nota: este texto foi confeccionado antes de 17 de março
de 2019. ainda o meu agnosticismo não tinha sofrido com o abalo da morte
da minha cunhada maria josé – a sua partida abriu um novo ciclo de incertezas
sobre a minha fé. fez-me voltar a questionar deus e aceitar uma nova
cruzada de dúvidas – sei que ter fé é também ter dúvidas – confesso que ainda não
estou totalmente certo de nada. mas estou recetivo a uma nova reconquista
evangélica – saiba o senhor tocar-me – preciso de voltar a acreditar no que não
vejo – o homem é feito de mudanças e eu estou disponível para mudar –
quero acreditar na ressurreição da alma. na sua imortalidade. na certeza
de que “para deus não haverá impossíveis para todas as suas promessas.”
– a minha cunhada pisa agora o caminho da glória. vive uma nova existência
no plano celestial – sinto falta de falar com ela – um dia. quando a minha
alma estiver mais forte. explicarei como a partida da zeza me arrancou
do abismo – “na natureza nada se cria. se perde. tudo se
transforma” – a minha cunhada zeza transformou-se no meu último anjo
senhor. estou
preocupado contigo e comigo – não é nada de especial. mas já lá vão mais
de vinte e um anos [vinte e dois] desde que levaste o meu pai para junto de ti
– deixa-me dizer-te: não sei se sabes que o meu pai. todas as
noites. te entregava uma oração com o sinal da cruz – creio que não
sabes mesmo. em boa verdade. acho que já não sabes nada do mundo.
cresceu depressa demais para ti – mas não te inquietes. já passou
demasiado tempo para me voltar a aborrecer contigo – o que queria que me
dissesses. se não fosse muito incómodo para ti. é se o meu pai
está bem. se ainda está ao pé de ti. se o tens protegido.
guardado de outros males – é o mínimo que deves fazer por aqueles que te são
fiéis. ele escolheu-te. quis-te a seu lado. acreditava em
ti. na tua proteção e na tua amizade – se a família não se escolhe.
os amigos é sempre uma escolha nossa – o meu pai achava-te amigo. achava-te
de confiança – sempre respeitei as suas escolhas. era teu devoto e rezava
para que tu. no dia do juízo final. o acolhesses a teu lado –
queria vida eterna – espero sinceramente que não o tenhas desiludido – já comigo
não tens com que te preocupar. escusas de me guardar lugar. fui
purificado com a tua água. mas morrerei seco e em pecado – perdi toda a
confiança em ti. nas tuas rezas. nas tuas leis e nos teus
discípulos na terra – não te perdoo o que lhe fizeste. melhor. o
que nos fizeste – a dor que lhe infligiste foi também a nossa dor – as boas famílias
cristãs são assim. sofrem e riem juntas – nós éramos uma família.
uma comunidade familiar de fé. de esperança. caridade e afetos – as
nossas orações quotidianas deveriam reforçar a tua bondade. a tua atenção.
o teu perdão e a tua misericórdia – o meu pai amou-te.
amou a sua esposa. os seus filhos. o seu semelhante. o meu
pai cumpriu os teus mandamentos e. quando errou. como homem concebido
do barro de adão. teve a humildade de te pedir perdão pelas suas
fraquezas. de se ajoelhar e apelar à tua infinita misericórdia – e tu
que fizeste? uma família cristã é evangelizadora e missionária. o que tu
fizeste foi acabar com a minha fé. terminaste com a evangelização da
minha descendência – fechei-te a porta. a ti e à tua religião – eu sei
que tinhas de levar o meu pai como fazes com todos os outros. mas não
ficaste satisfeito só em levá-lo. tiveste que lhe roubar a alma.
as memórias. e a derradeira oportunidade de lhe falar pela última vez – eu
sabia que o ia perder. mas não em silêncio – um filho nunca é adulto enquanto o
seu pai viver – eu não queria ser adulto. queria ser dono do tempo e caminhar
pelo meu tempo calmamente – queria falar-lhe de nós. falar-lhe de mim.
do meu mundo. daquilo em que acreditava – os jovens acreditam em
cada coisa mais tola – confesso que o que queria mesmo era o seu perdão – era
demasiado jovem para a sua sabedoria – queria dizer-lhe que gostaria de ter
nascido mais cedo. de o ter tido mais tempo a meu lado. queria
ser mais velho só para ele ser mais novo – um homem velho é sempre mais sábio –
na juventude o coração perde-se em tudo e em nada. quase sempre sem critério
nem valores. nunca percebi que metade de mim era dele – e eu sem saber
que os corpos desaparecem enquanto a existência nos distrai com ruas e projetos
que nunca chegarão a lado nenhum – os beijos que não lhe dei multiplicaram-se
com a saudade e são agora uma inquietação permanente – que saudades tenho de ti
meu pai – se eu te pudesse explicar a minha vida. explicar o tempo que
gastei por aí. tenho a certeza de que me irias compreender. e me
dirias que a terra prometida não existe para quem quer fazer coisas – dirias
que ambição são sonhos que se podem realizar. dirias que é bom sonhar e
ser jovem – tu sempre gostaste da juventude – vinte e um anos [vinte e
dois] e as noites ainda escurecem com o teu nome – quando partiste ainda não
era capaz de perceber como o tempo passa a correr. só quando
envelhecemos compreendemos que o amanhã é quase sempre tardio para quem não faz
o que deve fazer – há um momento certo para tudo – sabes deus!! o meu pai era
um homem fantástico – nunca compreendi muito bem esse teu gesto miserável.
essa canalhice. esse roubo ignóbil. calculista e maquiavélico.
o meu pai era um homem bom. de quem toda a gente gostava. e não merecia
morrer sem que pudesse levar um sorriso de quem o amava – desculpa senhor.
mas para ti o perdão ainda é um sentimento que renego – mas deixa-me dizer-te.
com o envelhecimento acabei por amolecer. já não sinto aquela sensação
de raiva e rancor. aquele mau estar quando ouço o teu nome. há
dias em que não sinto mesmo nada. só não te quero por perto. não
te quero dar a outra face – nunca percebi por que razão um homem magoado tem de
o fazer – que se lixe. és o que és. e eu sou o que sou. e
não faço questão nem de mudar. nem de esquecer – o que me intriga.
é que desde que abandonei a tua casa. logo após cobrir o meu pai com
terra sagrada. nunca mais te vi por perto – a minha dúvida é a seguinte:
será que te pesou a consciência e percebeste que não agiste bem com a nossa
família? ou não aguentaste a tampa e ficaste enfunado? confesso que às vezes
acontecem-me coisas para as quais não encontro explicação. ocorre-me que
alguém com a tua personalidade se sinta ressabiado e goste de provocar – vamos
lá esclarecer esta coisa de uma vez por todas: eu não te quero mal.
confesso que não sei porque não te quero mal. sim. depois do que
me fizeste eu deveria ter ido por esse mundo inteiro anunciar que na tua boca
não há verdade. mostrar como não és de confiança. afinal um
trafulha é sempre um trafulha. quer esteja no céu. ou na terra – que
se lixe tudo senhor. que se lixe o passado e as tuas trafulhices – quero
tranquilidade. quero paz para mim e para as memórias do meu pai – se um
dia não tiveres onde pernoitar quero que saibas que a minha casa está à tua
disposição com água e pão. não terás que recorrer a nenhum dos teus
milagres para saciar a fome e a sede – tens uma única condição. não podes
falar de religião – falamos de bola. de política. do preço das
coisas. sei lá. conversamos como se eu ainda fosse criança – tu
sabes que sempre gostei de ser criança. são inocentes e acreditam
em tudo o que lhes dizem – vê lá bem que até me fizeram acreditar em ti – pobre
da miudagem – se realmente é verdade que és omnipotente e misericordioso. então.
és obrigado a perdoar-me. és obrigado a perdoar todos aqueles que
pecaram por pensamentos. palavras. atos ou omissões – espero que respeites
de uma vez por todas o meu agnosticismo – esquece estes últimos vinte e um anos
[vinte e dois]. esquece que um dia pertenci ao teu rebanho – deixa-me
viver a minha condição de pai. deixa-me amar os meus filhos – nunca
deverias ter levado o meu pai sem que ele me dissesse o que um pai diz ao filho
quando se ausenta: tem cuidado. toma conta da tua mãe. não
te esqueças de apagar as luzes à noite – tudo o que me resta é aquele beijo frio.
gelado – quero avisar-te que se me tentares roubar a alma e a memória.
com as mesmas artimanhas que usaste com o meu pai. não vai resultar
comigo. já deixei recomendações da minha última vontade. deixei
tudo escrito – não me levas para lado nenhum. não somos amigos –
entretanto. mantenhamos a cordialidade. bom dia e boa tarde –
vemo-nos nos casamentos. batizados e funerais – o resto já sabes…
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