.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/12/2021

eu. o contabilista. e a pistola do meu pai

 


 





estaria pelos meus dez anos. talvez onze. mais coisa menos coisa. quando estive prestes a cometer homicídio involuntário. digo eu que gosto de dramatizar mais uma memória feliz da minha infância – o meu pai. apesar de patrão. industrial de marroquinaria e afins. era também vendedor. corria o país de lés a lés. cidades e vilarejos. nada ficava por visitar. cada peça vendida era um pão na mesa – naquele tempo não havia autoestradas. as estradas principais eram péssimas. com curvas e contracurvas. estreitas e em paralelo – no interior do país. as urbes eram pequenas e rurais. pouco comércio. e ainda menos gente para comprar. portugal era lisboa e tudo o resto paisagem – as deslocações eram estimadas em tempo e não em quilómetros. uma viagem a trás-os-montes começava no primeiro dia da semana. e o regresso acontecia inevitavelmente à sexta-feira – os carros não eram como os de hoje. suspensões de molas. assentos rijos. ar condicionado fazia-se de vidros abertos. e devido à fragilidade dos motores. não era raro ficar abeirado em qualquer canto – não havia telemóveis. assistência em viagem. nem reboques. nem mecânicos. quando um carro ficava empanado no meio de uma serra a solução era ali pernoitar. esperar que o dia raiasse. e tentar apanhar boleia num dos raríssimos carros que por ali passasse. ou caminhar a pé até à população mais próxima. e tentar encontrar um curioso em mecânica que o pudesse desenrascar – a vida de vendedor era muito complicada. dura e perigosa – todos os vendedores andavam armados. o meu pai para não ficar atrás também se armou.  tinha uma pistola de 9mm legalizada pelo governo civil de braga e registada na PSP. sentia-se mais seguro. acreditava na intimidação. os meliantes evitam diálogos com balas – naquela época era normal os homens fazerem-se acompanhar de pistola. dava-lhes importância. virilidade. e dinheiro. que a maior parte dos vendedores não tinha – antes do 25 de abril todos éramos pobres. vivia-se num país miserável. ainda vivemos – quando não estava em viagem o meu pai guardava a pistola na primeira gaveta da mesinha cabeceira. oculta debaixo dos lenços e meias – sempre que me apanhava em casa sozinho. tal como a produção de hollywood com que somos brindados todos os natais. aproveitava para dar largas à minha rebeldia.  assaltava a mesinha de cabeceira. sacava-lhe a arma e tornava-me no mais cruel justiceiro de todos os tempos – apontava a tudo que era bugiganga. às vezes apontava para um espelho e matava-me a mim próprio. nada ficava sem que levasse chumbo. justiça e ordem era o meu lema – na remodelação da minha casa. feita em exclusivo para o casamento da minha irmã. a minha mãe tinha adquirido uns suportes em talha dourada. coisa fina. confecionados pelo melhor marceneiro de real. um lugarejo à saída da cidade – em cima dos suportes de talha colocou-lhes umas figurinhas em barro pintadas num bronze-dourado. figuras com pergaminhos. cultas: camilo castelo branco. eça de queirós. júlio dinis. lev tolstói. escritores. mais o mozart. para dar ritmo musical ao silêncio dos corredores – mal se entrava na porta da entrada da minha casa dávamos de caras com aquelas figuras. quatro escadas. o eça. mais quatro escadas. o júlio. mais quatro. o tolstói. já no átrio. em frente a uma cardência em talha dourada. o mozart. vigiado por dois anjinhos. pousados em suportes de madeira castanho escuro. quase do meu tamanho. a olharem o chão. como se tivessem envergonhados – no corredor que dava para a sala de jantar das visitas. o camilo. sozinho. excomungado dos seus amigos das letras. não sei se os meus pais tinham alguma coisa contra o homem. talvez por ter vivido em famalicão. talvez por acaso. o que sei é que o deixaram sozinho num corredor escuro e sem nobreza – estas personagens vigiavam-nos dia e noite. faces sisudas. impávidos. com bigodes farfalhudos. com cara de menino. só o mozart.  quando passava por esta elite cultural a vontade era deitar os olhos ao chão. não fossem eles chamarem-me atenção do meu desempenho escolar. que naquela época até nem era mau – os meus pais adoravam aquelas estatuetas. dava um ar mais secular ao lar. tornava os seus moradores mais eruditos. cultos. e creio também. que no seu íntimo. acreditassem que seriam uma motivação extra para mim. quem sabe. amarrar-me-ia aos livros e acabava doutor dos dentes – o grande sonho da minha mãe era que eu fosse dentista. havia poucos e dava muito dinheiro – não fui eu. foi o seu primeiro neto. – os desejos das avós acabam sempre por serem cumpridos – tem agora o meu filho do meio. pedro. que cumprir uma promessa que lhe fez antes de nos abandonar e juntar-se ao meu pai para a eternidade – as promessas são feitas para se cumprirem – sempre que tinha a pistola à mão um desses homens cultos falecia com um tiro certeiro na testa. nos dias em que estava mais revoltoso e com mais pontaria. era uma mortandade de escritores. a cultura ficava cravejada de balas imaginárias. nem o camilo. escondido no corredor. escapava – felizmente nunca dei um tiro a sério. se partisse uma daquelas relíquias a minha mãe partia-me a cabeça com uma chapada mais certeira do que as minhas balas – quando já não havia mais nada para abater. voltava a guardar a pistola no mesmo lugar. com a promessa de que voltaria noutro dia para continuar a luta contra as forças do mal – um dia. o contabilista da empresa. o senhor leites. veio para a minha sala de jantar com os livros de contabilidade. pelos vistos estavam os fiscais das finanças a conferir as contas do caixa – naquele tempo. os números apagavam-se com lixivia e mata-borrão – era o que estava a fazer. a apagar o rasto de uma qualquer venda feita sem o imposto de transação. mais tarde IVA – se ainda houvesse lixivia nos nossos dias o sócrates não tinha ido morar para évora – o senhor leites estaria na casa dos quarenta anos. magro. manco para caraças. a arrastar a perna. equilibrava-se numa moleta. tinha uma doença degenerativa. creio que esclerose múltipla. anos mais tarde foi obrigado a reformar-se. acabou numa cadeirinha de rodas. mas por milagre divino ou sorte. a doença estagnou. pelo que sei acabou por falecer de velhice – estava então o homem concentrado nos números. atarefado. com os olhos pregados nas rasuras. quando me lembrei de lhe pregar uma partida – vou buscar a pistola. que para mim era a maior arma de guerra do mundo. e entre a sala de jantar diária e o corredor havia uma cortina. coloco-me atrás de um daqueles folhos aveludados. amarelo torrado. abro uma brecha. aponto-lhe a pistola. e com voz de bandido digo-lhe:

- sr. leites. mãos ao ar. dinheiro ou vida

o senhor leites nem lhe passava pela cabeça que a pistola era real. e num repente de quem não tem vagar para a miudagem responde-me:

- ó menino. não quero brincadeira. preciso de silêncio. isto é um trabalho de responsabilidade. o seu paizinho está à espera dos livros

não fiquei nada satisfeito com a resposta. estiquei ainda mais o braço para o interior da sala. e com a voz ainda mais engrossada. como se fosse um mafioso italiano. voltei a dizer-lhe:

- mãos ao ar. o dinheiro ou a vida

o senhor leites olha para a pistola. esbugalha os olhos em pânico. levanta-se de supetão. encosta-se à parede de mãos no ar. e completamente desfigurado pelo medo. a gaguejar.  implora pela vida

-ó zé luisinho. ó zé luisinho

eu estava deliciado. divertia-me à brava. senti-me o maior bandido de todos os tempos. al capone era um menino ao pé de mim – saio de trás da cortina e começo a dirigir-me para o senhor leites. muito lentamente. com cara de quem ia dar fogo. contornando a mesa passo a passo. enquanto o senhor leites recuava. passo a passo também. suplicando que não disparasse – o senhor leites recuava. eu avançava determinado a não o deixar sair dali com vida. e o homem cada vez mais próximo da porta da sala não se cansava de dizer:

- ó zé luisinho. ó zé luisinho. ó zé luisinho

quando se apanha junto à porta desata a correr pelo corredor em ais desesperados e aflitos – qual manco qual quê. o senhor leites meteu a moleta debaixo do braço e correu pelas escadas. voou pelas escadas abaixo. não parando nunca de dizer:

ó zé luisinho. ó ze luisinho

quando acabou de bater a porta fiquei com a ideia de que as estatuetas estavam todas numa galhofada. desde que tinham entrado em minha casa que não tinham tanta diversão. até os anjinhos levantaram a cabeça dos seus pedestais – eram eles e eu. feliz e divertidíssimo. afinal tínhamos todos presenciado um milagre. o senhor leites tinha deixado de mancar. já não precisava da muleta – entrou na fábrica mais morto do que vivo. com ar de quem tinha sido cravejado de balas. dizendo ao meu pai que nunca mais ia lá para casa. eu era doido barrido – era mesmo. um doido brincalhão e malandro – nunca mais veio apagar contas com lixivia para minha casa. o que me fez acreditar que desempenhei muito bem o meu papel de vilão. estava orgulhoso – claro que eu era uma criança. mas sabia muito bem o que estava certo ou errado. e também sabia que aquela brincadeira ia ter consequências. o meu pai ia dar-me uma coronhada com a pistola. e não era a representar – felizmente o meu pai percebeu que nunca deveria ter deixado a pistola à mão de uma criança. apareceu em casa mais aliviado por o filho não ter dado mesmo um tiro ao contabilista. do que zangado – levei um sermão. disse-me tudo aquilo que um pai deve dizer a um filho em relação às armas. mas tudo acabou em bem. não houve violência física. apenas um raspanete – houve uma memória que guardei para sempre. nunca existiu o perigo de eu puxar o gatilho da pistola. nunca mesmo. tenho isso ainda hoje bem presente. tinha dez ou onze anos. mas correspondia a quinze ou dezasseis dos dias de hoje – as crianças daquele tempo não eram como as de hoje. vivíamos na rua. no meio de camaradas mais velhos e experientes. era normal pregarmos partidas uns aos outros. não havia computadores com jogos violentos. corríamos atrás da bola e chegávamos a casa cansados e felizes – sempre adorei pregar uns sustos valentes. ainda hoje adoro – sei de uma coisa. era um miúdo com luz. alegre. a querer crescer rapidamente – os dias naquele tempo precisavam de ter quarenta e oito horas para tanta vontade de viver – talvez não chegasse

 



26/11/2021

eu. o primeiro desejo. e o meu pai

 



 

ainda não teria chegado aos meus dezasseis anos quando o desejo de ser pai se tornou persistente – durante a adolescência só me lembro de ter dois desejos: ser pai. e tirar a carta de condução – não sei qual deles nasceu primeiro. talvez deva aplicar um dos maiores enigmas da humanidade: quem nasceu primeiro. o ovo ou a galinha? sei que o primeiro realizado foi o da carta de condução – no dia em que fiz dezoito anos. feliz por me tornar de maioridade e ter autorização para fumar à frente do meu pai. apresentei-me na porta da escola de condução serra. em braga. e meti os papeis para conduzir automóveis ligeiros – estávamos em abril. e a 29 de agosto. sexta-feira. fiquei aprovado. deram-me uma guia para a mão que me autorizava a conduzir até moscovo e votos de boa sorte – lá fui eu encartado e sorridente pelo mundo fora que imaginava maior do que qualquer oceano – uns meses antes já o meu pai tinha comprado um NSU TT. em segunda mão. e por via da sua gentileza. foi só lotar o carro de amigos e arrancar para apanhar o que restava do verão – a praia da apúlia fervilhava com miúdas em bikini. e nada como um homem encartado para ter a sua atenção – há coisas que é impossível esquecer por mais anos que se viva – nesse dia dirigi-me ao meu pai e disse-lhe que ia passar o fim-de-semana à praia. depois de uma pregação dolorosa para que conduzisse com cuidado. tirou a carteira do bolso. e num sorriso preocupado pediu-me cautela com a velocidade. e passou-me para as mãos cinco contos – era muito dinheiro para a época – depois. de cima dos seus cinquenta e muitos anos. disse-me: sei que irás ter um fim-de-semana agitado. com muitas voltinhas e folia. vais precisar de um reforço monetário para a gasolina. mas também vais precisar de muito juízo. e a ladainha renovada com cautelas para os excessos – já o repeti milhentas vezes. mas nunca será em demasia. o meu pai era um ser humano fantástico. raro para a sua época. com um dom ímpar para compreender os jovens – todos os meus amigos gostavam do meu pai. sempre que apanhava um a jeito aproveitava para contar umas larachas. ou futebol. ou política. o importante para ele era falar. falar até se cansar – nada o fazia mais feliz do que uma boa conversa – sempre foi um jovem. bom. envelhecido numa paz tranquila. conquistada com muitos sacrifícios e perseverança – certo dia estava eu nas aulas noturnas no liceu d. maria II quando irrompeu pela porta um amigo. aflitíssimo. a arfar. com os pulmões nas mãos. a deitar os bofes de fora. entre golfadas de ar aflitas lá foi dizendo: a… fábrica… esta… a arder – saltei em fúria da carteira. corri pelos corredores como se fosse o carl lewis numa corrida dos cem metros velocidade. atirei-me para dentro do carro e arranquei a alta velocidade. desrespeitando sinais de trânsito e semáforos. assustando cães. galinhas e gatos – em pouco mais de dois minutos estava ao lado dos bombeiros – em simultâneo. um outro amigo avisava o meu pai. estava no centro da cidade. numa loja comercial. a entreter a funcionária com dois dedos de conversa – tal como o amigo que me levou a nova ao liceu. também este chegou ofegante. o batimento cardíaco nos limites. os pulmões desafinados. prestes a estoirar. e em dificuldade dirigiu-se ao meu pai: sr. lopes. a empresa está a arder. mas os bombeiros já estão a combater o sinistro – contra todas as espectativas o meu pai respondeu-lhe calmamente: ai é. isso é que é mau. vamos então ver o que se passa – e vieram a pé até à empresa a falar das coisas mais triviais. como se nada de anormal se passasse – no dia seguinte não se falava de outra coisa entre os meus camaradas de rua. e todos chegaram à conclusão de que quem estava certo era o senhor meu pai. afinal os bombeiros estavam a combater o fogo e a presença dele. ou de quem quer que fosse. naquela fase. nada adiantaria ou alteraria o combate às chamas – ao contrário do meu pai eu vim feito parvo. a alta velocidade. sujeito a ter um acidente grave. a colocar em risco não só a minha vida. mas também de todos aqueles que se cruzavam comigo. e em boa verdade. não aditei absolutamente nada. não apaguei uma única labareda. o que fiz. foi olhar para aqueles que realmente tinham o saber e meios para dominar as chamas – felizmente tudo não passou de uma pequena fogueirinha na zona administrativa. e aos primeiros minutos da manhã já estava tudo a laborar – o meu pai tinha esta capacidade excecional de manter a calma em situações de crise. só mais tarde percebi que este tipo de comportamento estava intrinsecamente ligado à forma desprendida como encarava os bens materiais – o importante para o meu pai sempre foi as pessoas. independente do seu estrato social. ou extrato bancário. para todos tinha uma vénia. para todos tinha um sorriso – gostava de ser patrão porque o aproximava das pessoas. com todas aprendia. e a todas dava o melhor de si: alegria. bondade. respeito. humildade. esperança – as pessoas eram o melhor do mundo e estavam sempre nas suas prioridades – o meu pai nunca despediu um trabalhador. por muito mau que fosse ele encontrava sempre alguma coisa de bom. e mesmo que não tivesse mesmo nadinha que o recomendasse. tinha família. tinha os filhos que precisavam do seu soldo. a mulher era uma desgraçada e trabalhava como uma moura para matar a fome à família. havia sempre alguém. e quando tudo ruísse. ainda recorria a outro expediente. quem pediu para o empregar foi fulano e sicrano e não é bonito despedir. ou devemos consideração. ou outra coisa qualquer mesmo que viesse dos confins do espaço – quem ficava sempre com o papel difícil era a minha mãe que tinha mesmo que despedir uma pessoa que não se adaptasse àquele tipo de tarefa. e por isso sempre ouvi dizer que a patroa é que era lixada. estou a ser contido na linguagem. mas o sr. lopes é que era uma joia de pessoa – e era. o meu pai era uma joia rara. descendia de uma família riquíssima. monárquica. com médicos. militares e padres. alinhados com a aristocracia bracarense. era nestas artes que a importância de uma família se fazia notar: cura do corpo. cura da alma. e cura pela guerra – com a instauração da républica perderam tudo – o meu avô fundou um jornal monárquico. e por via dessa sua opção política. sempre que os republicanos tomavam o poder era preso. e solto quando os monárquicos reconquistavam os domínios da nação – um certo dia foi de vez. e a república solidificou-se. e os negócios da família passaram para as mãos dos novos donos da política – aos dezassete anos o meu pai estava pobre como job – encontrou então emprego numa mercearia no porto. fazia entregas nas casas dos clientes. tantas vezes me falava de quanto lhe custava subir a rua do almada com uma caixa às costas de arroz. batata e feijão – mais tarde trabalhou nas minas da borralha. depois como estava um pouco acima dos seus camaradas em gestos e limpeza foi para rececionista do grande hotel do gerês. mudou-se para o balcão da torrefação bracarense. um comércio de café e bebidas. e encontrou a minha mãe. modista e dona do seu nariz. mas lá conseguiu levá-la ao altar – encontra trabalho num cunhado. um grande retalhista de loiças na cidade do porto – começa a sua nova arte e vocação. vendedor. nos dias de hoje comercial. onde rapidamente consegue distinguir-se pela sua afabilidade e sorriso – cria o seu negócio de retalhista em braga. e com imensas dificuldades. com a ajuda da minha mãe. criam primeiro um armazém de louças e mais tarde uma empresa de sacos de viagem – estávamos no período da migração para as províncias ultramarinas – com o começo da guerra do ultramar. angola. moçambique e guiné-bissau. veio a mobilização das forças armadas portuguesas. eram precisos soldados para defender o território dos turras – esta deslocação de pessoas e mercadorias impulsionou rapidamente o negócio ajudando ao desafogo financeiro. ninguém viajava que não fosse obrigado a comprar sacos e malas – foram mesmo assim momentos difíceis e de muito sacrifício. sem capital e sem ajuda de ninguém. o dinheiro era coisa rara. e o estado falido e forreta – a solução passava sempre por virar fatos do avesso para aguentar mais uma estação. caminhar com as solas dos sapatos esburacadas. calças remendadas. e muita contensão nas despesas familiares – o tempo foi passando. o meu pai em viagem constante pelo país e províncias ultramarinas. a minha mãe a trabalhar de sol a sol amarrada a uma máquina de costura. e eu pelas ruas a consumir o tempo – com muito esforço conseguem criar uma empresa desafogada e amealhar uns tostões. devolvendo ao meu pai a honra da família. e principalmente uma paz grata à vida – sempre que alguma coisa corre mal na minha vida é das memórias dos meus pais que me socorro. é o seu exemplo de resiliência que me faz acreditar que um dia também serei grato à vida – resisto estoicamente aos milhentos desabafos da alma implorando que desista. resisto porque sou obrigado a resistir. porque sou seu filho. porque sou a continuidade da história. sou mais uma página de um livro que não sei quando acabará – aprendi a caminhar com fé. afinal eu sou filho do meu pai. e se ele se encantou com a vida. também eu me encantarei. um dia serei também exemplo para as amarguras dos meus filhos – viver é bom. saber de onde venho é uma dádiva. e saber para onde os meus filhos irão a minha única preocupação. a única razão válida para nunca desistir de conquistar também eu a minha paz. a minha tranquilidade. tudo a que tenho direito e mereço nesta vida – assim foi. o carro não parou um segundo. corremos as praias todas das redondezas. numa alegria de que tenho saudades. ainda não sabia que envelhecíamos. ainda não sabia que ficávamos responsáveis e enfadonhos. cotas preocupados e aflitos com o futuro – assim passei dois anos. com o carro sempre a girar e a vida a acontecer numa liberdade estonteante. com milhentas peripécias. e a dúvida a roer-me por dentro: partir pelo mundo fora ou dedicar-me inteiramente ao negócio da família – estava a caminho dos vinte anos quando pela noitinha fomos guardar o carro do meu pai numa garagem no centro da cidade. caminhávamos calmamente em direção a casa. quando o meu pai me chama atenção para a necessidade de acalmar. na sua opinião não era bom para a saúde não dormir. passar os fins-de-semana fora de casa. tinha que me dedicar mais ao trabalho. e quando parecia que não tinha mais nada para dizer sai-se com esta

-- porque não te casas. tens uma miúda gira. boa moça. acredito que te faria bem

nunca mais tive sossego. as palavras do meu pai não me saíam da cabeça. sabia que tinha razão. eu precisava de desacelerar. focar-me mais na nossa empresa. tornar-me mais empreendedor – o meu pai acreditava em mim. os primeiros dois anos tinha dado indiciações de que era ambicioso. e tinha planos para a fazer crescer – a ligar esta ambição profissional tinha uma outra que não abalava do pensamento: ser pai – há coisas que não sabemos como aparecem. mas este desejo de ser pai compara-se a um apelo interior para seguir uma vida consagrada. ingressar num mosteiro. ou partir para a áfrica como missionário – era algo tão presente em mim que era impossível esconder do pensamento. queria ser pai porque achava que nada no mundo poderia ser melhor do que ter algo que não sendo nosso em definitivo. projeta-nos num amor incondicional. um filho é sempre mais do que o pai. o melhor de mim exponenciado à imortalidade – nunca consegui encontrar nada que me desse mais satisfação do que ser pai. não houve um dia em que me sentisse cansado ou arrependido – lembro-me que quando ficava doente. nada de grave. acreditava ser possível morrer de uma amigdalite. o que me atormentava mais era morrer sem ser pai. era uma agonia – casei-me aos vinte anos e fui pai aos vinte e um – tinham passado dois meses da boda já eu andava de cabeça perdida por a maria joão não engravidar – comecei logo a criar cenários: sou infértil – nunca me passou pela cabeça que o problema poderia ser da minha companheira. não. o problema era eu. sempre eu. de resto todo o mundo era perfeito. bonito e saudável – no dia que nasceu o luís tudo mudou. o mundo mudou. foi como se a juventude se tivesse evaporado. como se um buraco negro tivesse sugado toda a leveza da alma – passou a acompanhar-nos para todo o lado. não havia um único momento em que não estivesse ao meu lado. tornou-se na mascote dos meus amigos. e mesmo nos fins-de-semana de montanhismo. com dois anos e pouco. já ele subia nas nossas costas as montanhas – tornou-se homem rapidamente. e continuou a subir montanhas pela vida fora – é um rapaz fantástico. todo do avô. bom. honrado. um pai excecional. com uma companheira feita para ele. que é quase tão minha como dele. primogénito. amigo. protetor e líder. com a medida certa para o materialismo – tenho a certeza de que os seus avós estão orgulhosos. e por mais que nos tentem dizer que não podemos ser assim. às vezes ingénuos. às vezes imensamente tolerantes. às vezes aldrabados. às vezes parvos. às vezes cansados da ingratidão. não podemos alienar o que é nosso por linhagem – somos de onde vimos e assim iremos continuar. somos boas pessoas e continuaremos a ser nem que o mundo se vire de pernas para o ar – estou grato desde o dia em que nasceu. e mais grato fiquei quando chegou o pedro e o joão – a minha casa-família é um conto de fadas. eu entro nesse conto. e os meus pais também

 

música - Peder B. Helland

 

you tube - https://youtu.be/Dgr4iEveNDI


29/10/2021

eu. e o confinamento II e III














II.

as cadeiras certas em volta da mesa. e eu a contá-las. uma. duas. três. quatro. cinco. seis. sete. oito. nove. dez. onze. e duas guardadas com saudade – quando voltaremos a ocupá-las? o dia igual à noite. e a noite igual ao dia. e os olhos acertados com o que é importante: a minha casa-família – pergunto-me: o que trouxeste ao mundo nesta vida? por onde caminhaste? aonde chegaste? ainda não tenho resposta. mas sinto-me em paz. sinto que o melhor de mim ainda está para chegar – se eu tivesse experimentado esta paz em gaiato nunca tinha envelhecido cansado e atormentado – um homem em paz é muito mais generoso – a cuca e o max confinados aos meus pés. como se o mundo dos caninos vivesse também uma pandemia. a fitarem-me os olhos num sossego absoluto. a perguntarem-se: porque está ele ali sentado se o sol está no ar – tantas vezes invejei a sua vida tranquila. tantas vezes me interroguei: porque não fogem para a liberdade? porque aceitam este cativeiro a troco de uma malga de comida? a resposta é simples: por amor. gostam de mim. adotaram-me. mesmo sabendo que caminho em duas pernas trôpegas – eu também estou confinado por amor. amo a minha família. os meus amigos. os meus cães. amo até as pombas que diariamente pousam no beiral do meu terraço a troco de umas migalhas – amo o mundo mesmo com todos os seus paradoxos e imperfeições – como poderia desafiar esta doença maldita correndo o risco de perder todos aqueles que amo? não podia – preciso ainda de fazer tanta coisa. preciso de alcançar a honradez do meu pai. preciso de continuar a ser pai. avô até que os ossos rajam. até que o coração se canse e morra enlaçado em saudade – tenho absoluta necessidade de morrer de amor. assim como pírame e tisbe. romeu e julieta. ou pessoa e ofélia. não importa como parto. desde que parta numa viagem de amor. se possível perfeito – “se queres ser [um amor] perfeito. vende o que tens e dá-os aos pobres – depois segue-me – não leveis nada pelo caminho. nem bastão. nem alforge. nem uma segunda túnica”. crente ou não a bíblia é um bastião de saber – a felicidade encontra-se na humildade. na simplicidade. no sorriso. na bondade. no silêncio e na contemplação. diria. nas coisas simples – o belo emerge do nada sempre que nos despojamos do supérfluo – quero um amor perfeito para uma vida eterna – talvez os meus cães vivam comigo um amor perfeito. despojaram-se do supérfluo. vivem sem bastão. sem alforge. e sem uma segunda túnica. vivem em paz – agora tenho a certeza de que são eles que me invejam. e se interrogam: porque não corre ele pelo mundo fora? porque tenho o meu prato de comida. a minha malga de água. as cadeiras que conto por amor. e a certeza de que se ocuparão de alegria muito para além da minha vida terrena – amar é ressurreição. e o único caminho para a imortalidade – só me falta deitar no chão. ao pé dos meus amigos mais fiéis. dar duas voltas sobre mim. enroscar o corpo. e fechar os olhos num vagar doce e sossegado. e se alguma coisa me aborrecer. liberto um latido mimado. ou rosno com ferocidade. de seguida. volto a enroscar-me e adormecer com o melhor da vida: paz – nesta brevíssima passagem por este mundo complexo. podemos comprar tudo. podemos viajar. ir ao cinema. à discoteca. ao restaurante. agora até já se pode ir ao espaço ver as estrelas de mais perto. mas a paz… a paz verdadeira… não se pode comprar. é preciso procurá-la conquistá-la. trabalhá-la. encontrar um espacinho dentro do corpo. mesmo que pequenino. e depois aconchegá-la às memórias. e quando nos olhamos para trás. percebemos que a juventude acabou. percebemos que as rugas e os cabelos brancos são a contagem do tempo – o confinamento deu-me essa oportunidade. arrumei o que há muito tempo estava desarrumado.  empilhei tudo a um canto dentro de mim. e instalei pela primeira vez a paz no corpo por inteiro – foi muito bom ter encontrado essa paz. confesso-vos. foi mesmo muito bom. fui feliz. feliz como se fosse um catraio – como é bom viver com paz e luz – só os cristais ficaram foscos. sem brilho. zangados penso eu. talvez adivinhassem o fim das festas. das visitas. do champanhe. do reboliço e das conversas sem interesse. tudo o resto numa calmaria bela: telefone. campainha. TV. despertador. tudo num marasmo absoluto. como as manhãs de sol nas pradarias. com aquele ar pejado de silêncio-calmo. e o vento escorrido das montanhas a tombar as searas para o lado certo da vida – está tudo parado em minha casa. eu também. faço companhia aos relógios. sem corda a meu mando. sem que um único ponteiro possa correr pelo meu novo tempo – e eu ali sentado. a olhar a minha maria joão. mais minha do que nunca. e a interrogar-me: o que verá em mim agora que nos escondemos do mundo – eu sei. paz. paz como nunca tivemos – nascemos e logo nos ensinam a juntar coisas. a procurar ser o melhor na escola. depois chegam as melhores notas. a melhor criança do mundo. chegam os louvores: é um bom rapazinho e muito inteligente. ainda não perdeu um ano – depois. a barba chega. em passo acelerado chega também a vaidade. e já tem carro. e tem amigos que nunca mais acabam. e o sucesso à medida de cada mente infetada. agora mais uma viagem à volta do mundo. e férias nas maldivas. e depois no japão a degustar um peixe balão. e uma foto em áfrica abraçado a uma hiena que não para de rir à gargalhada. para de seguida mergulhar no oceano à procura do tesouro do pirata das caraíbas. e agora só quero chegar à lua e pôr um pé em marte – mais isto e aquilo. e ainda mais. e ainda mais. e quando não tinha imaginava ter. amanhã levanto-me e faço isto. e depois aquilo. e mais não sei o quê. e tudo isto deve chegar para dar mais duas voltas ao mundo – foi preciso uma pandemia para compreender que afinal tudo o que quero está dentro da minha casa – a pandemia trouxe-me o medo e o desespero. mas também a sabedoria para compreender que é nas coisas mais simples que existimos com verdade e paz – nada do que pudesse ter comprado ou amealhado se compara à paz de estar naquele sofá. mesmo desaparecido em medo e rezas – encontrei o que tinha perdido com o crescimento. ouvi pela primeira vez em muitos anos o meu silêncio. encontrei uma paz que nem sabia existir. e vivi o tempo em pleno. sem que um único relógio marcasse o meu envelhecimento – se com a morte alcançar esta serenidade. então… estou pronto


III.

confesso que nunca fui tão feliz como em todo o tempo que passei confinado – bem sei que muitos foram obrigados a trabalhar e a colocar a sua vida em perigo para que eu pudesse estar a salvo da covid – a todos esses heróis o meu obrigado eterno – também sei que muitos milhares de pessoas perderam os seus negócios. as suas casas. o seu emprego. famílias inteiras ruíram. e como sempre as crianças são as que mais sofrem. para não falar no isolamento dos idosos. meses a fio sem um único abraço. sem verem uma única cara familiar – foi tudo muito mau. o nosso mundo não estava preparado para esta maleita. diria que a pandemia foi a nossa terceira guerra mundial. desta vez. infelizmente. não pudemos declarar neutralidade. tivemos baixas em combate. muitas. foi tudo aterrador e angustiante – àqueles que estiveram doentes e principalmente para os familiares daqueles que pereceram. o meu lamento sincero – felizmente a covid não passou aqui por casa. também é verdade que tudo fizemos para que a maldita não tivesse nenhuma oportunidade de continuar a sua propagação. mesmo assim. acreditamos que na vida é sempre preciso uma pontinha de sorte. nós tivemo-la. e estamos gratos por isso 


 

14/10/2021

eu. e o confinamento










I.

aqui estou neste ano de 2021. no meio de uma pandemia. com o mundo suspenso em medo. escondido em máscaras e morte. e eu a contar os dias para a imunidade de grupo. para uma liberdade falsa. tão falsa como todas as pretensas razões que procuro na rua para alimentar a alma de alegria – as ruas desertas de medo. e eu em casa a contar as mortes pelo mundo. agora mais mil. agora mais uma cidade. e mais um país. e a TV aterrorizada. a dizer que a covid pode chegar até pelo ar. ou quem sabe pelo olhar. e eu escondido. fechado numa casa a cadeado. a contar os dias com saúde. a resistir ao medo. ao fim do mundo. e a cabeça a lamentar tanta coisa que ficou por fazer. a lembrar os amigos: quantos abraços ficaram por dar. quantas palavras ficaram por dizer – que estupidez. gastamos o tempo a correr e afinal tudo pode acabar de um momento para o outro – tenho saudades de não ter medo. de tocar por tocar nas coisas. de passar a embarrar. de querer conhecer quem nunca conheci. de falar. de tossir sem estremecer. e a boca em rezas contínuas. em promessas a s. bentinho da porta aberta: se me livrar desta maleita ofereço-lhe uma vela do meu tamanho e derreto-a até o último fio de luz – assim estava eu. parado em rezas e pedidos de perdão. acabrunhado em quatro paredes. sem que o tempo contasse para mais nada a não ser envelhecer – sentado no meu sofá. a olhar a sala como se o mundo todo coubesse no seu interior. os espelhos a dar conta de uma vida numa verdade crua. a desmanchar a alma. a fazer arrependimentos como se dentro de mim houvesse uma linha de montagem. só que em vez de balões. confeitos ou fustão. eram contrições – resisto em lamentos: que pena não ter percebido mais cedo que esta vida são dois dias. às vezes nem isso – a barba por fazer. o corpo mole. imolado num fato treino que não me faz correr para lado nenhum. vou do quarto para a sala. da sala para a minha escrivaninha. da escrivaninha para a sala. e o corredor cada vez mais escuro e cumprido. a levar-me de um lado para o outro como se fosse o corredor da morte. e eu à espera da injeção letal – a pandemia trouxe-me o pânico. os arrepios e as interrogações. o medo da falência dos pulmões. o pavor de morrer sozinho. envolto em tubos e batas brancas sem compaixão: mais um. e a TV a dar conta da minha partida num número frio. duzentos e oitenta mortos de covid. a mortalidade com maior incidência no minho – e a urna fechada. lacrada. enviada com urgência para debaixo da terra. esburacada por um coveiro também cheio de urgência. e o padre mais perto de deus do que do defunto. com a boca a correr para fora do cemitério. a despachar os louvores de uma vida com água benta apavorada. e a família contada pelos dedos de uma mão. sem saber se a terra leva o que é seu. sem beijo de despedida. sem saberem se as lágrimas se ouvem naquele silêncio-pânico – medo. muito medo. e a cabeça dia e noite a interrogar-se: de que mal morrerei? que praga me comerá a carne? em casa. de porta fechada a sete chaves. com as mãos mergulhadas em álcool gel. carrego poetas e escritores de um lado para o outro numa cabeça assustada. às vezes escrevo eu. abro o word e escondo-me em rascunhos medrosos e sem sentido. folha atrás de folha. e a reciclagem do PC a abarrotar de inutilidades. e o medo das palavras infetadas de terror. a viajar pela internet à velocidade da pandemia. e as curas aos milhares: tens de comer muito alho; vitamina D mata todos os vírus. e se juntares a C então não há mal que te chegue; no japão um velhinho com cento e vinte anos curou-se da covid com escaldas pés e calinhos de habushu; e mais um outro na finlândia. espeta agulhas nos pés sentado num cubo de gelo; e um feiticeiro em áfrica esmagou os testículos de um leão num pilão. acrescentou-lhe dois dedais de capuca. uma asa de morcego. e dança kuduro todas as noites – que posso eu fazer em minha casa para que a maleita se distraia comigo? nada. fecho as janelas e espreito pelas frinchas o que resta do mundo que um dia conheci – pelo menos as casas não ruíram

 

música de fundo - beethoven moonlight sonata no. 14 



20/09/2021

zeza






 

aprendi a lidar com a tua morte mantendo-te perto de mim - da saudade criei abraços e do silêncio a tua voz - viverás em mim até que te encontre



eu. o parvo. e o parvalhão IV








IV.

estou agora prostrado de joelhos. com a cabeça a tocar o chão que me sustenta o pouco que respiro. pronto para aceitar o dia da espada cortana. mas mesmo que a cabeça me caia nas mãos e os olhos mendiguem arrependimento. entregar-me-ei ao desaparecimento levando comigo o meu perdão – passei então a esconder-me do além cobrindo-me com um cobertor do melhor de mim. enrodilhando-me até que o escuro se confunda comigo. e rogo ao universo que me deixe despedir do corpo com honra e glória. que o fogo me queime por dever cumprido. e quando tudo o que fui ficar em pó. possa cobrir o mar de lembranças. tal como as magnólias cobrem os campos na primavera – das uvas se fez sumo. do trigo se fez pão. e de mim se fez família – e depois de mais mil noites. quando os olhos de quem amei me procurarem na estrela que um dia acreditei ser minha. que se acenda de saudade e gratidão: viver foi o melhor que me aconteceu

 

 

12/09/2021

eu. o parvo. e o parvalhão III









III.

agora que estou a caminho dos sessenta comecei a falar com as estrelas. com os meus pais. com a minha cunhada zeza. às vezes. quando estou mais louco. falo até com os botões. mas quando estou perdido dentro de mim. falo com os meus cães. ouvem-me sempre com atenção. e por mais disparates que possa dizer. sei que nunca darão um latido de reprovação – os animais trazem em si um amor que o homem ainda não compreende – pela noite. quando as estrelas me cobrem de medo. falo com o anjo que me guarda no universo. peço-lhe apenas mais um dia desta vida que aprendi a viver. e perdão por não ter sido um pouco melhor – começo então a pensar: quantos dias já vivi? recuso as contas. sei que são muitos. todos eles vividos num só folego. sem serenar o pensamento. ora aparecia isto ou aquilo. e amanhã é que vai ser. e se não for amanhã será no dia seguinte. e o corpo a arquear por cada dia esgotado de nada. e o espelho a mentir-me: quem é o homem mais forte do universo - és tu. és tu – e eu a caminhar para o fim. e por cada dia de vida mais um rebo às costas – corria para todo lado sem nunca sair do sítio. cada vez mais certo de que eram as pernas que faziam o tempo andar mais devagar – que raio de relógio cuida do caminho feito pelas pernas? – dou corda. ando. e mais corda. e mais caminho. e mais corda. e as pernas num desassossego doloroso. e os ponteiros a passar das pernas aos braços. e as horas cada vez mais esgotadas com as batidas do coração a gemer. a bater. a gemer. a bater. e as noites cada vez mais escuras. enormes. e eu de um lado para o outro. de estrela em estrela. a pesar e a repesar o tempo gasto numa balança cruel: deitei dez anos no prato e acreditei que a felicidade estaria garantida. e depois mais dez. e ainda mais dez. e mais dez. e os meus filhos homens. doces. bons. com os olhos a luzir do avô. e dentro de mim a certeza de que lhes ensinei tudo o que sabia. sem mentiras. com amor. um amor para sempre… para sempre… para sempre – os meus filhos são a minha grande obra. por eles tudo valeu a pena. tudo. mesmo quando as dores eram absolutamente cruéis. repito. absolutamente cruéis – o meu futuro agora é hoje. amanhã se existir é porque resisti a mais uma noite. é porque acordei para me lembrar o que deixei por fazer – tudo o que me resta é esta espera agonizante pela missa de corpo presente. pelas últimas palavras: aqui jaz um homem magoado. pai de três filhos bons e com os olhos do avô – agora sonho com o dia em que voltarei aos braços da minha mãe. protegido e finalmente sossegado. em paz – e nesta espera que às vezes desespera. peço apenas que as pernas façam o que falta do caminho com elegância. e que a memória nunca se esqueça de que só existo enquanto souber o meu nome – o meu mundo está finalmente diferente. os pássaros começaram a voar baixinho. os rios passaram a chegar ao mar tranquilos. as gaivotas perderam o medo e começaram a pousar-me na imaginação. e a desapoquentação tomou conta dos dias. vivo finalmente – todos temos um caminho para fazer. o destino não se muda. talvez numa outra reencarnação possa ser um homem diferente. talvez aprenda a escrever as palavras mais rapidamente. a juntá-las com acerto. a dizerem o que quero que seja dito. bonitas. enfarpeladas com tecidos nobres. belas como as estátuas dos deuses gregos. azuis como o céu. divinas por mando dos anjos. imensas como o mar. com sol e sal. que digam apenas o que quero que seja dito. numa elegância estonteante – passei a um estado límpido. decantado a partir de um parvalhão. vendimei-me. pisei-me até à exaustão no lagar da vida. e extrai tudo o que me foi possível – agora. saboreio-me. trago-me e penso: como seria se tivesse um pouco mais de sol e açúcar – envelheci. envelheci mais anos do que os realmente tenho. e agora. quando olho para o infinito. percebo que também as montanhas estão diferentes. começaram a tocar o céu. e ali fico a interrogar-me: as montanhas cresceram. ou o céu aproximou-se de mim? não quero saber. o que sei é que a única forma de alcançar o seu cume é pela contemplação – subo então para cimo de mim. e logo dou conta de que fico mais parecido com as montanhas – agora. sempre que falo comigo sinto-me nas nuvens. as montanhas são do meu tamanho. e ali descanso e sonho com o dia da saudade eterna. e interrogo-me: o que haverá do lado de lá? ninguém sabe. mas eu já estou demasiado velho para não acreditar em alguma coisa. por isso acredito num mundo paralelo. melhor do que este. com uns portões enormes. um corredor iluminado pela luz dos anjos. e ao fim da luz. mas não dos anjos. o altar dos reencontros: o meu pai de braços abertos. a minha mãe a sorrir. a zeza com o cabelo arranjado. o meu sogro calmo como sempre. e o tio joão a seu lado. afinal sempre foram bons amigos – o que mais pode ambicionar um homem do que viver em família e ressuscitar em família – será finalmente o fim de todas as interrogações. de todas as dúvidas. terei pela primeira vez o corpo cheio de certezas – se hoje for o último dia. que as montanhas se ergam até ao céu e as estrelas se acendam de glória pelo que alcancei em vida. que é um pouco mais do que o meu comprimento

 

 

 

07/09/2021

eu. o parvo. e o parvalhão - II








II.

aos quarenta e oito anos senti-me crescido e sensato. dividi então a minha vida em duas partes: a parva. que tudo faço para esquecer e perdoar. e a não parva. que quero glorificar – aprendi a marcar o caminho que fui fazendo com grãozinhos de mim. e quando me descuidava. voltava atrás e escolhia um novo rumo. mais a direito. com menos distração. com mais atenção. afinal o que é relevante é fácil de alcançar – alguns amigos passaram a desconhecidos e muitos desconhecidos passaram a amigos. e no meio desta gente nova que me chegou de todo o lado. o encontro com um mundo de cores inimagináveis. que por desconhecer. obrigou-me a interrogar: porque não vês o que eles veem? porque não sentes o que eles sentem? porque não gostas do que eles gostam? e pronto. deixei-me encantar pelo diferente e também eu fiquei diferente – saí então da minha rua e fui caminhando sem fado. assim como quem caminha por caminhar – mudei-me de vez. vesti-me com o melhor do que fui encontrando e cheguei ao melhor de mim – bem sei que não foi uma grande melhora. mas que podia fazer. mudei o que a vida me permitiu aprender – prendi a alma definitivamente ao desigual. dei-lhe uma demão de tolerância e comecei a consentir o que era diferente – aos poucos fui abrindo os portões. deixei entrar um ventinho fininho. doce como mel. e com este chegou um novo saber: quem vive dentro de si nunca encontrará o melhor que há dentro dos outros – e lá fui andando. às vezes mais depressa. outras. devagar por estar sem pressa. e por mais que caminhasse. quando olhava para trás via o que sempre vi: a família – o meu pai continuava a falar-me. como se nunca fosse a lado nenhum. como se a missa que ouvi em seu nome fosse apenas uma ladainha para enganar os anjos que o esperavam à porta do paraíso – amarrei-me à memória e parti em viagem pelo tempo que perdi a caminhar de um lado para outro. às vezes com sentido. às vezes em sentido contrário ao juízo. e encontrei-me com a vida no seu estado mais puro – voltei a encontrar-me na infância. e entre beijos e abraços. sei agora que um dia fui tão pequenino que me escondi na barriga da minha mãe. e juro que ouço o meu pai perguntar: é rapaz ou rapariga o que escondes meu? e os meus irmãos perdidos por ali. tão inocentes como eu. à espera de uma horinha boa da nossa mãe. afinal. a barriga é a mesma. cresceram como eu cresci. com a fortuna da nossa linhagem – agora andam por aí. assim como eu. à procura do dia em que voltaremos todos a sentar-nos à volta da mesa na rua que nos viu nascer: o meu pai à cabeceira. a minha mãe à direita. o meu irmão a seu lado. e a minha irmã à esquerda. e eu. que nunca soube em qual lugar me sentar. agora já sei. sou ao centro. com todos ao meu redor. este será sempre o meu mundo – resta-me a lurdes de um passado que não consigo abandonar. e talvez por nada querer esquecer. sempre que olho para ela tenho a certeza de que o sangue é unicamente um fluído vermelho que corre nas veias. ela é tão minha como eu sou dela. e esse amor que não tem cor nem dia em que termine. é a razão da vida existir para lá de qualquer gestação – sou o que sou porque um dia ela existiu para me fazer crescer – por último os meus filhos que apesar de continuarem a crescer nunca me saíram do coração e da oração – adoro ser pai. adoro ser pai dos meus filhos. são a razão da minha vida. sem eles eu nunca seria um homem de verdade. amo-os daqui até á lua. ou até um pouco mais adiante. e nas noites de luar. quando me sento na lua a olhar para o meu mundo. percebo que sem eles nunca saberia o caminho de volta a casa – já me perdi muitas vezes. mas tudo agora é diferente. não sou parvo. ouço-me. e nos dias em que tenho dúvidas. recolho à cama e amarro-me à minha maria joão e sossego. envelhecemos a olhar um para o outro – quando acordava. para surpresa minha. o mundo estava à minha espera. é então que me arremessava para dentro dos seus desvarios. e lá ia eu como se fosse uma caravela dos descobrimentos. ao sabor dos humanos e da voz que me habituei a ouvir – a vida ganhou saudade. nostalgia. tranquilidade. compreensão e. infelizmente. também ganhou finalidade. e com esta chegou o medo. um medo de uma morte amargurada: começa a faltar tempo para realizar tudo o que sonhei –e assim cheguei ao meio século. anoso. esfarrapado também. a interrogar-me: quanto tempo tenho mais neste mundo? porque raio não vimos ao mundo anosos e morremos presos ao cordão umbilical. embalados no colo da nossa mãe? viver é uma complicação. amamos desenfreadamente o que um dia sabemos que vamos perder – envelheci e aprendi a esconder-me na noite. só a noite me faz verdadeiramente feliz. e quando o sol nasce. encutinho-me nas sombras e ali fico à espera do ocaso. e logo que a lua acorda deito-me numa das suas crateras e desabafo para as estrelas – e pergunto-me: haverá alguém nas estrelas que me queira ouvir? não sei. mas mesmo que houvesse o que interessava isso. o que falo só eu entendo

 


 

24/08/2021

eu. o parvo. e o parvalhão

 






I.

aos dezoito anos era um parvalhão – aos vinte e oito suspeitei que tinha sido um parvalhão nos últimos dez anos – deixei então de ser parvalhão e passei apenas a parvo só aos trinta e seis anos é que deixei de ser parvo e passei a ser um homem – aos trinta e oito anos perdi o meu pai e aprendi que um homem sem pai é muito mais homem – chorei. e ainda choro esse homem que nunca serei – depois. tudo mudou. procurei-me e encantei-me com o que fui encontrando e deixei-me cair num enamoramento que ainda mantenho – aos poucos comecei a falar cada vez mais comigo. às vezes sorridente e confiante. outras. mal-humorado e revoltado. e de quando em quando. o ressurgimento de maldições absolutamente cruéis. impossíveis de esconder. de aligeirar. de perdoar. e a morte pendurada numa cruzeta. a espicaçar a vida. em espera. num gemido agoniante. a implorar sossego e salvação – um homem esfrangalhado só sobrevive com as lembranças que guarda no corpo: a família que te deu o nome. o dia do sim e até que a morte nos separe. os filhos que nunca crescem. um sonho profissional que teima ser ainda possível realizar. um amigo de desabafos. e mais umas quantas manigâncias de pouca importância e que fui somando ao calha – e a rotura a trabalhar por dentro. a teimar como martelo na bigorna. a intimar. a interrogar. a ordenar. a magoar. a mostrar a campa com o meu nome: aqui jaz um parvo. sete palmos e meio de terra e uma tonelada de idiotices – o absoluto em mim cada vez mais absoluto – e eu preso a correntes que enlaçam a mente até ao céu. a procurar um deus. um qualquer que me aliviasse o corpo de um absolutismo ímpio. e o sangue gelado a correr-me os anos de vida. um a um. a dizer baixinho: para o corpo desaparecer basta fechar os olhos – e eu a teimar. amarrado às cicatrizes: esta foi a jogar à bola. esta foi de um acidente de automóvel. esta foi de abandonar o liceu. esta imortaliza-me pela estupidez. e esta. a mais cruel. a de ser um jovem taralhouco. e mais outra de amar o impossível. e ainda outra. e ainda outra. e ainda outra – tudo na vida não passa de uma caminhada com vários pontos de partida. às vezes parto dos braços de minha mãe. outras. da escola primária. da comunhão. de um abraço do meu pai. de uma bicicleta que não tive. do insucesso escolar. da chegada à maior idade. do cheiro ao couro e às colas. para logo de seguida partir de defeitos de nascença: o coração. a mente. as mãos. tudo já podre. canceroso. e o que resta da alma vaporiza-se encharcando o ar de um fedor imenso. tudo em volta desaparece em cólera. e o oxigénio solidifica. inspiro pedras e expiro desespero magoado numa crueldade absoluta. repito. absoluta – amarramo-nos à memória danificada. escarnada. a lamuriar como se tudo no corpo estivesse em putrefação. alimentando vermes. a magoar ainda mais o que já é insuportável: o homem piedoso viveu em mim há séculos. o magoado resiste aos dias embriagado em memorações absolutamente cruéis – a vida conjugada no passado – teimo. conto as estrelas no céu e acredito que pelo menos uma é minha. e falo. e ouço-mo. e falo. e ouço-me. uma simbiose interesseira que nunca tinha aceitado. ou percebido. ou era parvo e não sabia que podia falar e ouvir-me – falo. concordo e discordo. revolto-me e amanso. aceito e rejeito. mas falo sem parar – obstinei-me e fui dizendo cada vez mais coisas. às vezes convulsivamente. ás vezes espaçadamente. às vezes dia sim. dia não. às vezes com a cabeça na lua. e conclui que não é possível continuar a viver sem me escutar mesmo que o paradoxo de plutarco esteja em mim resolvido: não sou mais aquele – por isso falo-me. mesmo que as cicatrizes me queiram confundir. teimem em dizer que é nelas que a minha vida se harmoniza. é por elas que me interrogo. é por elas que me zango agora que sou homem. foram elas que me construíram numa tortura absoluta. repito. absoluta – sem as cicatrizes seria o mesmo homem que sou hoje? tenho a certeza de que não. seria um outro qualquer. melhor? quero acreditar que sim. pelo menos sem absolutismos apocalípticos – o mistério morrerá comigo. vive em mim. adensa-se. e para cada resposta outras cem interrogações. serei eu um seguidor do apóstolo joão? anúncio o meu fim para que o corpo viva em estado de salvação permanente? o mistério é isso mesmo: mistério – corpo e mente numa encruzilhada de cicatrizes que não me deixam partir do passado. nem requalificar o presente. um fio condutor liga as extremidades e a combustão alastra de mim para mim. descontrolada e sinistra até ao epicentro do absoluto – interrogo-me: porque fiz isto e aquilo? porque aceitei isto e aquilo? porque gostei disto e daquilo? porque gastei tempo com isto e aquilo? e principalmente porque idolatrei aquilo e não outra coisa? – surpreendi-me. obtive retorno para quase todas as interrogações. e as explicações que ainda não emergiram. sei agora que será uma questão de tempo. tudo em nós precisa de tempo. só envelhecemos com tempo. só somos sábios com tempo – passei a escrever cartas para mim. enviei-as em correio pessoal para o jovem parvo – tenho fé que pelo menos uma lhe chegue às mãos e ainda vá a tempo de mudar o meu dia de amanhã – afinal que faço eu se não viajar no tempo. que raio de máquina construí eu em mim? que raio de pernas me cresceram na mente para dar saltos como se fosse um canguru? mais um paradoxo a retalhar-me as crenças. desta vez bootstrap. e eu entre barcos e cartas teimo em fazer as pazes comigo



19/07/2021

alfa





soubesse eu o futuro. soubesse eu o que me espera e tudo seria mais fácil. mas não sei – sei que às vezes estou cansado. às vezes melancólico. às vezes zangado e irritado. agoniado também. e em dias que não sei precisar. como se merecesse um bónus divino. fico radiante e enérgico. é então que salto para fora de mim e corro sem saber como parar. e pergunto-me: porque não corro assim todos os dias – talvez não mereça. talvez não tenha sido feito para correrias. talvez tenha nascido já envelhecido. ou com a síndrome de hutchinson-gilford. ou quem sabe com qualquer coisa da responsabilidade dos deuses – mas agora sei que o corpo avelhentou-se. enrugou-se para dentro. mingou. só a cabeça continua parada num apeadeiro à espera da passagem do último alfa – e o corpo a gemer como se fosse um bebé acabado de nascer. a olhar para o mundo com espanto. uma gota de orvalho ali. um pedaço de sol acolá. um pauzinho de algodão doce a fazer sorrir o pai da criança. o fumo de um cigarro a girar para o infinito. a lua a ir e a vir. às vezes prenha. outras anorética. e as pessoas a passar para lá e para cá como se nunca tivessem tempo para chegar a lado nenhum – e eu a olhar para os meus sapatos negros. de luva. finíssima. e a perguntar-me porque correm as pessoas se vão descalças – se soubesse o futuro também me tinha descalçado. tinha corrido para lá mesmo que depois não soubesse o caminho de volta. tinha inventado uma casa apeadeiro e metia o alfa dentro do guarda-vestidos pendurado numa cruzeta a apitar. a anunciar fim do destino. e eu estendido numa senhorinha encarnada acertava o relógio para o dia em que nasci – quando damos conta a macieira já não dá maçãs. os pássaros de ruy belo já não nascem nas árvores. e os pecados começam a cair de podre. melosos e fedorentos. deixamos de ter raiva. cobiça. desejos pecaminosos. o esperma coalha e as pernas tremem porque tremem. deixamos de ter tudo. ficam apenas meia dúzia de palavrões agarrados a uma língua que também deixou de estar afiada. e quase já não consigo mandar tudo para o caralho mesmo que este habite no mastro mais alto de um navio fantasma – deixamos de pensar no corpo por inteiro. não queremos saber do cabelo. dos olhos. da pele. dos sapatos de luva. da camisa branca lacoste. e dos sonhos. só queremos mostrar o fígado e dizer a quem nos ouve: vejam só este fígado. está como novo. purga melhor o sangue do que há quarenta anos – depois amarramos no coração e levantámo-lo no ar para que ninguém deixe de o ver e dizemos: ama mais do que há quarenta anos e continua a bater como batem os sinos aos defuntos – queremos dizer com todo o vigor que nunca embarcamos no alfa para lado nenhum e tudo em nós está como quando aparecemos ao mundo: virgem e inocente – e enrodilhamo-nos na senhorinha a sonhar com o passado como se tudo tivesse acontecido no dia anterior. e ali ficamos. às vezes a dormir. às vezes a fingir que dormimos e os sapatos luva pendurados nos pés. cambados e rotos de não ir a lado nenhum. e as mãos enroladas no tronco a segurar o ar de um mundo cada vez mais pesado. tão pesado que promete cair a qualquer momento – e o alfa pendurado na cruzeta a apitar desesperado. a pedir misericórdia.  a pedir só mais uma viagem de ida mesmo que demore mais do que uma vida – se eu soubesse o futuro juro que tinha envelhecido mais a modinho. tinha embarcado num comboio de mercadorias e tinha ido para alfama ouvir fado. e quando o fadista calasse as guitarras deitava-me ao tejo e desaguava na amazónia. pescava piranhas. pendurava amuletos ao pescoço e gritava por socorro até que os deuses me ouvissem – depois oferecia o meu corpo aos espíritos da floresta. e em volta de uma fogueira rogava ao ser supremo do candomblé que me encarnasse numa anaconda e me deixasse rastejar pelo mundo invisível – se soubesse o futuro. se tivesse feito a sopro uma bola de cristal. quem sabe vivia lá dentro. e viajava até 3021 e juro que não dizia a ninguém que tinha mais de mil anos. calçava uns sapatos luva vermelhos. reforçados com contrafortes. sola de couro dupla e desatava a correr escondido em sorrisos. e dançava quizomba para o alfa mesmo que não soubesse o seu destino. mesmo que o fígado tivesse aziumado. mesmo que as vielas do coração rangessem de velhas. mesmo que as pernas me arrastassem para lado nenhum e as mãos se estrangulassem de dor por não saber escrever uma única palavra decente – não queria saber. nunca deveria ter querido saber e assim ainda era um inocente parado no apeadeiro à espera do alfa – mas aqui ando eu perdido a fazer contas: quantos quilómetros fiz com estas pernas? quando abraços dei com estes braços? quanto calor despendi a amar com este coração? e para todos me parece demasiado: andei até cansar. abracei até magoar. amei até chorar. e tudo somado me dá tão pouco tempo de vida – que raio de contas faço eu. de dia tudo é soma e á noite. no escuro. tudo é resto zero – é tudo fantasmagórico. invisível. e por mais que queira encontrar uma razão que me salve desta agonia das contas nada enxergo: ilumino-me com parafinae nada.  apago as luzes e tudo fica num escuro-negro. rezo. mas deus ignora-me. tudo não passa de uma mortalidade agonizante. tudo se divide numa equação simples: noite e dia. preto e branco. certo e errado. com destino e sem tino. vida ou morte. e eu preso a estas contas que deixam de ser contas quando o mortal que as faz se lembra que tem o alfa preso numa cruzeta – e um homem apruma-se. levanta o queixo. esfrega os olhos e pergunta às pratas que servem de espelho: porque me obrigas a somar se o reflexo mostra o dobro do que não sou – estou convencido de que deveria ter comprado um espelho mágico. ou a cruz de caravaca. ou uma máquina de calcular barata. chinesa – acredito que os chineses não saibam fazer contas. primeiro porque vendem tudo ao desbarato. depois porque carregam aqueles olhos em bico. como se vivessem desconfiados. a olhar as esquinas. tristes e amarrotados. quase fechados. parecidos com os meus – eu também vendi a vida por tuta-e-meia. e quando comecei ainda não tinha os olhos em bico. nem tristes. nem desconfiados. nem amarrotados. só quando fiz contas é que fiquei estrábico. fiquei quase chinês – às vezes apetece-me tirar o alfa do guarda-vestidos e deixá-lo fazer caminho. mas depois pergunto-me: deixo-o ir para onde? que garantias tenho que vai para o destino apalavrado? que se lixe. continuará preso à cruzeta e que apite. porque todos aqueles que apitam seu mal espantam – um dia prometo libertá-lo. e então. todas as contas somadas darão paz



 

22/06/2021

vou









de manhã cedo

salto de mim

e vou para o que não sou

absorvo café com leite

uma bucha de pão

e sinto o coração alçapão

 

mas vou

vou com pressa

em expresso

levo um sorriso

de vintém

e vou para o que não sou

 

mas vou

assim como sou

às vezes camaleão

às vezes papelão

às vezes irritação

 

e de curva em curva

entre campeões e matolões

vou como se não fosse

para lado nenhum

e penso:

vou para lá

ou fujo para acolá

não interessa

às vezes morro por lá

e também por acolá

 

mas vou

levo a bucha de pão

e um melão

que é mais desilusão

do que ebulição

 

mas vou

sem saber ao que vou

às vezes sem tino

às vezes sem destino

ás vezes num equilíbrio

que é apenas pesar

de ser o que sou

 

mas vou

vou com temor

triste e desiludido

[até perdido]

por não saber porque vou

se não gosto do que sou

quando vou

mas se o destino me atrasar

volto atrás

por caminho envesgado

não vá satanás saber

que sou aquele que vai

com melão

que é muito mais mutilação

do que paixão

 

mas vou

vou porque todos vão

mesmo que ninguém saiba

para onde vai

esta procissão

de tristonhos mortais

 

eu vou

mesmo com melão

mesmo com mutilação

mesmo com irritação

eu vou

vou com a minha careta

que não é vedeta

mas que importa

é a que tenho

e é com ela

que vou chegar

de onde nunca parti



 

09/06/2021

eu. o meu pai. e o meu primeiro dia de trabalho - III










terceiro dia de trabalho - III

7.30 da manhã entro na fábrica. com um pé qualquer. ainda não tinha compreendido que na vida um pouco de superstição não faz mal a ninguém. encantonei-me junto à secção de corte. sem saber muito bem o que me esperava. nervosíssimo e cheio de temor. com os olhos escondidos. aguardava pelo toque das oito – as mulheres-operárias iam entrando. marcavam o relógio de ponto. uma a uma davam o bom dia ao filho do patrão. deitavam os olhos ao chão e esgueiravam-se em passo ligeiro para o seu posto de trabalho – a meu lado. os meus colegas de corte arrumavam-se calmamente nas suas mesas e começavam a amolar as facas. num vai e vem da lâmina. rompendo a lixa e o aço. ora com um lado da faca para baixo. ora para cima. num movimento de pulso firme e ritmado. certo. como se houvesse um metrônomo a marcar o tempo de ir e vir – as mulheres mesmo sem quotas. não havia ainda a lei da paridade. estavam em grande maioria. sempre estiveram neste ramo da confeção – os minutos galopavam. a ansiedade acompanhava o galope do relógio. sem imaginar que iria dar início a um trabalho de vinte e dois anos – quando levantei os olhos do chão mesas e máquinas estavam preenchidas. embaladas por um barulho miudinho. cochichos sobre a minha chegada.  ansiosas por saber que função iria ocupar o filho do patrão – seriam mais ou menos umas quarenta mulheres. mais quatro homens no corte. um nos acabamentos. um no armazém. e mais três administrativos incluindo a minha irmã – o pessoal da contabilidade só entrava às oito e trinta. era gente com outra graciosidade nos gestos e na fala. mais citadinos. mais cultos. e por via desse refinamento eram donos das contas e do guito – a campainha começa a zoar tocada pelo encarregado geral. oito horas em ponto. nas fábricas não há tolerância de ponto. oito horas são mesmo oito horas – no fim do zunido uns microssegundos de silêncio que se estendia por toda a fábrica – uma explosão de barulho arrasa todo o silêncio. as máquinas de costura arrancam agitadas. tinham pela frente oito horas de ziguezague – era um trabalho duro e de muita responsabilidade. na pele não se pode recuar um ponto. para além de que uma qualquer desatenção e o dedo fica debaixo da agulha – um ofício de costas dobradas. braços a carregar material. pernas no pedal. e olhos fixos numa agulha que não pára de saltar para cima e para baixo. sem dúvida o trabalho mais pesado de toda a produção – todo mundo labuta. ao contrário do liceu que havia sempre uma quantidade apreciável de mandriões como eu. só trabalhava quando me apetecia ou quando resolvia frequentar as aulas – o meu irmão já estava a postos. pegava também às oito e era sempre certíssimo. um autêntico relógio suíço. dos caros. nunca se atrasava. nunca o vi chegar depois da hora – a minha mãe metida no meio das mulheres distribuía trabalho. sempre numa fona. chamava por esta e aquela. tudo girava sobre a sua orientação – sempre com um ar de preocupada. como se trouxesse o mundo às costas. rodava de mesa em mesa mimicando com autoridade – depois da ronda. estando todo o material distribuído e certa de que nada as faria abrandar. embrenhava-se numa mesa a ajudar – o sr. arlindo. encarregado geral. veio ter comigo. leva-me para a mesa dos forros. chama um cortador. o alberto. o mais qualificado na arte de golpear a pele. manda-o preparar uma faca e uma tala da lixa para amolar o fio. e recebo a minha primeira lição de amolador – confesso que nunca me dei bem com os amolanços. nunca consegui pôr o fio da faca como um profissional. ficava sempre mais parecido com um formão. não havia manómetro que me guiasse a mão. o que me retirava eficácia. os cantos e reentrâncias precisavam sempre de duas ou três passagens para concluir o corte. uma desgraça – colocam-me em cima da mesa os moldes de uma determinada bolsa. nunca imaginei que levasse tantos. teria trinta a cinquenta. felizmente que os do forro eram menos. mas mesmo assim. quase uma dezena. uma loucura – o alberto começa a colocar os moldes em cima do forro. chama-me atenção para o desperdício e alerta-me para a necessidade de os encaixar uns nos outros. era fundamental evitar perda de material. no poupar assentava a arte de um cortador de primeira categoria – por último o perigo da faca resvalar no molde e cortar um dedo. claro que não evitei alguns cortes. era um tosco habituado à esferográfica – e pronto. tinha chegado o momento de mostrar o que valia. estava por minha conta. não podia estar melhor preparado. anos e anos de malandrice e dez minutos de formação profissional – não me lembro quantas forros fui obrigado a cortar naquela minha primeira referência. mas também não era importante. o trabalho nunca acabava. ao contrário do meu estudo que acabava sempre antes de começar – ainda não tinha chegado o meio da manhã já eu dava voltas e voltas à minha cabeça. percebi rapidamente que foi um erro. não tinha necessidade nenhuma de ali estar. nem mesmo por ser um estudante medíocre e pouco aplicado – o orgulho matou-me. empurrou-me para um mundo que só passados muitos anos percebi. e apesar de me ter apaixonado pela criação de moda. que nunca fui verdadeiramente eu naquele ofício. nem creio que os meus irmãos também alguma tivessem sido inteiramente felizes – não somos da arte dos negócios. somos emocionais. e quem vive do coração nunca é um bom industrial – tudo fiz para esconder este meu lado afetivo. durante muitos anos fui o patrão mais exigente dentro daquela empresa. algumas vezes muito duro. tinha objetivos que queria atingir. queria ser o número um – naquele tempo lidar com o pessoal era muito complicado. ainda não se falava em produtividade como nos dias de hoje. e muito menos em competitividade – havia um outro sector da empresa muito importante: os vendedores. eram um pouco como os propagandistas. lábia e uma ladainha consistente fazia toda a diferença no total de vendas – nunca gostei de vender. ainda hoje não gosto. tínhamos seis ou sete vendedores espalhados pelo país. mas quando era exigido a presença de um responsável da empresa junto de um cliente. pedia sempre aos meus irmãos para me substituírem – os dois eram muito melhores na arte de impingir mercadoria. principalmente a minha irmã. tinha herdado esse jeito do meu pai. eram mais profissionais. vendiam mesmo sem gostar. para mim isso era impossível. para além de serem mais atenciosos. mais sorridentes – o que eu gostava mesmo era de estar dentro da fábrica. gostava de máquinas. do cheiro à cola. à pele. e daquela gente que com as mãos fazia quase tudo – mas onde me realizava. era no gabinete de design e modelagem. era neste espaço mágico que se criavam todas as coleções – fomos a primeira empresa do ramo a ter uma equipa de modelistas. o crescimento da empresa a isso obrigou. no começo a criação de modelos era feito pela minha mãe. quem mais poderia ser – esta equipa. não faziam mais nada a não ser tratar da criação de novos modelos – era um trabalho infernal. de seis em seis meses tínhamos que criar sessenta modelos de bolsas. cinquenta cintos de senhora. mais uma dezena de homem. quatro ou cinco coleções de viagem. tendo cada coleção pelo menos vinte a trinta modelos. e mais quase uma centena de marroquinaria de homem e mulher – quando terminávamos as coleções estávamos completamente esgotados – a par da confeção dos novos modelos tínhamos que calcular a previsão de vendas. guiávamo-nos apenas pela experiência e intuição. só com esta arte de adivinhação era possível começar a fazer compras da matéria prima. milhentas coisas impossíveis de enumerar. trabalhávamos sem rede. o fabrico era feito em cima das vendas – era um trabalho extenuante. às vezes completamente louco. os problemas sucediam-se e o improviso era a nossa segunda arte – hoje sei que não seria possível manter aquele ritmo por muito mais tempo. era imensamente desgastante. valia-me a idade e uma vontade enorme de vencer – depois do encerramento da fábrica fui pela primeira vez verdadeiramente feliz. não por escassos momentos. mas durante muito tempo. nem sabia que era possível ter tanto tempo para ser feliz. reencontrei-me com a família. voltei a estudar. e finalmente. comecei a ler. a minha grande paixão. e logo logo comecei a escrever. faço-o há vinte e quatro anos. todos os dias. seis horas no mínimo – há males que vem por bem. nunca teria sido o pai que fui. nem o marido. nem teria sabido separar os bons amigos dos maus. tornei-me exímio nesta triagem. rapidamente percebo o que está dentro do embrulho – no entanto. tenho que ser sincero com uma coisa. tudo o que sei e o que sou aprendi na nossa empresa familiar. e aprendi imenso. entrei um miúdo irresponsável e aquela gente fez-me homem. prepararam-me para a vida. foi uma experiência fantástica – confesso que nunca recuperei totalmente daquele encerramento forçado da empresa. estávamos a escassos anos de nos tornarmo-nos líderes destacados do mercado nacional. fiquei muito zangado. com raiva dos políticos. os primeiros tempos foram muito difíceis – não sei se alguma vez vou conseguir dormir sem que os pesadelos me assaltem o descanso. às vezes dói muito – a fábrica deu-me autoestima. acreditava em mim. acreditava que tudo o que fazia teria sucesso. e tive muito. e quanto mais sucesso. mais queria. queria sempre fazer mais coisas. queria aumentar a produção. fabricar novos produtos. queria estar sempre na vanguarda da moda. queria ter a primeira cor. a primeira inovação. a primeira máquina. queria um mundo perfeito. com o envelhecimento compreendi que o ótimo é inimigo do bom – tinha tantos sonhos. não pensava em mais nada a não ser tornar-me cada dia melhor. tinha a certeza de que mais tarde. ou mais cedo. seriamos uma marca de referência nacional e internacional – apesar de ser muito exigente com todos os colaboradores nunca disse não a nenhum. fosse o que fosse. tantas vezes critiquei o meu pai pela proximidade com os funcionários e aí estava eu. igual ou pior – o mais difícil era gerir os egos dos chefes de secção. passei as passas do algarve para manter a equipa unida até ao último dia da empresa. felizmente nunca me abandonaram. principalmente a margarida e o paulo. morreram como árvores. de pé. agoniaram a meu lado. e deram-me a oportunidade de encerrar a empresa com a dignidade possível. fizemos contas com todos os trabalhadores. apenas uma funcionária não aceitou o acordo – ainda hoje. sempre que me cruzo com qualquer um deles. saudámo-nos com carinho. é bom saber que ficaram com o melhor de mim – o mundo do trabalho é complicado para qualquer pessoa que está a dar os primeiros passos. acredito que em todas as profissões o primeiro dia será sempre lembrado. mas eu tinha levado uma vida de rambóia. sempre bem vestido. com dinheiro no bolso. com os mesmos amigos de rua. amava os meus amigos. a partilhar todas as brincadeiras de manhã à noite. a planear passeios e viagens à volta do mundo. a olhar as pernas das minhas colegas de liceu. agora levemente escondidas atrás de minissaias. a não ter que pensar no dia seguinte. a mandar o futuro lixar-se. e de repente. tudo tinha acabado. estava prisioneiro do toque da campainha – na fábrica não se parava de hora em hora como no liceu. o único toque de intervalo era para almoçar. não podia ir ao bar como habitualmente fazia nos intervalos da escola. nem ao badalhoco. um tasco em frente ao liceu sá de miranda. comprar meia sêmea com chouriço. não podia fazer piadas. fazer charme. namoriscar. gazetar. não podia tudo. estava aprisionado numa cadeia em que o guarda prisional era o meu pai – na fábrica ninguém falava. a única linguagem permitida era a das máquinas. que mesmo fazendo muito barulho nunca conseguia imitar a saída dos alunos do liceu. nós fazíamos muito mais chinfrim – rapidamente percebi que o trabalho era levado muito a sério – ao fim das duas primeiras horas não tinha feito nada. a faca não tinha desenrasque nas minhas mãos. e as mulheres de volta da mesa a perguntar se já tinha os forros cortados – comecei a ficar preocupado. percebi que a continuar assim estaria metido num rico sarilho. iria passar uma vergonha no meio da mulherada – ao fim do dia já era outro. não digo que fosse um cortador de primeira. nem de segunda. mas a faca já corria nas mãos e os forros começaram a estar prontos sempre que me eram solicitados – ao segundo dia já acumulava obra em cesto e comecei a ter mais vagar para pensar no que realmente estava a fazer naquela mesa de trabalho. porque se cortava daquela maneira e não de outra – no fim da primeira semana já tinha colocado tudo em causa. e pensei: se encontrar uma forma de cortar mais rápido os forros. quem sabe. posso dar à soleta mais cedo – a minha motivação não era o trabalho. mas sim pisgar-me rapidamente daquele inferno – não conseguia esquecer os amigos. de cada vez que cortava um forro assolava-me o fantasma da rua. das brincadeiras. da boa vida – já passou muito tempo desde esse meu primeiro dia de trabalho. o meu pai e a minha mãe já estão confortavelmente nalgum lugar sagrado. vivos. e com saúde. só mesmo os meus irmãos. por isso posso escrever a minha verdade. aquela que guardo. e fazer deste pedaço da minha vida. um ato de contrição. acreditando que já estou perdoado por tudo que tenha corrido menos bem – por esta certeza. e com a idade a crescer numa corrida de velocidade.  permite-me qualquer tipo de confissão. o tempo lava a alma. e com a “velhice” percebemos que o que era importante na juventude. agora com cabelos embranquecidos. ou sem eles. já não é – como já escrevi várias vezes: o que não é realmente importante. não o será mais tarde. ou mais cedo – no entanto. sou obrigado a reafirmar. que estas são as minhas memórias. que talvez não estejam isentas de erro. são simplesmente a minha vivência sobre os factos – acredito que os meus irmãos possam ter uma outra opinião. o que é normal e compreensível. aprendi a não me colocar no lugar dos outros. a não ser para compreendê-los – para justificar este meu receio sobre a memória e o que ela tende a guardar. vou contar uma história engraçada que me aconteceu há relativamente pouco tempo – quando eu tinha os meus nove anos. estudava no conservatório de música calouste gulbenkian. estávamos no período de carnaval. e já nesse tempo os miúdos fantasiavam-se – era uma escola frequentada pelas elites da cidade. tudo filhos de senhores doutores. endinheirados e muito respeitados pela importância das suas profissões – na maioria das escolas os alunos não tinham dinheiro para roupa e sapatos quanto mais para fantasias. o carnaval das crianças era vivido consoante o poder económico dos seus pais – lembro-me muitíssimo bem de pedir à minha mãe uma roupa de cowboy. e também me lembro de insistir durante uns quantos dias na necessidade de ir fantasiado – cansado de não ter a sua atenção disse-lhe que todos os meus colegas iam mascarados e que seria uma vergonha se eu também não fosse – a minha mãe era muito forreta. sempre foi. uma das suas muitas virtudes. mas os tempos não eram fáceis – depois de muito insistir. lá me foi comprar uma roupa de cowboy ao centro da cidade – mas a coisa não correu bem. a roupa era cara. a minha mãe recusou-se a gastar tanto dinheiro. e acabei com um chapéu de cowboy. uma estrela de sheriff. um coldre de plástico e uma pistola que não dava para matar coisa nenhuma. tudo muito piroso e de mau gosto – eram os limites da minha mãe. e sabendo como se comportava com gastos excêntricos sei hoje que foi um ato de amor – lembro-me da festa de carnaval e também me lembro de ser o puto mais mal vestido da minha classe. com a fantasia mais rasca. uma tragédia em dois atos: a compra da minha mãe. e a minha aparição no dia de carnaval na escola. estava envergonhado – pois bem. andei com esse trauma anos e anos. sempre que o carnaval chegava lá me assolavam as memórias da pirosice da minha fardeta – eis a surpresa. passados mais de vinte anos. a minha colega na gulbenkian ana paula aparece-me num jantar de um amigo comum. tinha passado uma eternidade – é claro que não estávamos iguais. tínhamos ambos envelhecido. estávamos casados e cada um de nós com dois filhos rapazes. e também tinha concluído o curso de engenharia têxtil. mas os traços de fisionomia e personalidade mantinham-se intactos – ao fim de alguns minutos. com milhentas interrogações. demos conta que tínhamos retomado a amizade no lugar em que a deixamos – foi fantástico. claro que tudo se deveu à minha amiga. continuava a falar pelos cotovelos. foi o suficiente para acabar com qualquer receio que ainda pudesse existir – passamos momentos fantásticos. fizemos viagens que recordamos. férias divertidas. muitas noitadas. pudemos partilhar um pouco da nossa vida. foi muito bom reconquistá-la para perto de mim – ainda nos vemos com alguma regularidade. agora menos porque deixou a minha cidade à procura de melhor sorte. mas a amizade mantém-se sabendo agora que a distância será sempre a que nós quisermos – há três ou quatro anos a minha amiga manda-me uma foto de grupo desse carnaval. e lá estou eu metido no meio de trinta e muitos alunos. com cara de poucos amigos. renegando com toda a certeza a minha mãe. e para meu grande espanto. e ao contrário do que tinha guardado em memória. estava fantasticamente mascarado. muitos dos meus amigos nem sequer estavam fantasiados – fiquei para morrer. como é possível ter guardado uma memória falsa durante tanto tempo. não sei como. mas sei que aconteceu – passei a duvidar de todas as memórias de infância – bem sei que estas memórias que escrevo já não são de uma criança. são de um quase adulto. mas mesmo assim. cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém – quando resolvi largar os estudos pensei com os meus botões. os meus irmãos são mais velhos. já tem a empresa oleada. eu vou mesmo ser patrão. trabalho quando me apetecer. vou fazendo o meu percurso profissional nas calmas. e o ordenado cai ao fim do mês – enganei-me completamente. os meus irmãos. como já referi. não nasceram para serem industriais. e por essa lacuna [agora menor] a fábrica continuava a depender dos meus pais. a única que estava mais ou menos adaptada era a minha irmã. estava na contabilidade. setor não produtivo e dependente da produção. quando há dinheiro é o melhor local para se trabalhar. quando o dinheiro falta é o deus me livre da aflição – o meu irmão era. e ainda é. uma excelente pessoa. atrever-me-ia a dizer que excelente pode não traduzir com justiça quão é excelente. mas agora que estou envelhecido e já posso dizer tudo o que penso. creio que o único defeito era mesmo ainda ter menos jeito para a fábrica do que eu – era demasiado boa pessoa. às vezes irritava-me que ele fosse tão bom. mas no mundo industrializado é um defeito perigoso. em determinadas situações pode até tornar-se muito perigoso. infelizmente era um defeito de família – eu também entrei boa pessoa. quando me apaixonei pelo trabalho fiz um grande esforço para me tornar um pouco pior. o mundo estava a mudar e não era possível vingar sem exigência. a produtividade era baixíssima. muitas das funcionárias não tinham nenhuma noção da importância do tempo nas empresas. o custo do minuto começou a ficar caro. e corríamos o risco de não ser competitivos com os nossos concorrentes – atreve-mo a dizer que uma grande parte não queria um trabalho. mas apenas um emprego – hoje. percebo que a culpa não era completamente dos funcionários. mas isso é outra história – o primeiro dia passou com muito custo. quando saí parecia que tinha estado preso um mês. senti-me como se fosse um presidiário que. depois de cumprir largos anos de pena. sai da prisão sem saber o que fazer ao destino – eu sabia. fui logo ter com os amigos e sem dar parte de fraco enfrentei a realidade triste e cruel. tinham estado toda a tarde juntos na galhofa – estive para morrer – no dia seguinte comecei a pensar em arranjar ferramentas para terminar o trabalho mais depressa. começou a obra de engenharia que espantou não só os meus pais como também todos os funcionários. revolucionei o corte dos forros. passou a andar mais folgado. passei a fazer em menos de uma manhã o que demorava um dia – esta solução-invenção baseava-se num jogo de réguas de madeira numeradas e colocadas nas extremidades laterais da mesa: no lado oposto ao cortador um desenrolador. e junto a este uma régua fixa e uma outra que deslizava sobre as réguas laterais – com esta engenhoca as placas de forro eram cortadas sem recorrer à sobreposição do molde. quando se puxava a peça do forro terminava sempre no local de corte. o ganho de tempo era quase de uma para sete. sete vezes mais produção – em traços gerais era mais ou menos isto. uma daquelas coisas simples. tipo ovo do colombo que. como todas as invenções. surgem para ajudar o homem a simplificar o trabalho e a ganhar mais tempo para si. no meu caso esse tempo seria para ir ter com os meus amigos – pedi autorização para mandar fazer a engenhoca. ainda sofri alguma resistência. mas a permissão lá saiu por parte de quem mandava – a família desconfiada torcia pelo sucesso. o encarregado zombava com subtileza. todos estavam à espera de um grande trambolhão. vinha agora um puto mostrar como se trabalhava – mostrei mesmo – por momentos acreditei que tinha encontrado o santo graal. mas nada disso. afinal o cálice era de latão. não havia forros para cortar havia outras coisas. puseram-me na mesa de acabamentos – confesso que esta invenção trouxe a motivação que me faltava. passei a acreditar que era capaz de ser líder. e fui durante mais de vinte anos. mas trouxe também algo que desconhecia. o respeito dos trabalhadores que começaram a ver-me não como filho do patrão. mas como alguém com aptidão para liderar os destinos da empresa – durante uns tempos não se falava de outra coisa. era o maior – o meu pai orgulhoso. nunca lhe tinha passado pela cabeça que o filho fosse capaz de tal feito em tão pouco tempo. apanhou o meu cunhado na empresa e foi logo mostrar-lhe a obra de engenharia – o meu cunhado filipe vale era engenheiro nos CTT. hoje altice. e como engenheiro tinha sempre direito a opinar. o meu pai dava-lhe ouvidos. percebia-se que tinha por ele uma grande estima. afinal tinha casado com a sua única filha – isto cá para nós. o meu pai tinha um fraquinho pela lolinha. nunca deixou de ser a menina da casa – a minha mãe sempre teve o feitio mais difícil. mas no que dizia respeito ao genro era mais tolerante. tinha vaidade por ter a filha casada com um homem formado – naquele tempo uma pessoa com um curso superior trazia consigo quase sempre a verdade da vida. mesmo que assim não fosse. o que dizia obrigava que pelo menos colhesse atenção – ora o problema é que o meu cunhado também achou que eu podia chegar longe. sugeriu ao meu pai mandar-me tirar um curso de agente de métodos. no porto. numa escola que dava pelo nome de NORMA – era tudo muito bonito. mas obrigava-me a levantar às seis da manhã. apanhar o expresso das sete na rodoviária nacional. duas horas de um trânsito infernal. o dia todo a aturar professores. saía pelas seis da tarde e chegava a casa depois das oito – fui trabalhar para não ter aulas e o meu querido cunhado mete-me em aulas todo o dia – lá se foram os amigos durante quatro meses – mas como um mal nunca vem só. o meu pai tinha uma casa de campo. com pomar e vinhas. e no início do tempo quente. com a desculpa de que tinha que regar as árvores. no fim do trabalho refugiava-se na aldeia. e só de lá saía no fim das vindimas – fui muito feliz na aldeia dos meus avós. as férias grandes eram vividas no meio dos campos e eucaliptos – arrisco-me a dizer que foi talvez o período em que fui mais tempo feliz. é hábito dizer que a felicidade não existe. vive-se apenas pequenos momentos. naquela aldeia era feliz desde o levantar até ao deitar – tenho imensas saudades dessa infância de luz. pela manhã cedo levantava-me e ia direto para casa de um vizinho lavrador. santana e glorinha. o pequeno almoço era uma malga de sopa de couves e feijões e um naco de boroa cozida no forno. estava alimentado para a manhã – arrancava com a dona glorinha e filhas. são e gracinha. para o campo. a puxar o carro de bois -meu deus que alegria- e ali ficava todo o dia. a ajudar no que podia. às vezes a desajudar no que não sabia – aprendi rapidamente a aparelhar uma junta de bois. apanhar milho. sacholar a terra e abrir canais de água para a rega. guiá-la entre as plantações. e à merenda lanchava como os jornaleiros. uma posta de bacalhau. broa e um trago de vinho tinto para empurrar – foi muito bonita a minha infância na aldeia – sem os meus pais em casa era obrigado a dormir na cama dos meus pais. tinham telefone na mesinha de cabeceira o que me permitia ligar para o número do despertar e apanhar a camioneta a horas – se tudo isto era mau. agora imaginem que a cama dos meus pais tinha um colchão ortopédico que era como pedra. duro para raio. coitado do meu pai. as dores da minha mãe sobravam sempre para ele – quando me habituei ao colchão estava a acabar a formação. nunca consegui dormir uma noite sossegada. levantava-me sempre amarrado à coluna. torto. a caminhar arrastado – nunca mais fiquei bem das minhas costas. o que agradeço ao meu cunhado filipe – tenho milhentas histórias da fábrica. não seria possível não ter. foram muitos anos ali metido. algumas poderia escrevê-las neste momento. outras. ainda precisam de mais tempo de maturação. preciso que o amadurecimento me vá mostrando o que fiz bem. e também o que fiz de errado. onde tinha razão. e principalmente onde perdi a razão – o que posso garantir é que serei inflexível neste meu ajuste de contas com o passado. é absolutamente necessário que assim seja. os meus filhos estão criados. mas faltam os netos. é essencialmente por estes que escrevo. um dia este meu testemunho pode fazer a diferença – estudar é fundamental. podia ter feito tudo. podia até no fim dos estudos ter ido para a fábrica dos meus pais. mas deveria ter entrado na universidade – não há industriais sem fábricas. mas há advogados sem tribunais. há dentistas sem consultórios. há professores sem escolas – há o dever de morrermos com uma profissão