.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

28/03/2020

a covid19 e o futebol


imagem - google


estava eu. mais uma vez. a ouvir a narrativa angustiante de um médico italiano a trabalhar no combate à cobid19 – à porta do seu hospital. ainda protegido com bata e luvas. e com as marcas da máscara de proteção vincadas no rosto. confessava em aflição. que se sentia à beira do colapso. e que não sabia quanto tempo mais iria aguentar. estava arrasado e destroçado. e pedia desculpa por não conseguir valer a todos aqueles que precisavam dos seus cuidados – por último. num relato agonizante e já em lágrimas. dizia que para além de tentar salvar o maior número de infetados. ainda era forçado a assumir o papel de deus. era também obrigado a escolher quem vivia e quem morria porque não havia ventiladores que chegassem para todos – sentia-se completamente exausto e reconhecia que estava a ser quase impossível lidar com a pressão. o hospital estava num caos. escasseava tudo. desde material de proteção. a camas. enfermeiros. médicos. medicamentos. estavam simplesmente a fazer o que era possível – já não ia a casa há mais de uma semana. repousava como conseguia numa qualquer arrecadação improvisada porque as camas não chegavam para os doentes e. logo que recuperava alguma energia. voltava ao trabalho até que a exaustão o obrigasse a parar novamente – era assim a sua vida nos últimos dias – lembrei-me então dos jogadores profissionais de futebol e da exigência da UEFA que com uma lei obrigava a que houvesse 72 horas de descanso entre os jogos – e porque a memória às vezes ignora a seletividade. também preserva o ridículo. lembrei-me daqueles programas desportivos que de domingo a domingo invadiam as televisões com discursos de ódio e maledicência – num desses programas. debatia-se em tom acalorado como se fosse assunto relevante. que a meio da semana realizar-se-ia um jogo para a liga dos campeões de grande importância e desgaste – diziam então. esses ditos senhores que em tempos passado jogaram também em campos de futebol. o que nos leva a presumir que sabem do que falam. são. digamos. os autoproclamados doutores do futebol – asseguram estes novos doutores do share. que estes jogos. transmitidos para todo o mundo. são também cruciais para a afirmação de portugal como uma grande potencia mundial no futebol. e no desporto em geral – e acrescentavam. por esta razão. espera-se uma grande exibição e uma vitória expressiva. tudo pelo bem do futebol nacional – o problema é que logo no fim desse jogo de afirmação dos clubes portugueses e de portugal no mundo. e cumprindo escrupulosamente o prazo da UEFA para recuperação física dos atletas. este podia não ser suficiente para a recuperação total dos jogadores. pois ao cansaço do jogo acrescentava-se o desgaste psicológico e da viagem – tal como no mundo antigo os deuses moravam no olimpo. no mundo atual os deuses jogam nos campos de futebol. com mordomias impensáveis para a maioria dos mortais: médicos. preparadores físicos. massagistas. softwares de treino. viagens com transportes especiais. hotéis de cinco estrelas. alimentação especialmente cuidada com a inclusão de cozinheiros especializados em alimentação saudável para atletas de alta competição. e para que não me alongue em detalhes sobre cuidados com os superatletas. ordenados escandalosamente inflacionados que nos envergonham e nos levam a questionar como foi possível permitirmos que isto acontecesse com pessoas que. em boa verdade. apenas criam um espetáculo de entretenimento. tal e qual como o circo. o teatro. a música. e outras tantas formas que nos ajudam a esquecer aquilo que o homem criou para se aborrecer – como foi possível deixarmos que isto acontecesse quando tanta gente no mundo morre à fome – desculpem. mas vou tentar não entrar por este caminho de acerto de contas com o passado. sei que este momento exige outro tipo de reflexão – o que sei é que neste momento há milhares de pessoas. das mais variadas profissões. que continuam a arriscar as suas vidas para que nós possamos estar em casa com medo – sim. estar com medo e pensar no medo é um luxo que nem todos se podem permitir – voltando à minha memória. pois bem. quando as coisas correm mal a resposta é muito fácil. os deuses do futebol estavam cansados. o jogo a meio da semana arrasou a equipa. estavam sem forças e conforme o tempo se esgotava percebia-se perfeitamente que a força e o discernimento já não correspondiam à vontade – e agora senhores da bola. quando o futebol regressar. será com o mesmo descaramento. e depois do que viram de desgaste nos nossos profissionais de saúde. digam-nos sem aquela arrogância de que o futebol é o desporto rei e do povo.  se vão continuar a dizer que os pobres homens estavam cansados e a pressão é muito grande? às vezes. na minha loucura de humano. interrogo-me se estas coisas não acontecem para colocar tudo novamente no seu lugar – o que projeta a grandeza de um país no mundo é em boa verdade o seu serviço nacional de saúde e os seus profissionais – é reconfortante saber que essa gente anónima existe – este nosso país é verdadeiramente grandioso - obrigado


Sem comentários:

Enviar um comentário