2.
o centro da mesa
aos quarenta
e oito anos senti-me crescido e sensato. dividi então a minha vida em duas
partes: a parva. que tudo faço para esquecer e perdoar. e a não parva. que
quero glorificar – aprendi a marcar o caminho que fui fazendo com grãozinhos de
mim. e quando me descuidava. voltava atrás e traçava um novo rumo. mais a
direito. com menos distração. com mais atenção. afinal o que é relevante é
fácil de alcançar –
alguns amigos passaram a desconhecidos e muitos desconhecidos passaram a
amigos. e no meio desta gente nova que me chegou de todo o lado. o encontro com
um mundo de cores inimagináveis. que por desconhecer. obrigou-me a interrogar:
porque não vês o que eles veem? porque não sentes o que eles sentem? porque não
gostas do que eles gostam? e pronto. deixei-me encantar pelo diferente e também
eu fiquei diferente – saí então da minha rua e fui caminhando sem rumo e sem destino.
assim como quem caminha por caminhar – mudei-me de vez. vesti-me com o melhor
do que fui encontrando e cheguei ao melhor de mim – bem sei que não foi uma
grande melhora. mas foi o que pude fazer. mudei o que a vida me permitiu compreender
– prendi a alma definitivamente ao desigual. dei-lhe uma demão de tolerância e
comecei a acolher o que era diferente – aos poucos fui abrindo os portões.
deixei entrar um ventinho fininho. doce como um fio de mel. e com este chegou
um novo saber: quem vive dentro de si nunca descobrirá o melhor que há dentro
dos outros – e lá fui andando. às vezes mais depressa. outras. devagar por
estar sem pressa. e por mais que caminhasse. ao olhar para trás via sempre o
mesmo: a família – o meu pai continuava a falar-me. como se nunca fosse a lado
nenhum. como se a missa que ouvi em seu nome fosse apenas uma ladainha para
enganar os anjos que o esperavam à porta do paraíso – amarrei-me à memória e
parti em viagem pelo tempo que perdi a caminhar de um lado para outro. às vezes
com sentido. às vezes em sentido contrário ao juízo. e encontrei-me com a vida
na sua forma mais pura – voltei a encontrar-me na infância. e entre beijos e
abraços. sei agora que um dia fui tão pequenino que me escondi na barriga da
minha mãe. e juro que ouço o meu pai perguntar: -- é rapaz ou rapariga. o que
escondes meu? e os meus irmãos perdidos por ali. tão inocentes como eu. à
espera de uma horinha boa da nossa mãe. afinal. a barriga é a mesma. cresceram
como eu cresci. com a fortuna da nossa linhagem – agora andam por aí. assim
como eu. à procura do dia em que voltaremos todos a sentar-nos à volta da mesa
na rua que nos viu nascer: o meu pai à cabeceira. a minha mãe à direita. o meu
irmão a seu lado. e a minha irmã à esquerda. e eu. que nunca soube em qual
lugar me sentar. agora já sei. sou ao centro. com todos ao meu redor. este será
sempre o meu mundo – resta-me a lurdes de um passado que não consigo abandonar.
e talvez por nada querer esquecer. sempre que olho para ela tenho a certeza de
que o sangue é unicamente um fluído vermelho que corre nas veias. ela é tão
minha quanto eu sou dela. e esse amor que não tem cor nem dia em que termine. é
a razão da vida existir para lá de qualquer gestação – sou o que sou porque um
dia ela existiu para me erguer e fazer crescer – por último os meus filhos que
apesar de continuarem a crescer nunca me saíram do coração e da oração – adoro
ser pai. adoro ser pai dos meus filhos. são a razão da minha vida. sem eles eu
nunca seria um homem de verdade. amo-os daqui até á lua. ou até um pouco mais além.
e nas noites de luar. quando me sento na lua a contemplar o meu mundo. percebo
que sem eles nunca saberia o caminho de volta a casa – já me perdi muitas
vezes. mas tudo agora é diferente. não sou parvo. aprendi a ouvir-me. e nos
dias em que tenho dúvidas. recolho-me à cama. amarro-me à minha maria joão. e
sossego. envelhecemos a olhar um para o outro – quando acordava. para surpresa
minha. o mundo esperava-me de braços abertos. é então que me arremessava para
dentro dos seus desvarios. e lá ia eu como se fosse uma caravela dos
descobrimentos. ao sabor dos humanos e da voz interna que me habituei a ouvir –
a vida ganhou saudade. nostalgia. tranquilidade. compreensão e. infelizmente.
também ganhou finalidade. e com esta chegou o medo. um medo de uma morte
amargurada: começa a faltar tempo para realizar tudo o que sonhei – e assim
cheguei ao meio século. anoso. esfarrapado também. a interrogar-me: quanto
tempo tenho mais neste mundo? porque raio não vimos ao mundo anosos e morremos
presos ao cordão umbilical. embalados no colo da nossa mãe? viver é uma
complicação. amamos desesperadamente o que um dia sabemos que vamos perder –
envelheci e aprendi a esconder-me na noite. só a noite me faz verdadeiramente
feliz. e quando o sol nasce. encutinho-me nas sombras e ali fico à espera do
ocaso. e logo que a lua acorda deito-me numa das suas crateras. e conto
segredos às estrelas – e pergunto-me: haverá alguém nas estrelas que me queira
ouvir? não sei. mas mesmo que houvesse o que interessava isso. o que falo. só
eu compreendo
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