.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

23/03/2020

quinze dias














quinze dias em casa. quinze dias sem abraçar e esta quarentena a deixar-me louco – quinze dias de trinta. quinze dias que podem ser sessenta e até quem sabe tempo que nem sabemos contar – o que vai ser de nós. o que vai ser da minha casa. o que vai ser das outras casas – uma mesa. dez cadeiras. dez pratos e eu a por a mesa para quem nunca chega – o que fez esta geração de errado? o que há em mim de errado? não sei. e mesmo que soubesse o que poderia eu fazer em tantos lugares do mundo – sei que vou continuar a por a mesa: dez copos. dez talheres. dez guardanapos e os pratos a voar como anjos – como será o mundo em cada prato. em cada casa se da minha janela só vejo desespero – tu. tu não me podes esconder como o céu está desinteressado. o vulto negro a encher-nos de terror. a roubar a dignidade a quem parte. a estropiá-los da vida. num silêncio mudo de dor. sem que ninguém segure a mão. sem um beijo. sem uma lágrima. sem uma oração. sem que nada possa enganar o sofrimento. dizer adeus. pedir perdão – um dia fecho tudo à minha volta. a janela também – estou intrigado com a calmaria das gaivotas na tempestade – porque não batem as ondas nas rochas? porque não troveja? porque não se esconde o sol atrás da lua? que orações tenho eu que rezar para que o mundo volte a sorrir?  estou certo que a razão dos pratos não voarem é a mesma razão das aves que com asas não saem do chão – há coisas que não foram feitas para voar – desígnios? quem quer acreditar nisso – o que mudou no meu infinito? porque raio puseram esta coisa pegajenta à minha frente se o que quero é apenas caminhar. viver o que me falta viver. sonhar o que me falta sonhar. juntar a família numa mesa daqui até itália. que passe por espanha. por moçambique. pelo canadá. pela austrália. pela índia. quero eliminar paradoxos. ligar o mundo num abraço – mas uma coisa é certa. no aperto conhecem-se os amigos quem haveria de dizer que os meus [nossos] estão escondidos nos hospitais. que raio de amigos corajosos tenho eu [temos nós] – que inveja terão outros – será que os merecemos? as ruas continuam com automóveis parvos para lá e para cá. como se o mundo fosse um semáforo que se pode ignorar quando dá jeito – e eu amarrado à mesa a olhar para os pratos. se houvesse ao menos uma corrente de ar para os fazer voar mais uma vez. um milagre – nem uma palavra me faz abrir a boca. o medo pendurou-se na luz – há um silêncio de abismo dentro de mim – olho e nada. e nada me faz pegar na mão e entrar pela garganta abaixo. porque tudo o que magoa está bem lá no fundo. no fundo do que sou. é lá que moro comigo e com o medo. com todos os que estão a sofrer – o mundo num passo que não corre e nada está parado. está tudo assim assim. assim mal. nem frio nem muito frio. nem sol nem muito sol. nem chuva nem muita chuva. só medo e desespero – não consigo tirar os olhos do amanhã – temos que resistir

voz - maria joão



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