.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/03/2017

tortura





imagem: google



e aqui vai um sorriso. não pensem de que é de felicidade. não. não é. e também não é por nenhuma aproximação luxuriosa ao meu espaço facebookiano de um daqueles amigos íntimos que não conheço - muito menos de alguém que me acabou de ler uma daquelas prosas aborrecidas. então perguntem em voz alta: estás feliz porque? a resposta é simples, vou almoçar e estou cheio de determinação para dar continuidade aos dois quilos perdidos em duas semanas - vou então. e sempre num ato de contrição. emborcar comedidamente um prato de sopa sem batata. um iogurte de aroma da agros – acabei de enganar a fome com a arte de um grande aldravão - de seguida remato com duas bolachas de água e sal, um queijinho fresco e muita água para fazer brilhar os rins - nos confins da casa, escondida a trás da porta da casa de banho a terrível balança decimal. sem escrúpulos. afia a faca com vontade de me cortar ás postas: como come e depois anda dizer que estás inchado da retenção de líquidos - não quero desculpas. se não emagreces... então estás a comer mais do que desgastas diariamente - bota atenção às calorias rapaz senão lá se vai a seletividade - é que eu não alinho na naquela máxima de que gordura é formosura


24/03/2017

o filho da puta do meu facebook mata-me de tristeza ao fim de semana







pintura - susana soto poblette





lamento. acreditem que lamento mesmo. bem que gostava de usar este face para outro fim que não fosse este de vos entregar este nada em que me converti – tal como os extremistas religiosos também eu adotei outro nome para o facebook – bem sei que hoje é véspera de fim de semana. e também sei que amanhã será outro dia diferente de hoje. estarei então a olhar para coisas humanas em estado eminente de ejaculação multiplica de amigos – direi: estou morto. morto com a alegria dos outros. e eu enterrado em tristeza corro o facebook em desespero e sinto a vida a partir. e a loucura envolta em água turva. tão turva que os peixes não nadam. caminham de pé por dentro de mim. e as guelras feitas de naturezas mortas. maças podres. podres de sentimento. com sorrisos que cantam o cântico da praxe: hino à alegria de beethoven – e eu viajo para a morte arrastado por esta corrente de gente que não morre de solidão – só eu vivo esta ironia. numa mão uma rosa. na outra. um movimento louco de me atirar para o fim do mundo à procura de gente como eu – não encontro paz. vazio. tudo vazio. como se o espaço facebookiano fosse apenas eu e meu cão que não tem perfil – e olhos a correr para uma morte que não escolhi.  queria tanto ter amigos como eu – estou cada vez mais só. só nesta forma de estar. e a prosa que escrevo é carne da minha carne contaminada de lepra – não sei rir neste meu face. não sei colocar frases de incentivo. não sei mandar beijinhos. não sei destapar a boca do amor para tantos amigos que não conheço. o meu rigor é uma muralha que resiste – arrasto-me para esta borda do corpo e juro que se um dia me suicidar será para dentro do meu corpo. morrerei eu e os meus peixes e enterrarei os meus resto mortais no vale das utopias –  estou morto por um punhado de likes mas ainda resisto ao lado escuro do facebook – resisto eu e o meu cão. neste mundo de sombras mortas tentamo-nos entender: dou-lhe um biscoito e recebo em troca um like de sorrisos de verdade – e então canto. canto poesia que não é minha e a morte premeditada ligada a um fio terra enrolado ao pescoço –  o enforcado da carta sou eu – não sou nada neste meu facebook. não sei dar likes com o dedo para cima porque estou de cabeça para baixo – não sou feliz. não – sou verdadeiro na minha solidão




22/03/2017

lobo antunes em braga – livraria centésima página II






foto google



dezembro de 2012 – chove copiosamente na minha cidade. braga. mais propriamente na sua sala de visitas. avenida central – estou agora na livraria centésima página e tenho a honra de vos anunciar de que o antónio lobo antunes é muito mais bonito ao vivo do que nas contracapas dos seus livros –

entrou na livraria assim como um cowboy entra no saloon. passo certo. acelerado. ritmado. sem desviar os olhos do infindável destino: uma cadeira e uma mesa rasca decorada com uma garrafa de água – visita a minha cidade para uma sessão de autógrafos a propósito do seu novo romance: “não é meia-noite quem quer” – o silêncio foi-se arrumando pela sala conforme as cadeiras se ocupavam – os seus admiradores miravam-no de soslaio. como se tivessem pavor de olhar de frente o seu ídolo. talvez com receio de que a todo o momento ele perguntasse: -- está a olhar para onde amigo? toca a andar. desocupe-me o espaço – sempre foi de conhecimento público o seu mau feitio. coisa de nascença. sorrisos só mesmo para o que lhe interessava. já nessa altura a sua mãe reclamava: -- só tens interesse pelas raparigas e pela escrita. ao qual lhe respondia: -- há mais alguma coisa? por isso não é de estranhar o seu afastamento seletivo do resto do mundo. nunca foi muito dado a intimidades com o seus leitores. para não falar da fama de aterrorizar os entrevistadores. como o próprio diz: “não [me] é fácil viver comigo” – sentado. inquieto. ajeitou o corpo. fletiu as pernas. atirou os olhos para o nada e ausentou-se do mundo que o rodeava. assim como quem diz: usem o meu corpo mas não abusem da minha paciência – estou convencido de que para lobo antunes a sala naquele momento encontrava-se vazia. presente só mesmo ele e os livros interrompidos nas prateleiras – e ali ficou sentado. a remoer o ossos. de um lado para outro. como se tivesse bichos carpinteiros. enquanto as mãos trabalhadas descansavam em cima da mesa. sabiam que a todo o momento eram obrigadas a dar início a mais uma palestra – o sr. antónio fala muito com as mãos – o momento era particular para mim. pela primeira vez tinha o autor em carne e osso ao pé de mim. nos livros já o tinha tido por perto muitas vezes. agora é diferente. agora posso senti-lo num único aroma – o momento não era fácil para mim. sentia-me nervoso. agitado. impaciente por ver o tempo passar sem que se desse início à cerimónia – não havia alternativa. tinha que aguentar firme. afinal este é um dia único. um dia  especial para os seus admiradores. até os livros interrompidos nas prateleiras me pareciam engalanados de atenções. bonitos. com as capas a reluzir. tudo edições raras e de autores consagrados. em destaque a nossa maior obra poética. os lusíadas. ao seu lado a sophia andresen. como era bonita esta mulher. só a sua escrita lhe ultrapassa os encantos. e logo de seguida o meu adorado júlio dinis. quantas vezes chorei nos seus livros. marcou-me a vida para sempre. ao seu lado o eça. sempre empoleirado no crime do padre amaro. que loucura de história. o júlio não podia ter melhor companhia. seguem-se os poemas do eugénio. na sua sensibilidade. como se pode dizer tanto com tão poucas palavras. e mais o camilo com aquele bigode inconfundível. e o saramago empoleirado no nobel. meu deus que loucura. que honra. olha! mais um que um dia vai dar que falar. o josé luís peixoto. gosto deste homem. já brilha. e tantos. tantos outros. aos magotes – dos estrangeiros não falo. afinal estamos na pátria de camões e não é todos os dias que uma pequena livraria recebe em sua casa um galardoado com o nobel latino – o cenário era nobre. gracioso. não podia ser melhor. o maior escritor português vivo rodeado de livros por todos os lados – escondi-me na segunda fila tentando passar a ideia de que estava por ali apenas pelo mau tempo. chovia. passava à porta e pensei: ai está um local agradável para me abrigar da intempérie. “voilá” – nunca gostei de estar na primeira fila – certo dia contaram-me uma história curiosa sobre a entrada em cena dos actores: dizem que quando sobem ao palco tentam perceber que tipo de público está na sua presença. dão dois passos em frente. dobram-se em vénia. e colocam os olhos na primeira fila. conforme levantam o corpo. em movimento lento. olham para as últimas três ou quatro filas. o que sobra é povo – aí está o dia perfeito para confirmar a teoria. espero bem que não me tenham aldrabado e que o sr. antónio me considere parte desse povo. sentei-me na segunda fila – abriu-se a sessão com a intervenção do responsável pela editora com amabilidades perfeitamente dispensáveis – mas o protocolo é para cumprir. felizmente logo perceberam que o melhor era entregar a palavra ao convidado – começou a roçar o corpo na cadeira de um lado para o outro enquanto as palavras começavam a sair a custo. um gaguejo tranquilo para ali e logo outro para acolá. depois. um silêncio que parecia uma eternidade. e tudo num vagar de assustar. e lá chegava outra palavra. outra ideia. e os fãs a baloiçar na entrega. e mais uma palavra. e mais um silêncio e as dúvidas a crescer na plateia: será que o homem quer mesmo falar para estes pacóvios? e o emudecimento a ganhar distancia. as palavras cada vez mais espaçadas – o silêncio crescia atabalhoadamente sendo apenas abafado pelo barulho da chuva no exterior. chove a cântaros na minha cidade – só não chovem palavras – por momentos fiquei convencido de que o autor iria sair como entrou: a galope e aos tiros para o ar. os cowboys são assim – não quis saber. e disse para mim mesmo. se não falar com a boca fico-lhe com os gestos. com os olhos. com os tiques. com a cor das mãos. da pele. afinal não é todos os dias que tenho o antónio lobo antunes na minha cidade – mas aos poucos as palavras começaram a cair-lhe da boca. como se descobrissem que estava na hora de tomar a plateia – e eu ali. estarrecido de medo. babado. doido para não perder uma única silaba. com a cabeça dobrada para a frente. todos queriam ser os primeiros a agarrar as palavras. e os olhos esbugalhados de tanta excitação e por dentro uma sensação de orgasmo. quente. com o coração a bater um tic tac explosivo. um contentamento estranho. louco. maravilhado. e a pergunta. porque não fiquei na primeira fila – e ali estava eu com o meu corpo estátua. completamente paralisado. perdido entre a imortalidade dos deuses e a gratidão eterna por existir aquele momento – só os olhos lhe acompanham as mãos. tudo o resto é paralisia. não se pode irritar os deuses – enquanto a chuva amainava as palavras caíam-lhe da boca em enxurrada. afinal havia uma razão para o mau tempo na minha cidade – finalmente tínhamos lobo antunes. o corpo atirou-se definitivamente para cima da mesa. estava agora ainda mais perto de mim e eu sem medo de o olhar naqueles olhos translúcidos. livres. bonitos. amenos. feitos de um silêncio-solidão-doce – só quem fala conhece o verdadeiro valor da palavra – os lábios sem descanso. falavam agora desconcertadamente. contorciam-se de prazer. numa cadência harmoniosa. com paixão. com gosto. com ternura. com entrega. agradecidos ao momento – a vida é feita de momentos. alguns ficam guardados para sempre. outros. nunca se fazem palavra – e não se cala. e a voz em inflexões subtis alerta: deitem atenção que esta parte é importante. e os afetos finalmente ali. ali à minha frente. a tocarem-me por dentro. e pela primeira vez senti um sofrimento que dói mas não é dor. é um desconforto feliz. uma vontade de chorar por não lhe poder dizer: eu já senti isso. eu já passei por isso. eu já fui assim. eu já quis escrever isso. afinal também é um de nós – e eu pensei que era extraterrestre – finalmente senti um silêncio bom. pacato. sereno. a plateia em ar de graça entregou-se ao autor sem medo – havia uma espécie de bonança. a tempestade perdeu toda a sua força e os sorrisos do autor estavam sem dono. eu guardei um só para mim – é enorme a porra deste homem e eu ali de braços cruzados. a olhar para tudo que é dele. com um ar sério-doce. sério-aceitação. sério-bondade. sério-fraternal. amigo. camarada. sério-triste também.  até o casaco estava triste. pingado. amarrotado. talvez da vida. não sei. que mais poderia fazer pingar um casaco de um homem tão especial. não creio que não tivesse outro casaco. acredito é que todos os casacos quando lhe caem nos ombros ficam pingados. possivelmente pelo peso das palavras que transporta com ele  

[tenho o sentimento de que neste texto ainda falta mais um prego. enorme. capaz de segurar o prosista]



brevemente a parte III


deambulações noturnas XV






foto - sampaio rego



e pronto. passei a noite toda a remexer nas memórias - mas o mais cruel é que nada do que encontrei foi possível alterar - não percebo para que guardo tanta tralha - vou ter que me limpar. custe o que custar - mas confesso que não sei por onde





21/03/2017

espelhos





kit king e corey oda popp






úlceras estrábicas separam
palavras

lentes de aumento
arremessam os amigos.
palavras pequenas
juram os outros.
ao espelho
onde a luz se segura
em cristais.
uns e outros
decifram o mal

o espelho inventado pela imagem
gira tudo que se lhe apronta.
meus amigos leem de pé;
os outros.
de pernas para o ar







20/03/2017

dia do pai










em memória tenho o meu primeiro desejo como adolescente - ser pai - na altura não compreendi muito bem de onde me tinha chegado aquele sentimento - passei então muito tempo sem compreender e também confesso sem lhe atribuir grande importância - fui então pai muito novo e assim pensei ter colocado um ponto final neste assunto - hoje. passado mais este meu dia e do meu pai. a memória voltou e em forma de prenda trouxe-me de novo esse sentimento iluminado e a sua resposta - muitas vezes precisamos envelhecer para conquistar a sabedoria natural do mundo - os meus filhos são a única razão da minha vida. não houve um único dia da sua vida que me fizessem não ser grato à sua mãe pela sua existência - são a minha grande afirmação na vida e a única que me orgulha - são homens fantásticos. bons. leais. honrados. são homens de família e determinados a enaltecer a justiça dos comportamentos - tenho a certeza de que serão eles também bons pais – tê-los neste dia juntos voltou a lembrar-me que ser pai é para sempre – foi um grande momento de alegria e de agradecimento ao destino – já não sou um homem de muita fé mas se realmente houver esse deus que um dia acreditei. se estiver enganado. que me perdoe. mas não se esqueça de mos proteger




14/03/2017

lobo antunes em braga – livraria centésima página I






imagem - google


I.
na hora da conclusão do trabalho nunca pode faltar martelo e prego – o mestre ganha distância da obra. fecha um olho. inclina a cabeça para um lado. mira. de seguida repete o gesto para o lado oposto. mira novamente. arreguila os olhos. finca os pés. aponta o prego. ajusta os dedos em pressão. atira o braço para trás. ganha balanço e espaço e… zás. duas marteladas certeiras e a consciência em paz: venha daí um terramoto que daqui não abala para mais lado nenhum – sou livro. agora e para sempre – acredito que o antónio lobo antunes nos retoques finais dos seus livros  também sinta necessidade de pregar sempre mais um prego – se o antónio fosse engraxador daria aquele remate final de lustro: aquele movimento de arvorar o pano tingido de graxa. ora vai para um lado. ora vai para o outro. ora mais depressa. ora mais devagar para aniquilar o bacilo anti brilho. e agora um movimento circular. e o pano a enrodilhar-se num círculo cada vez mais estreito e tudo de volta ao começo com as mãos a puxar o pano para um lado e para o outro e nos intervalos deste vai e vem  um lance de génio e o pano a subir em diagonal. como se fosse uma montanha russa e de seguida uma queda abrupta. em força. e o barulho do pano a estalar no couro. trás. trás. trás – nos olhos um prazer que nunca percebi de onde vinha se do movimento enérgico do braço ou do barulho do pano a estatelar-se no brilho do sapato – o que seria do brilho do sapato sem aquele estalar do couro – e no final. quando os pés se acercavam do chão os olhos afundavam-se nos sapatos. lindos. como se voltassem a novos. quase jurava que me via no seu reflexo – mas o antónio diz que é um carpinteiro e sendo assim. só pode mesmo cravar uns pregos para ter a certeza de que a sua obra ficará para a eternidade – no caso do sr. antónio. que é um escritor enorme. do tamanho de uma biblioteca. creio que lhe baste um pequeníssimo prego. uma taxinha finíssima. quase invisível para ter a certeza. mais uma vez. de que a sua obra perdurará para todo o sempre – este homem é especial. ele não escreve. ele entrega-nos as palavras ao ouvido. como se estivesse a falar apenas para nós – como explicar – assim tipo uma conversa tu cá. tu lá. de braço dado. num tom de voz tão sereno que mais se aprece um sussurro entre amigos de cangosta – e o eco das palavras a percorrer o ouvido como uma delicadeza fascinante. e o corpo arrepiado com tanta amabilidade. mel. graciosidade e por dentro uma sensação de conforto. de aconchego. a fazer bem. a dar luz a umas quantas incoerências –  e repete. e repete. e repete. e o ouvido sempre à procura de mais delicadeza. de mais conforto. de mais tranquilidade. com uma  atenção que desconhecia para as palavras escritas. e a repetição no ouvido sem parar a embalar o corpo para uma paz que me aperta com carinho – sou um apaixonado pelas crónicas do sr. antónio. para cada um dos seus textos. um milhão de perguntas por lhe fazer: como se lembrou de escrever essa coisa? – o sr. antónio diz que foi por dinheiro. a pedido de um jornal. e que até nem lhe tinha grande amor – bendito jornal – eu amo as suas crónicas. fazem-me bem. distraem-me. fico assim um pouco como a sua tia velhota que quando lhe perguntavam porque não tinha TV lhe respondia: quando fecho os olhos vejo tanta coisa – poi eu estou igual. quando fecho o seu livro de crónicas também passo a ver tanta coisa – mas quando caio em mim novamente sou invadido por uma realidade danada – levo um soco no ego. caio para o lado atordoado. e à cabeça o raio de uma pergunta: não sei como tenho coragem de escrever



13/03/2017

medo




pintura híper realista - omar ortiz






se as mãos não me tremessem. talvez o medo nunca soubesse que existo – e quem sabe as palavras nasceriam mais íntegras. aos olhos dos que as leem


12/03/2017

há um dia em que despertamos e dizemos:




pintura - giovana santiago


II.


e aqui estou. completamente desacompanhado neste lençol que não quero que acabe. entrevado em razões que não consigo explicar – enrodilho-me. eu e o lençol numa cumplicidade platónica. amante. doce. num silêncio que não é mais do que o mundo sem humanos. sem erro. sem punição. sem preconceito e principalmente sem competição – eu destapo a alma. ele tapa-me o corpo. eu praguejo. ele dá-me serenidade. eu desisto. ele insiste na vida. eu esqueço-me de mim. ele lembra-me que a patranha só é contrariável quando permanecemos nos olhos do mundo – felizmente ainda sei que só este meu corpo magoado faz com que o lençol exista – acabou o gigantismo. não mais crescerei. matei a hormona. estrangulei-a. decapitei-a da ambição. fiz acontecer a morte a um corpo ainda a viver. finalmente – agora estou em desesperança num silêncio resignado. humilde. submisso. pesaroso. em forma de perdão à expectativa – com o tempo todas as lembranças se apagarão. a fé toma a dimensão da realidade e a aceitação da desfortuna será apenas um lamento baixinho: esperávamos mais – nesse dia restará apenas o nome. somente um nome singelo. sem imagem. sem boca. sem gestos. sem confiança. será apenas lápide – será no desconhecido que encontrão a totalidade de mim – revolvo-me mais uma vez e peço compaixão. peço uma horinha rápida. estou prenho da morte. prometo ao desconhecido que não volto a reencarnar e aceitarei o inferno como destino para a minha última morada –contorço-me. eu e o lençol. agoniamo-nos. amarguramo-nos. torturamo-nos. enquanto o lamento. em desespero. pede à boca para pedir perdão em voz que se faça ouvir pelo mundo – as mãos furibundas enrodilham o cérebro com o que resta de apego à vontade de viver retirando-lhes o desvario para a eutanásia – e viro-me para um lado. depois para outro. e mais outro e o amanhecer sem acerto. e viro-me outra vez e nada dá certo. nem eu nem o lençol cada vez mais amarrotado – afinal tudo estava errado e a saliva a cair-me pelo canto da boca encharca o travesseiro de um excremento pegajoso que só pode ser arrependimento – tudo tão real. tudo tão perfeito na imperfeição – era capaz de jurar que estou a sonhar. mas não estou. sei que as mãos tremem. os pés destilam ira num lençol gelado por não me aceitarem num branco que não é branco nem tem cor. enquanto os buracos das persianas projetam na parede as duas faces da vida: um quadriculado de luz e sombra – e eu preso por detrás de uma parede que não me serve nem para pendurar um quadro do meu passado – raio de penumbra cruel – escondo-me de mim e ofereço à miséria as mãos encaixotadas de um nada que me mata o afecto – e a contagem sem acerto possível. o deve e o haver paralisados de tragédia enquanto os olhos se contorcem entre sorrisos e lágrimas – olho para o relógio e assisto a um infindável movimento dos ponteiros. lento por não ter os segundos a correr – relógio que não dá horas não alerta do destino – espero um dia acordar e dizer: não me enganas mais com promessas. não me enganas com nada. nem que me  ofereças um ramo de flores com o perfume de um poema de herberto – “eu sou uma vida com furibunda melancolia, com furibunda concepção” – para a frente já quase nada. tudo lento. para trás. tudo feito numa amálgama de coisas que mais parece um abraço de apertos – e por aqui fico em partes do tempo que não compreendo e não sei explicar – se me pudesse explicar seria um de vocês


05/03/2017

há um dia em que despertamos e dizemos:




pintura - rafael pintos




I.

um dia em que despertamos e dizemos: já tive o bastante desta vida – e ali ficamos enrodilhados. num estado vegetal. meio a dormir. meio acordado. acomodado em lençol que já não é branco nem tem cor. nem é comprido. nem curto o suficiente para me acabar com esta pré-existência para a vida – revolvo-me no lençol e enrodilho-me comigo – recuso-me a abrir os olhos – sinto aquele pano enorme por inteiro. não sei a origem do tecido nem como foi feito. sei que me começa nos pés. depois. depois sobe até me esconder do insuportável. escorado numa moral categórica: o que está errado. errado está – as leis científicas são universais. enquanto as leis da moral são unicamente do meu lençol. um lençol bipolar. extremado. inflexível. às vezes leve porque me deixa levitar acima do que na realidade sou – revolvo-me. o lençol também. arrasta-se comigo de um lado para o outro. numa transparência que me permite rever com crueldade o que teimosamente quero esconder de mim – há coisas que não param de doer. nem com o tempo – gostava de perder este apego ao mundo. juro. juro que gostava – obrigava-me então a dormir sem roupa. sem nada que me revestisse o corpo de uma pele que não é minha. uma pele que se fez diabólica. cruel. desumana porque se está nas tintas para as teorias de kant – é um lençol. como direi. é um lençol que me cobre do mundo e me destapa de mim – debaixo dele sou solidão dorida. sou um eu fragilizado. agrilhoado a silêncio cruel – enrodilho-me então mais uma vez e auto-comunico. protesto. bato-me pela razão. enraiveço. juro justiça. vingança. sou cru. mau. bárbaro e de dedo em riste ameaço. julgo e condeno – é esta a forma de perdão que encontrei para dar repouso à moral kantiana: agir de acordo com a minha vontade para que as minhas ações se transformem válidas para todos – sei agora que a perfeição não existe. o ótimo é inimigo do bom – nem sou ótimo. nem bom. sou uma equação com um número interminável de soluções aproximadas – corre-me então um suor estranho pelo corpo. que não se apega a nada. esguio. desvairado. como se quisesse fugir da pele. assim como quem vai dizendo em forma de alerta: cuidado. o pior ainda está por aí a chegar – talvez este suor nojento saiba algum segredo do meu interior profundo. talvez – há dias em que despertamos e dizemos: já tive o bastante desta vida – desperto. não abro os olhos. estão inchados. enquanto o cabelo se arrepia em direção ao céu. os fantasmas não o largam. cara amarrotada de insónias. mau hálito. boca empalhada de fel. e aquele cheiro a putrefação dos sonhos mortos. mortos aos milhares. degolados. privados para sempre da ilusão – nenhum homem consegue sobreviver sem sonhos. nenhum homem – por cada volta nos lençóis mais um pedaço da vida para experienciar. em voltas que nada mudam e que magoam cada vez mais numa tortura que atormenta mais do que chicote – e o corpo a dobrar numa moral que me foi vendida como elixir de sucesso – mas não. o mundo mudou e eu também. estou mais antigo. mais sem forças. agora há mais um joelho a dobrar. e depois dobro o corpo. de seguida chegam as mãos com o peito e por último os olhos. tristes. apagados. agonizados. desocupados. a teimar com a luz. encovam-se numa omissão de meter medo. dissimulam-se em morte. impingem-se ao escuro numa graça de quem sabe que a morte é feita apenas de ausência – na escuridão é sempre mais difícil demonstrar que o corpo ainda quer viver – enrodilho-me noutra volta. uma perna no passado enquanto a outra pede caminho. pede angústia. dor. mutilação. só caminhando se faz passado – todo o meu futuro se faz de um presente que não controlo – revolvo-me. por cada volta chega a certeza que já nada existe dentro de mim que valha a pena acreditar. a fé morreu primeiro do que o corpo – resta-me um desejo carrasco de me desapegar da vida –
.
parte II - em breve



02/03/2017

vergonha




imagem - google





neste mundo de ravinas
meus olhos caem por terra
uns dizem que é vergonha
a poesia diz-me que não:
é apenas meu cajado
bicando sobras de quem passa