.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

12/03/2017

há um dia em que despertamos e dizemos:




pintura - giovana santiago


II.


e aqui estou. completamente desacompanhado neste lençol que não quero que acabe. entrevado em razões que não consigo explicar – enrodilho-me. eu e o lençol numa cumplicidade platónica. amante. doce. num silêncio que não é mais do que o mundo sem humanos. sem erro. sem punição. sem preconceito e principalmente sem competição – eu destapo a alma. ele tapa-me o corpo. eu praguejo. ele dá-me serenidade. eu desisto. ele insiste na vida. eu esqueço-me de mim. ele lembra-me que a patranha só é contrariável quando permanecemos nos olhos do mundo – felizmente ainda sei que só este meu corpo magoado faz com que o lençol exista – acabou o gigantismo. não mais crescerei. matei a hormona. estrangulei-a. decapitei-a da ambição. fiz acontecer a morte a um corpo ainda a viver. finalmente – agora estou em desesperança num silêncio resignado. humilde. submisso. pesaroso. em forma de perdão à expectativa – com o tempo todas as lembranças se apagarão. a fé toma a dimensão da realidade e a aceitação da desfortuna será apenas um lamento baixinho: esperávamos mais – nesse dia restará apenas o nome. somente um nome singelo. sem imagem. sem boca. sem gestos. sem confiança. será apenas lápide – será no desconhecido que encontrão a totalidade de mim – revolvo-me mais uma vez e peço compaixão. peço uma horinha rápida. estou prenho da morte. prometo ao desconhecido que não volto a reencarnar e aceitarei o inferno como destino para a minha última morada –contorço-me. eu e o lençol. agoniamo-nos. amarguramo-nos. torturamo-nos. enquanto o lamento. em desespero. pede à boca para pedir perdão em voz que se faça ouvir pelo mundo – as mãos furibundas enrodilham o cérebro com o que resta de apego à vontade de viver retirando-lhes o desvario para a eutanásia – e viro-me para um lado. depois para outro. e mais outro e o amanhecer sem acerto. e viro-me outra vez e nada dá certo. nem eu nem o lençol cada vez mais amarrotado – afinal tudo estava errado e a saliva a cair-me pelo canto da boca encharca o travesseiro de um excremento pegajoso que só pode ser arrependimento – tudo tão real. tudo tão perfeito na imperfeição – era capaz de jurar que estou a sonhar. mas não estou. sei que as mãos tremem. os pés destilam ira num lençol gelado por não me aceitarem num branco que não é branco nem tem cor. enquanto os buracos das persianas projetam na parede as duas faces da vida: um quadriculado de luz e sombra – e eu preso por detrás de uma parede que não me serve nem para pendurar um quadro do meu passado – raio de penumbra cruel – escondo-me de mim e ofereço à miséria as mãos encaixotadas de um nada que me mata o afecto – e a contagem sem acerto possível. o deve e o haver paralisados de tragédia enquanto os olhos se contorcem entre sorrisos e lágrimas – olho para o relógio e assisto a um infindável movimento dos ponteiros. lento por não ter os segundos a correr – relógio que não dá horas não alerta do destino – espero um dia acordar e dizer: não me enganas mais com promessas. não me enganas com nada. nem que me  ofereças um ramo de flores com o perfume de um poema de herberto – “eu sou uma vida com furibunda melancolia, com furibunda concepção” – para a frente já quase nada. tudo lento. para trás. tudo feito numa amálgama de coisas que mais parece um abraço de apertos – e por aqui fico em partes do tempo que não compreendo e não sei explicar – se me pudesse explicar seria um de vocês


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