.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
29/03/2020
28/03/2020
eu. o futebol e a covid19
imagem - google
estava eu.
mais uma vez. a ouvir a narrativa assustadora de um médico italiano a
trabalhar no combate ao cobid19 – na porta do seu hospital. ainda protegido
com bata e luvas. e com os decalcos da máscara de proteção gravados na
face. dizia em aflição. que se sentia nos limites. e que não
sabia quanto tempo mais iria aguentar. estava arrasado e destroçado.
e pedia desculpa por não conseguir valer a todos aqueles que precisavam dos
seus cuidados – por último. num relato agonizante e já em lágrimas. dizia
que para além de tentar salvar o maior número de infetados. ainda tinha
que fazer o papel de deus. era também obrigado a escolher quem vivia e
quem morria porque não havia ventiladores que chegassem para todos – sentia-se completamente
exausto e reconhecia que estava a ser quase impossível lidar com a pressão. o
hospital estava num caos. faltava tudo. desde material de
proteção. a camas. enfermeiros. médicos. medicamentos.
estavam simplesmente a fazer o que era possível – já não ia a casa há
mais de uma semana. descansava o que podia numa qualquer arrecadação porque
as camas não chegavam para os doentes e. logo que recuperasse alguma
energia. voltava ao trabalho até que a falta de energia o obrigasse a recolher
novamente – era assim a sua vida nos últimos dias – lembrei-me então dos
jogadores profissionais de futebol e da exigência da UEFA que com uma lei obrigava
a que houvesse 72 horas de descanso entre os jogos – e porque a memória às
vezes esquece a seletividade. também guarda o ridículo.
lembrei-me daqueles programas desportivos que de domingo a domingo inundavam as
televisões com conversas de ódio e maldizer – num desses programas. debatia-se
em tom acalorado de coisa relevante. que a meio da semana realizar-se-ia
um jogo para a liga dos campeões de grande importância e desgaste – diziam
então. esses ditos senhores que em tempos passado jogaram também em
campos de futebol. logo. induz-nos que sabem o dizem. digamos
que são um tipo de doutores do futebol – asseguram estes novos doutores do
share. que estes jogos. transmitidos para todo o mundo. são
também cruciais para a afirmação de portugal como uma grande potencia mundial no
futebol. e no desporto em geral – e acrescentavam. por esta razão.
espera-se uma grande exibição e também uma grande vitória para bem do futebol
nacional – o problema é que logo no fim desse jogo de afirmação dos clubes
portugueses e de portugal no mundo. e cumprindo escrupulosamente o prazo
da UEFA para recobro dos atletas. este podia não ser suficiente para a
recuperação total dos jogadores. pois ao cansaço do jogo acrescentava-se
o desgaste psicológico e da viagem – tal como no mundo antigo os deuses moravam
no olimpo. no mundo atual os deuses jogam nos campos de futebol.
com mordomias impensáveis para a maioria dos mortais: médicos. preparadores
físicos. massagistas. softwares de treino. viagens com transportes
especiais. hotéis de cinco estrelas. alimentação especialmente
cuidada com a inclusão de cozinheiros especializados em alimentação saudável
para atletas de alta competição. e para que não fique aqui todo o dia a
relatar os cuidados com os superatletas. ordenados super mega
inflacionados que nos envergonham e nos faz interrogar como foi possível deixarmos
isto acontecer com gente. que em boa verdade. o que criam é
apenas um espetáculo de entretenimento. tal e qual como o circo. o
teatro. os músicos. e outras tantas coisas que nos ajuda a
esquecer o que o homem criou para se aborrecer – como foi possível deixarmos
que isto acontecesse quando tanta gente no mundo morre à fome – desculpem.
mas vou tentar não entrar por este caminho de acerto de contas com o passado.
esta não é a altura certa – o que sei é que neste momento há milhares de
pessoas. das mais variadas profissões. que continuam a arriscar
as suas vidas para que nós possamos estar em casa com medo – sim. estar
com medo e pensar no medo é um luxo que nem todos se podem dar ao luxo de terem
– voltando à minha memória. pois bem. quando as coisas correm mal
a resposta é muito fácil. os deuses do futebol estavam cansados.
o jogo a meio da semana arrasou a equipa. estavam sem forças e conforme
o tempo se esgotava percebia-se perfeitamente que a força e o discernimento já
não correspondiam à vontade – e agora senhores da bola. quando o futebol
voltar. voltará com o mesmo descaramento. e depois do que viram
de desgaste nos nossos profissionais de saúde. digam-nos sem aquela arrogância
de que o futebol é o desporto rei e do povo. se vão continuar a dizer que os pobres homens
estavam cansados e a pressão é muito grande? às vezes. na minha loucura
de humano. interrogo-me se estas coisas não acontecem para colocar tudo
novamente no seu lugar – o que projeta a grandeza de um país no mundo é em boa
verdade o seu serviço nacional de saúde e os seus profissionais – é bom saber
que essa gente anónima existe – este nosso país é realmente enorme - obrigado
23/03/2020
quinze dias
quinze dias em casa. quinze dias sem abraçar e
esta quarentena a deixar-me louco – quinze dias de trinta. quinze dias que
podem ser sessenta e até quem sabe tempo que nem sabemos contar – o que vai ser
de nós. o que vai ser da minha casa. o que vai ser das outras
casas – uma mesa. dez cadeiras. dez pratos e eu a por a mesa para
quem nunca chega – o que fez esta geração de errado? o que há em mim de errado?
não sei. e mesmo que soubesse o que poderia eu fazer em tantos lugares
do mundo – sei que vou continuar a por a mesa: dez copos. dez
talheres. dez guardanapos e os pratos a voar como anjos – como será o
mundo em cada prato. em cada casa se da minha janela só vejo desespero –
tu. tu não me podes esconder como o céu está desinteressado. o vulto
negro a encher-nos de terror. a roubar a dignidade a quem parte. a
estropiá-los da vida. num silêncio mudo de dor. sem que ninguém
segure a mão. sem um beijo. sem uma lágrima. sem uma
oração. sem que nada possa enganar o sofrimento. dizer adeus.
pedir perdão – um dia fecho tudo à minha volta. a janela também – estou
intrigado com a calmaria das gaivotas na tempestade – porque não batem as ondas
nas rochas? porque não troveja? porque não se esconde o sol atrás da lua? que orações
tenho eu que rezar para que o mundo volte a sorrir? estou certo que a razão dos pratos não voarem é
a mesma razão das aves que com asas não saem do chão – há coisas que não foram
feitas para voar – desígnios? quem quer acreditar nisso – o que mudou no meu
infinito? porque raio puseram esta coisa pegajenta à minha frente se o que
quero é apenas caminhar. viver o que me falta viver. sonhar o que
me falta sonhar. juntar a família numa mesa daqui até itália. que
passe por espanha. por moçambique. pelo canadá. pela austrália.
pela índia. quero eliminar paradoxos. ligar o mundo num abraço – mas
uma coisa é certa. no aperto conhecem-se os amigos… quem haveria
de dizer que os meus [nossos] estão escondidos nos hospitais. que raio
de amigos corajosos tenho eu [temos nós] – que inveja terão outros – será que
os merecemos? as ruas continuam com automóveis parvos para lá e para cá.
como se o mundo fosse um semáforo que se pode ignorar quando dá jeito – e eu
amarrado à mesa a olhar para os pratos. se houvesse ao menos uma
corrente de ar para os fazer voar mais uma vez. um milagre – nem uma
palavra me faz abrir a boca. o medo pendurou-se na luz – há um silêncio
de abismo dentro de mim – olho e nada. e nada me faz pegar na mão e entrar
pela garganta abaixo. porque tudo o que magoa está bem lá no fundo.
no fundo do que sou. é lá que moro comigo e com o medo. com todos
os que estão a sofrer – o mundo num passo que não corre e nada está parado.
está tudo assim assim. assim mal. nem frio nem muito frio. nem
sol nem muito sol. nem chuva nem muita chuva. só medo e desespero
– não consigo tirar os olhos do amanhã – temos que resistir
voz - maria joão
22/03/2020
sou-te assim
pintura romanelli
sou-te assim:
de dia anjo amigo
de noite casanova
amor gizado em olhares.
nas palavras soletradas em desejo
salta o ladino
deito-te em braços que te enrolam
luxúrias escritas em deleite
teias tecidas de gemidos
de quem sempre te desejou.
da loucura dos carinhos
nasceram os nossos pomares
que germinam agora vida com brilho
aromas de primavera
sol dos nossos olhos.
já de madrugada
adormeces em sonhos de princesa
mulher volúpia.
ao acordar és sempre mais bela
vestes-te de mãe
e nos sorrisos
dizes:
a noite já nos espera
19/03/2020
Não são os silêncios que atravessam a linha... é a linha que interrompe o silêncio
bem penteado, perfumado
lustrou o sapato, fez a barba
alinhavou nos lábios o juízo final
a cortina serviu uma fatia da noite
por todo céu
foi abril...
alinhado em fila como estrelas.
desfez o sorriso no espelho
o verbo conduzia
a sombra obedecia um tanto rouca.
(e) como um doce com sal
manteve o ar distante
dividindo os analistas.
saiu como a melhor página de um livro
pensou como um poeta:
'o tempo é louco, diminui tudo'
melhor deixar o tempo
exatamente como imagino:
roendo as unhas
reajustado pela inflação
com o nome dela disparado no coração
repousado no sofá.
pois o sofá... não vai acabar.
vânia lopez
16/03/2020
17 de março de 1998
antónio sampaio lopes
nota: este
texto foi confecionado antes de 17 de março de 2019. ainda o meu
agnosticismo não tinha sofrido com o abalo da morte da minha cunhada maria josé
– a sua partida deu início a um novo ciclo de incertezas sobre a minha fé.
fez-me questionar de novo deus e aceitar uma nova cruzada de interrogações e perguntas
– sei que ter fé é ter dúvidas – confesso que ainda não estou totalmente certo
de nada. mas estou recetivo a uma nova reconquista evangélica – saiba o
senhor tocar-me – preciso de voltar a acreditar no que não vejo – o homem é
feito de mudanças e eu sinto-me disponível para mudar – quero acreditar
na ressurreição da alma. na sua imortalidade. na firmeza de que
“para deus não haverá impossíveis para todas as suas promessas.” – a
minha cunhada pisa agora o caminho da glória. vive uma nova existência
no mundo celestial – sinto falta de falar com ela – um dia. quando a minha
alma estiver mais forte. explicarei como a partida inesperada da zeza me
retirou do abismo do nada – “na natureza nada se cria. se perde. tudo se transforma” – a minha
cunhada zeza transformou-se no meu último anjo
senhor. estou
preocupado contigo e comigo – não é nada de especial. mas já passaram
mais de vinte e um anos [vinte e dois] desde que levaste o meu pai para junto
de ti – deixa-me dizer-te: não sei se sabes que o meu pai. todas
as noites. te entregava uma oração com o sinal da cruz – creio que não
sabes mesmo. em boa verdade. acho que não sabes nada do mundo.
cresceu excessivamente para ti – mas não te inquietes. já passou
demasiado tempo para me voltar a aborrecer contigo – o que queria que me
dissesses. se não fosse muito incómodo para ti. é se o meu pai
está bem. se ainda está ao pé de ti. se o tens protegido.
guardado de outros males – é o mínimo que deves fazer por aqueles que te são
fiéis. ele escolheu-te. desejou-te a seu lado. acreditava
em ti. na tua proteção e na tua amizade – se a família não se escolhe.
os amigos é sempre uma escolha nossa – o meu pai achava-te amigo. achava-te
de confiança – sempre respeitei as suas escolhas. era teu devoto e rezava
para que tu. no dia do juízo final. o acolhesses a teu lado –
queria a vida eterna – espero sinceramente que não o tenhas desiludido – já comigo
não tens com que te preocupar. escusas de me guardar lugar. fui
purificado com a tua água. mas morrerei seco e em pecado – perdi toda a
confiança em ti. nas tuas rezas. nas tuas leis e nos teus
discípulos na terra – não te perdoo o que lhe fizeste. melhor. o
que nos fizeste – a dor que lhe infligiste foi também a nossa dor – as boas famílias
cristãs são assim. sofrem e riem juntas – nós éramos uma família.
uma comunidade familiar de fé. de esperança. caridade e afetos – as
nossas orações quotidianas deveriam reforçar a bondade em ti. a atenção.
o perdão e a misericórdia – o meu pai amou-te. amou
a sua esposa. os seus filhos. o seu semelhante. o meu pai
cumpriu os teus mandamentos e. quando errou. como homem concebido
do barro de adão. teve a humildade de te pedir perdão pelas suas
fraquezas. de se ajoelhar e apelar à tua infinita misericórdia – e tu
que fizeste? uma família cristã é evangelizadora e missionária. o que tu
fizeste foi acabar com a minha fé. terminaste com a evangelização da
minha descendência – fechei-te a porta. a ti e à tua religião – eu sei
que tinhas de levar o meu pai como fazes com todos os outros. mas não
ficaste satisfeito só em levá-lo. tiveste que lhe roubar a alma.
a memória. e a derradeira oportunidade de lhe falar pela última vez – eu
sabia que o ia perder… mas não em silêncio – um filho nunca é adulto enquanto
o seu pai viver – eu não queria ser adulto. queria ser dono do tempo e
trazer a vida para trás – queria falar-lhe de nós. falar-lhe de mim.
do meu mundo. daquilo em que acreditava. os jovens acreditam em
cada coisa mais tola – confesso que o que queria mesmo era o seu perdão – era
demasiado jovem para a sua sabedoria – queria dizer-lhe que gostava de ter
nascido mais cedo. de o ter mais tempo a meu lado. gostava de ter
sido mais velho só para ele ser mais novo – um homem mais velho é sempre mais sábio
– na juventude o coração perde-se em tudo e em nada. quase sempre sem
tino. critério e valores. nunca percebi que metade de mim era dele
– e eu sem saber que os corpos desaparecem enquanto a existência nos distrai
com ruas e projetos que nunca chegarão a lado nenhum – os beijos que não lhe
dei multiplicaram-se com a saudade e são agora uma inquietação permanente – que
saudades tenho de ti meu pai – se eu te pudesse explicar a minha vida.
explicar o tempo que gastei por aí. tenho a certeza de que me irias
compreender. e me dirias que a terra prometida não existe para quem quer
fazer coisas – dirias que ambição são sonhos que se podem realizar.
dirias que é bom sonhar – vinte e um anos [vinte e dois] e as noites ainda
escurecem com o teu nome – quando partiste ainda não era capaz de perceber como
o tempo passa a correr. só quando envelhecemos compreendemos que o
amanhã é quase sempre tardio para quem não faz o que deve fazer – há um momento
certo para tudo – sabes deus!! o meu pai era um homem fantástico – nunca
compreendi muito bem esse teu gesto miserável. essa canalhice. esse
roubo ignóbil. calculista e maquiavélico. o meu pai era um homem bom.
de quem toda a gente gostava e não merecia morrer sem que pudesse levar um
sorriso de quem o amava – desculpa senhor. mas para ti o perdão ainda é
um sentimento que renego – mas deixa-me dizer-te. com o envelhecimento acabei
por amolecer. já não sinto aquela sensação de raiva e rancor. aquele
mau estar quando ouço o teu nome. há dias em que não sinto mesmo nada.
só não te quero por perto. não te quero dar a outra face – nunca
percebi por que raio um homem magoado tem que dar a outra face – que se lixe.
és o que és. e eu sou o que sou. e não faço questão nem de mudar.
nem de esquecer – o que me intriga. é que desde que abandonei a tua
casa. logo após cobrir o meu pai com terra sagrada. nunca mais te
vi por perto – a minha dúvida é a seguinte: será que te pesou a
consciência e percebeste que não agiste bem com a nossa família? ou não
aguentaste a tampa e ficaste enfunado? confesso que às vezes acontecem-me
coisas para as quais não encontro explicação. vem-me à ideia de que
alguém com a tua personalidade se sinta ressabiado e goste de me provocar – vamos
lá esclarecer esta coisa de uma vez por todas: eu não te quero mal.
confesso que não sei porque não te quero mal. sim. depois do que
me fizeste eu deveria ter ido por esse mundo inteiro anunciar que na tua boca
não há verdade. mostrar como não és de confiança. afinal um
trafulha é sempre um trafulha. quer viva no céu. ou na terra – que
se lixe tudo senhor. que se lixe o passado e as tua trafulhices – quero tranquilidade.
quero paz para mim e para as memórias do meu pai – se um dia não tiveres onde
pernoitar quero que saibas que a minha casa está à tua disposição com água e
pão. não terás que recorrer a nenhum dos teus milagres para saciar a
fome e a sede – tens uma única condição. não podes falar de religião – falamos
de bola. de política. do preço das coisas. sei lá. falamos
como se eu ainda fosse criança – tu sabes que sempre gostei de ser criança. são
inocentes. não contam o tempo e acreditam em tudo que lhes dizem – vê lá
bem que até me fizeram acreditar em ti – pobre miudagem – se realmente é
verdade que és omnipotente e misericordioso. então. és obrigado a
perdoar-me. és obrigado a perdoar todos aqueles que pecaram por
pensamentos. palavras. atos ou omissões – espero que ponhas um
ponto final neste assunto e aceites de uma vez por todas o meu agnosticismo –
esquece estes últimos vinte e um anos [vinte e dois]. esquece que um dia
pertenci ao teu rebanho – deixa-me viver a minha condição de pai.
deixa-me amar os meus filhos – nunca deverias ter levado o meu pai sem que ele me
dissesse o que um pai diz sempre ao filho quando se ausenta: tem cuidado.
toma conta da tua mãe. não te esqueças de apagar as luzes à noite – tudo
o que me resta é aquele beijo frio. gelado – quero avisar-te que se me tentares
roubar a alma e a memória. com as mesmas artimanhas que usaste com o meu
pai. não vai resultar comigo. já deixei recomendações da minha última
vontade. deixei tudo escrito – não me levas para lado nenhum. não
somos amigos – entretanto. vamos mantendo a cordialidade. bom dia
e boa tarde – vemo-nos nos casamentos. batizados e funerais – o resto
já sabes…
14/03/2020
um ensaio estranho sobre o absurdo
cyril rolando
I.
abraço-me. abraço-me num
abraço absurdo – que autoestima sobeja num abraço absurdo? que dúvidas farão de
mim um recomeço? a irracionalidade de um abraço absurdo é quase sempre desespero
e sofrimento – procuro no absurdo justificação para uma tristeza que às vezes
parece um hábito repetitivo que vicia – sabe-se hoje que a genética interfere
na herança dos vícios – cada vez acredito mais que nasci viciado numa
dependência de coquetéis absurdos. sofro do síndrome de abstinência neonatal – não me lembro de viver sem que um absurdo não
estivesse por perto – porque raio não param de me acontecer estes absurdos excêntricos – talvez o
diabo me tenha tomado a alma à nascença infetando-a de medos e horrores absurdos
– talvez deus me tenha entregue a este
caminho absurdo apenas para me purificar de outras encarnações – que raio
trouxe no corpo para que deus ou diabo se interessem por alguém tão estupidamente
absurdo – sim. eu tornei-me num absurdo sem deus nem roque e o que temia
me sobreveio – toda a vida é um absurdo incontrolável. um segundo mais tarde
perde-se o comboio. um segundo mais cedo morremos esmagado pelo mesmo
comboio – em cada segundo cabe uma enormidade de absurdos – somos o que somos num
tempo incrivelmente egoísta. ninguém quer saber o que te levou a ser um absurdo.
ou porque foste tu e não outro o parceiro perfeito para os absurdos – não
acredito no destino – tudo vazado dum caldeirão de humanos. contaminados
pelo absurdo das suas diferenças onde ninguém é igual a ninguém e no entanto.
todos parecem tão iguais – não escolhemos viver assim. na
fragilidade do nascimento somos infetados por um mundo absurdo – sou o gozo estúpido
de um espermatozóide. eram mais de mil… absurdamente o que chegou
à vida foi este – não há dia nenhum que não me interrogue o porquê desta vida
absurda que me consome numa labareda que ninguém sabe que existe – bem sei que as
dúvidas absurdas confirmam a minha existência ínscia – perdoe-me deus ou diabo.
mas só posso alterar o que vive e sinto em mim – já não sinto grande coisa – um
homem é sempre o que sente e. mesmo que duvide do que acredita sentir.
não pode deixar de acreditar. por mais absurdo que lhe pareça esse sentir
incerto: às vezes amor. outras apenas indiferença… ou
ainda um absurdo de coisas que não se explicam. sente-se e sabe-se – é
na dúvida que se encontra a certeza – a dúvida existe para nos dar certezas –
que absurdo se torna o meu mundo se um dia perder as dúvidas sobre mim – quero
continuar a viver este meu mísero e triste absurdo. quero continuar a duvidar.
quero que o tempo que me resta seja todo ele de enormes incertezas absurdas
– “antes morrer de pé do que viver de joelhos” – que cabeça não sabe duvidar?
como se para duvidar do absurdo tivesse o corpo que viver no mundo das
invenções. dos aviões. dos relógios atómicos. dos
foguetões e das balas que continuam a matar aqueles que já morreram várias
vezes de vergonha – confesso. tenho medo e vergonha do que penso. porque
tudo o que penso quero que exista e tudo que existe é um absurdo que só faz
sentido na minha cabeça – tenho raiva e vergonha do presente. tenho raiva
e vergonha do passado. mas não tenho nada para amanhã. a não ser fabricar
na minha cabeça absurdos inimagináveis – nada das coisas que imaginei morreu em
mim porque o tempo das coisas não é de quem pensa. mas sim de quem faz –
ainda quero fazer milhentas coisas. mesmo que sejam absurdas – a
felicidade e a tristeza alimentam-se do pensamento. mesmo absurdo –
penso. logo sou absurdo – utopia é acreditar que um dia todos os meus absurdos
o deixarão de ser – nunca recusarei ser o que sou. mesmo que o absurdo
em mim possa parecer loucura
II.
vivo agora também a
dúvida absurda do silêncio – o silêncio preenche todos os vazios. traz bondade.
dignidade. perdão e quando chega o barulho das dúvidas absurdas… já
não tem força. nem tamanho para magoar – não deixa de existir.
não. torna-se apenas num barulho bondoso. humano. clemente.
compreensivo. e generosamente vai repetindo ao ouvido. numa
tranquilidade completamente absurda: estás perdoado por toda essa vida
absurda – e o eco das palavras a embalar-me num sono de criança. talvez a síndrome de abstinência neonatal
continue a fazer das suas. um viciado nunca se cura. a falta do cordão
umbilical existirá até ao último suspiro – talvez esta minha resistência
à loucura do absurdo seja o que me mantém vivo. ou então. a forma
que encontrei para vos dizer que ainda tenho dignidade para suportar os vivos –
talvez a dúvida absurda exista porque eu existo no silêncio – sem o silêncio da
noite não sou nada – na dúvida absurda do silêncio posso correr para o outro
lado de mim e não encontrar nada ou… encontrar todo o barulho do mundo:
os meus amigos a jogar à bola. o carro a acelerar. as máquinas a
trabalhar. os filhos a chorar. a mãe a chamar e o pai a apontar
para o absurdo dos nossos antepassados – e a mente que cria as tempestades
absurdas pede uma última certeza que não seja absurda. e corro para todo
lado e em todo lado me encontro com as mesmas marcas no corpo. as mesmas
dúvidas absurdas – será que não há uma alegria absurda perpétua? não tenho
aonde me esconder. e as tempestades não param porque não consigo parar
de pensar nos absurdos da minha vida. não consigo parar de ter dúvidas do
que fiz – confesso. não sei se a culpa é minha por me tornar num absurdo.
ou o absurdo é um cabrão sem piedade que me infiltra doses maciças de
inverdades. insegurança. hesitações e medos – o pior disto
tudo é que não consigo fugir da inverdade. da insegurança. da
hesitação e do medo – sofro. fugir de sofre já é sofrer – não consigo
deixar de viver onde cresci – eu sou um todo e mesmo que me divida em silêncio
ou barulho. em irreal ou real. em fé ou desconfiança. em
deus ou ateu. em luz ou negrume. serei sempre eu. e mesmo
morto serei eu. ninguém me apagará do universo – também eu alimentei o
absurdo da vida. também eu fui de casa em casa. amigo em amigo.
trabalho em trabalho. sonho em
sonho. em paz ou irado. ajoelhado ou de pé. com deus ou
com o diabo. tudo num destino que não escolhi – nunca poderia ser
pescador porque nasci sem mar. sonhei-o muitas vezes. visitei-o.
senti-o quando a cada mergulho me fiz água. nadei como os peixes.
mergulhei como os golfinhos. fechei-me numa garrafa e percorri todas as
correntes do mundo com mensagens absurdas. mas ao fim do dia. a
minha casa não cheirava a mar. cheirava a couro. os barcos eram
máquinas e os pescadores eram operários – o absurdo é que amo as máquinas e o
mar – tenho no peito tatuado uma gaivota e o mundo num abraço – aristóteles
dizia que todos os seres foram criados para um fim – a minha dúvida é se há
fins absurdos – o que faz um homem num desespero absurdo? olho para mim e interrogo-me
se sou o que quis ser. ou sou o que me rodeou? o que fiz fez-me.
ou sou o que sou porque não fiz o que deveria ter feito – há um limite para
tudo. há um limite mesmo quando não há respostas para o que queremos
saber – há um limite até para os absurdos – também eu fui castigado como sísifo.
e a pedra no sopé da montanha todos os dias a crescer. e o absurdo das
coisas em mim a tirar-me as forças para carregar o que mais ninguém vê – e uma
pedra enorme no sopé de uma montanha absurda – porque me deram uma montanha se o
que sempre desejei foi apenas o que sentia em mim? e o raciocínio perdido num
sacrifício absurdo. em dor absurda. em raiva absurda. em
desespero absurdo. maior que qualquer montanha absurda. maior que
a pedra de sísifo – mato o absurdo que nasceu comigo? seria eu a mesma pessoa
sem o absurdo? ou o absurdo é a minha pedra. a pedra que carrego e não
chega a lado nenhum – infelizmente a eutanásia não se aplica a quem sofre de
coisas absurdas – tenho que viver
III.
não tenho inveja do
que não alcancei. talvez um pouco de azedume e arrependimento.
mas não posso alterar o passado – serei o que o destino quiser. continuarei
a erguer-me do chão quando caio – não me posso zangar por aquilo que errei
quando pensava estar certo – cada época tem as suas certezas absurdas – não
posso continuar a amar quem não respeita esta minha forma absurda de ser – não
posso aceitar calado tamanha humilhação – não posso respeitar quem não acredita
que o absurdo existe. tal como as “brujas. no creo. pero
que las hay. las hay” – prefiro morrer sozinho. prefiro morrer a
falar comigo. a explicar-me até que o último sopro me despedace esta
absurda certeza incerta que vive comigo. como vive o coração. que
trabalha como um coração. que voa como as gaivotas. que chora
como os homens – escolhi sempre o melhor absurdo. não o menos arrojado.
mas aquele que no futuro me faria honrar todo o passado – às vezes a justiça do
passado faz-se apenas com uma única absurda certeza incerta – estou aqui meu
querido absurdo. também eu te quero honrar. quero fazer-te
existir como mestre de uma arte que por ser absurda só alguns a reconhecem – o
absurdo não existe apenas porque eu nasci. mas confesso. ás vezes
até que parece – se deus não me receber no dia que chegar ao céu. que as portas do inferno se abram para que
possa caminhar sobre as chamas. pois esse será o meu último absurdo – se
no passado abandonei o divino. hoje. ajoelho-me com fé. e
humildemente peço a deus que ilumine com sabedoria esta minha última viagem.
absurda ou não – quero morrer em paz. quero que a minha alma suba
ao céu enaltecida – quero confiança. saber e um bom destino para aqueles
que deixei no teu quintal terreno – mas se nesta última caminhada. perceber que fui eu o único culpado do absurdo
existir. então. que me sobre saber e memória para o escrever com
a maior crueldade que trago nas mãos – eu não me encerro em mim. não sou
o fim do mundo. sei que sou futuro naqueles que mesmo em caminhos enganados
fui capaz de trazer à vida: o sagrado que me perpetuou
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