego. envelhecemos
a olhar um para o outro – quando acordava. para surpresa minha. o mundo estava à
minha espera. é então que me arremessava para dentro dos seus desvarios. e lá ia
eu como se fosse uma caravela dos descobrimentos. ao sabor dos humanos e da voz
que me habituei a ouvir – a vida ganhou saudade. nostalgia. tranquilidade.
compreensão e. infelizmente. também ganhou finalidade. e com esta chegou o medo.
um medo de uma morte amargurada: começa a faltar tempo para realizar tudo o que
sonhei –e assim cheguei ao meio século. anoso. esfarrapado também. a interrogar-me:
quanto tempo tenho mais neste mundo? porque raio não vimos ao mundo anosos e
morremos presos ao cordão umbilical. embalados no colo da nossa mãe? viver é
uma complicação. amamos desenfreadamente o que um dia sabemos que vamos perder –
envelheci e aprendi a esconder-me na noite. só a noite me faz verdadeiramente
feliz. e quando o sol nasce. encutinho-me nas sombras e ali fico à espera do
ocaso. e logo que a lua acorda deito-me numa das suas crateras e desabafo para
as estrelas – e pergunto-me: haverá alguém nas estrelas que me queira ouvir? não
sei. mas mesmo que houvesse o que interessava isso. o que falo só eu entendo