3.
o altar
dos reencontros
agora que estou a caminho dos sessenta
comecei a falar com as estrelas. com os meus pais. com a minha cunhada zeza. às
vezes. quando estou mais louco. falo até com os meus botões. mas quando estou
perdido dentro de mim. falo com os meus cães. ouvem-me sempre com atenção. e
por mais disparates que possa dizer. sei que nunca darão um único latido de
reprovação – os animais trazem em si um amor que o homem ainda não compreende –
pela noite. quando as estrelas me cobrem de medo. falo com o anjo que me guarda
no universo. peço-lhe apenas mais um dia desta vida que aprendi a viver. e
perdão por não ter sido um pouco melhor – começo então a pensar: quantos dias
já vivi? recuso as contas. sei que são muitos. todos eles vividos num só fôlego.
sem serenar o pensamento. ora surgia isto. ou aquilo. e amanhã é que vai ser. e
se não for amanhã será no dia seguinte. e o corpo a arquear por cada dia gasto
em vazio. e o espelho a mentir-me: quem é o homem mais forte do universo? sou eu.
sou eu – e eu a caminhar para o fim. e por cada dia de vida mais um rebo às
costas – corria para todo lado sem nunca sair do sítio. cada vez mais certo de
que eram as pernas que faziam o tempo andar mais devagar – que raio de relógio
cuida do caminho feito pelas pernas? dou corda. ando. e mais corda. e mais
caminho. e mais corda. e as pernas num desassossego doloroso. e os ponteiros a
passar das pernas aos braços. e as horas cada vez mais esgotadas com as batidas
do coração a gemer. a bater. a gemer. a bater. e as noites cada vez mais
escuras. enormes. e eu de um lado para o outro. de estrela em estrela. a pesar
e a reavaliar o tempo gasto numa balança cruel: deitei dez anos no prato e
acreditei que a felicidade viria por direito. e depois mais dez. e ainda mais
dez. e mais dez. e os meus filhos homens. doces. bons. com os olhos a luzir do
avô. e dentro de mim a certeza de que lhes ensinei tudo o que sabia. sem
mentiras. com amor. um amor para sempre… para sempre… para sempre – os meus
filhos são a minha grande obra. por eles tudo valeu a pena. tudo. mesmo quando
as dores eram absolutamente cruéis. repito. absolutamente cruéis – o meu futuro
agora chama-se hoje. amanhã se existir é porque resisti a mais uma noite. é
porque acordei para me lembrar o que deixei por fazer – tudo o que me resta é
esta espera agonizante pela missa de corpo presente. pelas últimas palavras:
aqui jaz um homem magoado. pai de três filhos bons e com os olhos do avô –
agora sonho com o dia em que voltarei aos braços da minha mãe. protegido e
finalmente sossegado. em paz – e nesta espera que às vezes desespera. peço
apenas que as pernas façam o que falta do caminho com elegância. e que a
memória nunca se esqueça de que só existo enquanto souber o meu nome – o meu
mundo está finalmente diferente. os pássaros começaram a voar baixinho. os rios
passaram a chegar ao mar serenos. as gaivotas perderam o medo e começaram a habitar-me
a imaginação. e a desapoquentação tomou conta dos dias. vivo. finalmente –
todos temos um caminho para fazer. o destino não se muda. talvez numa outra
reencarnação possa ser um homem diferente. talvez aprenda a escrever as
palavras mais rapidamente. a juntá-las com acerto. a dizerem o que quero que
seja dito. bonitas. enfarpeladas com linhos nobres. belas como as estátuas dos
deuses gregos. azuis como o céu. divinas por mando dos anjos. imensas como o
mar. com sol e sal. que digam apenas o que quero que seja dito. numa elegância
estonteante – passei a um estado límpido. decantado a partir de um parvalhão.
vendimei-me. pisei-me até à exaustão no lagar da vida. e extrai de mim tudo o
que consegui dar – agora. saboreio-me. trago-me e interrogo-me: como seria se
tivesse um pouco mais de sol e doçura – envelheci. envelheci mais anos do que
os realmente tenho. e agora. quando olho para o além. percebo que também as
montanhas estão diferentes. começaram a tocar o céu. e ali fico a
interrogar-me: as montanhas cresceram. ou o céu aproximou-se de mim? não quero
saber. o que sei é que a única forma de alcançar o seu cume é pela contemplação
– subo então até ao cimo de mim. e logo dou conta de que fico mais parecido com
as montanhas – agora. sempre que falo comigo sinto-me nas nuvens. as montanhas
são do meu tamanho. e ali descanso e sonho com o dia da saudade eterna. e
interrogo-me: o que haverá do lado de lá? ninguém sabe. mas eu já estou
demasiado velho para não acreditar em alguma coisa. por isso acredito num mundo
paralelo. melhor do que este. com uns portões enormes. um corredor iluminado
pela luz dos anjos. e ao fim da luz. mas não dos anjos. o altar dos reencontros:
o meu pai de braços abertos. a minha mãe a sorrir. a zeza de cabelo arranjado.
o meu sogro calmo como sempre. e o tio joão a seu lado. afinal sempre foram
bons amigos – o que mais pode ambicionar um homem do que viver em família e
ressuscitar em família – será finalmente o fim de todas as interrogações. de
todas as dúvidas. terei pela primeira vez o corpo cheio de certezas – se hoje
for o último dia. que as montanhas se ergam até ao céu e as estrelas se acendam
de glória pelo que alcancei em vida. que é um pouco mais do que a minha altura
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