alyssa monks
escrevo. escrevo medo. escrevo pavor. escrevo nesta
carpintaria afligida de textos imperfeitos – nunca escrevo tudo – terror. tenho
sempre tanto horror das palavras. sempre tão cruas. cruéis. aqui mesmo à mão e
eu sem ferramentas para as usar – o corpo treme. não percebo a razão. afinal as
palavras são de todos aqueles que gostam de as escrever. principalmente dos que
precisam delas para falar. como eu – quero-as unicamente para falar. não as
quero punhal. não as quero arremessar. não as quero para condenar. nem para
absolver. nem para as oferecer. quero-as para falar de mim – estou refém das
palavras como as gaivotas do mar – é tão penosa esta procura das palavras. e o
corpo sem posição. e a cadeira a tomar formas que não me deixam sentado. falta
de ar. pânico. e o coração a sofrer por não compreender o que fazer nesta
carpintaria – sou um idiota. as palavras idiotizam quem não sabe escrever. mas
continuo a acreditar que um dia aprenderei a escrever uma palavra esdrúxula. grave
ou simples. juntá-las a feitio dos olhos. e palavra a palavra refazer um nome
num corpo. com olhos castanhos de um aceso alegre. e as maçãs do rosto coradas
de vergonha atraiçoam a timidez com um finíssimo silêncio de uma mão trémula a
desenhar o fim de uma idiotice – quero acreditar que sei falar a escrever –
sonho – de volta à realidade. descanso as mãos idiotas. se as mãos estiverem
caladas deixarei de ser idiota – não posso mais – há tanta gente por aí a
escrever idiotices e não deixam de escrever – talvez saiba escrever. talvez.
nem que seja para uma única pessoa me ouvir – talvez tudo não passe de uma
farpa. uma palavra espetada de esguelha no dedo indicador da mão que teima em escrever
– se for assim é fácil. com uma palavra agulha rasgo a pele e retiro a farpa.
para sempre – as farpas. escritas por eça de queirós e ramalho ortigão. foram uma caricatura da
sociedade da época. talvez esta farpa também represente o que de pior há em mim
– talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para duas pessoas – o problema é
dizer o que sou nas palavras. não é fácil dizer-se o que se é em palavras. as
mãos tremem-me penduradas num corpo que também treme – talvez não seja
idiotice. nem demência. talvez seja parkinson. mas o coração também treme.
talvez um ataque cardíaco. talvez uma fobia. uma overdose de palavras difíceis.
talvez esteja num sonho. e a cadeira é afinal uma pedra lascada e o computador
imaginação de um catraio do passado a desenhar letras em cadernos de duas
linhas – talvez não saiba mesmo escrever. e a loucura seja mesmo essa: escrever
– talvez afinal não seja idiota. talvez o corpo esteja infectado por um fungo-bolor
onde a realidade é atacada e manipulada por bolores alucinogénios – ganzo-me a
escrever. quem diria. as palavras são uma droga poderosíssima – um deste dias
sou preso por consumo e tráfego de substâncias perigosas e proibidas – antigamente a policia andava sempre a
procura de quem escrevia. e havia gente especializada na leitura destes textos.
punham carimbos enormes a dizer: censurado – um dia destes sou preso. censurado
não creio. se soubesse escrever talvez me prendessem por um dia – talvez saiba
escrever. talvez. nem que seja para três pessoas – tenho a sensação de que
estou fechado num elevador parado entre o céu e o inferno e a porta teima em
não abrir. carrego num botão. e noutro. e outro. e em todos ao mesmo tempo e
nada. tudo parado. paralisado. e um murro na porta igual ao que dou aos
dicionários e nada. nada se abre aos meus olhos. da porta para lá nada. como as
palavras. da cabeça para lá nada – nada. e o elevador parado. e as palavras paradas.
e eu a bater com a mãos nas teclas a fingir que escrevo o que sou – não sei fazer palavras – mas eu sei que
existem. sei. sei. e sei. ouvi-as na
boca de gente diferente – dinis. eça. antunes. andrade. breyner. garret.
espanca. pessoa. camões. branco. saramago. estes nomes não me são estranhos.
esta gente sabia o que fazer às palavras. existiram. tenho a certeza. vi livros
com estes nomes impressos – existem. não sou idiota – mas eu também existo.
tenho a certeza. não pode ser loucura. talvez as palavras sejam loucas e não
digam o que me vai dentro do corpo. mas só as palavras. porque tudo o que está
à minha volta existe. e do lado da porta deste elevador parado entre o céu e o
inferno há gente. também com nomes. sei – todos temos nomes. mas confesso que
não sei o nome dos meus vizinhos. nunca me escreveram. dizem boa tarde. bom
dia. está sol. está mau tempo. tem que se agasalhar. cuidado com o frio. ainda
ontem entrou no reino de deus o vizinho do cinquenta e três. o que vivia no
terceiro frente. uma pontada de ar e lá foi. que deus o tenha a seu lado – de
seguida silêncio. também não tenho nome. talvez porque nunca lhes escrevi –
tudo se resume à palavra escrita – as pessoas existem mesmo sem saber escrever.
isso eu sei. se não como seria possível eu estar aqui a fingir que sei escrever.
se finjo logo existo – a minha vizinha do quarto andar tem um cão branco também
existe. o meu vizinho do sexto com o
bigode também existe. e o GNR reformado que vive ao lado da vizinha portista
também existe. e o cão do primeiro andar frente também existe – as palavras são
cada vez mais complicadas para alguém como eu: hipopotomonstrosesquipedaliofobia.
medo. doente de medo. sem cura. raio de palavra enorme para dizer tão pouco.
medo – dizem os entendidos que a terapia recomendada para aliviar o corpo deste
mal é escrever mesmo que não se saiba muito bem o que se escreve. como quem
diz. o que se quer dizer – sou mesmo idiota. para que escrevo se não sei
escrever o que tenho dentro do corpo – escrevo – escrevo um texto que não é
este. este é só para desabafar esta raiva de não saber gritar com palavras –
que tristeza – nem por saber que tenho uma amiga que quando acorda se senta na
cama a ler este idiota – sorte a minha. devo ser o único palerma do mundo que
tem alguém que gosta de acordar com palavras de um tolo – debruça-se para um
raio de sol. o primeiro da manhã puxado por deusas vítreas até à sua almofada
feita de penas de anjos onde os seus
cabelos desarrumados seguram os sonhos de um idiota incorrigível – adelgaça as
palavras com afeição. com estima. com um “bem-me-quer” que me abraça em
confiança e a sua leitura é agora tudo o que não escrevi – há outra vida nas palavras. não aquelas que
escrevi em delírio. mas as que são lidas em pureza nos primeiros raios de sol
das manhãs – tudo tão leve. tudo tão sem peso. tudo tão pueril. tudo tão inocente
neste acordar enviado pelos anjos – escrevo. escrevo para acordar as palavras
que dizem o que não consegui dizer enquanto idiota. talvez alquimia. magia. uma
que faz das letras grãos de areia finíssimas. quase inúteis. se não fossem pó
não eram nada – nada também existe no dicionário de português:
na·da
(latim [res] nata, coisa nascida)
pronome indefinido
1. Coisa nenhuma (ex.: estava escuro e não vi nada; nada lhe despertou a
atenção).
substantivo masculino
2. O que não existe; o não-ser.
3. [Por extensão] Pouca coisa. = BAGATELA
4. [Figurado] Fragilidade.
advérbio
5. Expressa negação; de modo nenhum. = NÃO
quando
escrevo sou tudo isto: nada
mas.
talvez saiba escrever. talvez.
nem que seja para meia dúzia de pessoas