estava eu.
mais uma vez. a ouvir a narrativa angustiante de um médico italiano a trabalhar
no combate à cobid19 – à porta do seu hospital. ainda protegido com bata e
luvas. e com as marcas da máscara de proteção vincadas no rosto. confessava em aflição.
que se sentia à beira do colapso. e que não sabia quanto tempo mais iria
aguentar. estava arrasado e destroçado. e pedia desculpa por não conseguir
valer a todos aqueles que precisavam dos seus cuidados – por último. num relato
agonizante e já em lágrimas. dizia que para além de tentar salvar o maior
número de infetados. ainda era forçado a assumir o papel de deus. era também obrigado
a escolher quem vivia e quem morria porque não havia ventiladores que chegassem
para todos – sentia-se completamente exausto e reconhecia que estava a ser quase
impossível lidar com a pressão. o hospital estava num caos. escasseava tudo. desde
material de proteção. a camas. enfermeiros. médicos. medicamentos. estavam simplesmente
a fazer o que era possível – já não ia a casa há mais de uma semana. repousava como
conseguia numa qualquer arrecadação improvisada porque as camas não chegavam
para os doentes e. logo que recuperava alguma energia. voltava ao trabalho até
que a exaustão o obrigasse a parar novamente – era assim a sua vida nos últimos
dias – lembrei-me então dos jogadores profissionais de futebol e da exigência
da UEFA que com uma lei obrigava a que houvesse 72 horas de descanso entre os
jogos – e porque a memória às vezes ignora a seletividade. também preserva o
ridículo. lembrei-me daqueles programas desportivos que de domingo a domingo invadiam
as televisões com discursos de ódio e maledicência – num desses programas. debatia-se
em tom acalorado como se fosse assunto relevante. que a meio da semana realizar-se-ia
um jogo para a liga dos campeões de grande importância e desgaste – diziam
então. esses ditos senhores que em tempos passado jogaram também em campos de
futebol. o que nos leva a presumir que sabem do que falam. são. digamos. os
autoproclamados doutores do futebol – asseguram estes novos doutores do share. que
estes jogos. transmitidos para todo o mundo. são também cruciais para a
afirmação de portugal como uma grande potencia mundial no futebol. e no desporto
em geral – e acrescentavam. por esta razão. espera-se uma grande exibição e uma
vitória expressiva. tudo pelo bem do futebol nacional – o problema é que logo
no fim desse jogo de afirmação dos clubes portugueses e de portugal no mundo. e
cumprindo escrupulosamente o prazo da UEFA para recuperação física dos atletas.
este podia não ser suficiente para a recuperação total dos jogadores. pois ao
cansaço do jogo acrescentava-se o desgaste psicológico e da viagem – tal como
no mundo antigo os deuses moravam no olimpo. no mundo atual os deuses jogam nos
campos de futebol. com mordomias impensáveis para a maioria dos mortais: médicos.
preparadores físicos. massagistas. softwares de treino. viagens com transportes
especiais. hotéis de cinco estrelas. alimentação especialmente cuidada com a
inclusão de cozinheiros especializados em alimentação saudável para atletas de
alta competição. e para que não me alongue em detalhes sobre cuidados com os
superatletas. ordenados escandalosamente inflacionados que nos envergonham e nos
levam a questionar como foi possível permitirmos que isto acontecesse com pessoas
que. em boa verdade. apenas criam um espetáculo de entretenimento. tal e qual
como o circo. o teatro. a música. e outras tantas formas que nos ajudam a
esquecer aquilo que o homem criou para se aborrecer – como foi possível
deixarmos que isto acontecesse quando tanta gente no mundo morre à fome –
desculpem. mas vou tentar não entrar por este caminho de acerto de contas com o
passado. sei que este momento exige outro tipo de reflexão – o que sei é que neste
momento há milhares de pessoas. das mais variadas profissões. que continuam a
arriscar as suas vidas para que nós possamos estar em casa com medo – sim. estar
com medo e pensar no medo é um luxo que nem todos se podem permitir – voltando
à minha memória. pois bem. quando as coisas correm mal a resposta é muito fácil.
os deuses do futebol estavam cansados. o jogo a meio da semana arrasou a equipa.
estavam sem forças e conforme o tempo se esgotava percebia-se perfeitamente que
a força e o discernimento já não correspondiam à vontade – e agora senhores da
bola. quando o futebol regressar. será com o mesmo descaramento. e depois do
que viram de desgaste nos nossos profissionais de saúde. digam-nos sem aquela
arrogância de que o futebol é o desporto rei e do povo. se vão continuar a dizer que os pobres homens
estavam cansados e a pressão é muito grande? às vezes. na minha loucura de
humano. interrogo-me se estas coisas não acontecem para colocar tudo novamente
no seu lugar – o que projeta a grandeza de um país no mundo é em boa verdade o
seu serviço nacional de saúde e os seus profissionais – é reconfortante saber
que essa gente anónima existe – este nosso país é verdadeiramente grandioso - obrigado
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
28/03/2020
a covid19 e o futebol
imagem - google
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