1.
entre
o parvalhão e o homem
aos
dezoito anos era um parvalhão – aos vinte e oito suspeitei que tinha
sido um parvalhão nos últimos dez anos – deixei então de ser parvalhão e passei
apenas a parvo – só aos trinta e seis anos é que deixei de ser parvo e
passei a ser um homem – aos trinta e oito anos perdi o meu pai e aprendi que um
homem sem pai torna-se ainda mais homem – chorei. e ainda choro esse homem que
nunca serei – depois. tudo mudou. procurei-me e encantei-me com o que fui
encontrando e deixei-me cair num enamoramento que ainda cultivo – aos poucos
comecei a falar cada vez mais comigo. às vezes sorridente e confiante. outras.
mal-humorado e revoltado. e de quando em quando. o ressurgimento de maldições
absolutamente cruéis. impossíveis de esconder. de suavizar. de perdoar. e a
morte pendurada numa cruzeta. a provocar a vida. em espera. num gemido
agoniante. a implorar sossego e salvação – um homem esfrangalhado só sobrevive
com as lembranças que guarda no corpo: a família que te deu o nome. o dia do
sim e até que a morte nos separe. os filhos que nunca crescem. um sonho
profissional que teima ser ainda possível realizar. um amigo de desabafos. e
mais umas quantas manigâncias de pouca importância e que fui somando ao acaso –
e a rotura a trabalhar por dentro. a teimar como martelo na bigorna. a intimar.
a interrogar. a ordenar. a magoar. a mostrar a campa com o meu nome: aqui jaz
um parvo. sete palmos e meio de terra e uma tonelada de ninharias – o absoluto
em mim cada vez mais absoluto – e eu preso a correntes que enlaçam a mente até se
perderem no céu. a procurar um qualquer deus. um qualquer que me alivie o corpo
de um absolutismo ímpio. e o sangue gelado a correr-me os anos de vida. um a
um. a dizer baixinho: para o corpo desaparecer basta fechar os olhos – e eu a
teimar. amarrado às cicatrizes: esta foi a jogar à bola. esta foi de um
acidente de automóvel. esta foi de abandonar o liceu. esta eterniza-me pela
estupidez. e esta. a mais cruel. a de ser um jovem taralhouco. e mais outra de
amar o impossível. e ainda outra. e mais outra – tudo na vida não passa de uma
caminhada com vários pontos de partida. às vezes parto dos braços de minha mãe.
outras. da escola primária. da comunhão. de um abraço do meu pai. da bicicleta
que não tive. do insucesso escolar. da chegada à maior idade. do cheiro ao
couro e às colas. para logo de seguida partir de defeitos de nascença: o
coração. a mente. as mãos. tudo já podre. canceroso. e o que resta da alma
vaporiza-se e empesta o ar de um fedor imenso. tudo em volta desaparece em
cólera. e o oxigénio solidifica. inspiro pedras e expiro desespero magoado numa
crueldade absoluta. repito. absoluta – amarramo-nos à memória danificada.
escarnada. a lamuriar como se tudo no corpo estivesse em putrefação.
alimentando vermes. a magoar ainda mais o que já é insuportável: o homem
piedoso viveu em mim há séculos. o magoado resiste aos dias embriagado em recordações
absolutamente cruéis – a vida conjugada no passado – teimo. conto as estrelas
no céu e acredito que pelo menos uma é minha. e falo. e ouço-me. e falo. e
ouço-me. uma simbiose interesseira que nunca tinha aceitado. ou percebido. ou
era parvo e não sabia que podia falar e ouvir-me – falo. concordo e discordo.
revolto-me e amanso. aceito e rejeito. mas falo sem parar – obstinei-me e fui
dizendo tudo o que me ocorria. às vezes convulsivamente. às vezes
espaçadamente. às vezes dia sim. dia não. às vezes com a cabeça no além da lua.
e concluí que não é possível continuar a viver sem me escutar mesmo que o
paradoxo de plutarco esteja em mim resolvido: já não sou aquele – por isso
falo-me. mesmo que as cicatrizes me queiram confundir. teimem em dizer que é
nelas que a minha vida se harmoniza. é por elas que me interrogo. é por elas
que me zango agora que sou homem. foram elas que me construíram numa tortura
absoluta. repito. absoluta – sem as cicatrizes seria o mesmo homem que sou
hoje? tenho a certeza de que não. seria um outro qualquer. melhor? quero
acreditar que sim. pelo menos sem absolutismos apocalípticos – o mistério
morrerá comigo. vive em mim. adensa-se. e para cada resposta outras cem
interrogações – serei eu um seguidor do apóstolo joão? anúncio o meu fim para
que o corpo viva em estado de salvação permanente? o mistério é isso mesmo:
mistério que me carrega – corpo e mente numa encruzilhada de cicatrizes que não
me deixam partir do passado. nem redesenhar o presente. um fio condutor liga as
extremidades e a combustão alastra de mim. descontrolada e sinistra até ao
epicentro do absoluto – interrogo-me: porque fiz isto e aquilo? porque aceitei
isto e aquilo? porque gostei disto e daquilo? porque gastei tempo com isto e
aquilo? e principalmente porque idolatrei aquilo e não outra coisa? –
surpreendi-me. obtive retorno para quase todas as interrogações. e as
explicações que ainda não emergiram. sei agora que será uma questão de tempo.
tudo em nós precisa de tempo. só envelhecemos com tempo. só nos tornamos sábios
com tempo – passei a escrever cartas para mim. enviei-as em correio pessoal
para o jovem parvo – tenho fé que pelo menos uma lhe chegue às mãos e ainda vá
a tempo de mudar o meu dia de amanhã – afinal que faço eu se não viajar no
tempo. que raio de máquina construí eu em mim? que raio de pernas me cresceram
na mente para dar saltos como se fosse um canguru? mais um paradoxo a
retalhar-me as crenças. desta vez o paradoxo bootstrap. e eu entre barcos e
cartas teimo em fazer as pazes comigo
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