.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

26/04/2014

nada




alyssa monks
 




escrevo. escrevo medo. escrevo pavor. escrevo nesta carpintaria afligida de textos imperfeitos – nunca escrevo tudo – terror. tenho sempre tanto horror das palavras. sempre tão cruas. cruéis. aqui mesmo à mão e eu sem ferramentas para as usar – o corpo treme. não percebo a razão. afinal as palavras são de todos aqueles que gostam de as escrever. principalmente dos que precisam delas para falar. como eu – quero-as unicamente para falar. não as quero punhal. não as quero arremessar. não as quero para condenar. nem para absolver. nem para as oferecer. quero-as para falar de mim – estou refém das palavras como as gaivotas do mar – é tão penosa esta procura das palavras. e o corpo sem posição. e a cadeira a tomar formas que não me deixam sentado. falta de ar. pânico. e o coração a sofrer por não compreender o que fazer nesta carpintaria – sou um idiota. as palavras idiotizam quem não sabe escrever. mas continuo a acreditar que um dia aprenderei a escrever uma palavra esdrúxula. grave ou simples. juntá-las a feitio dos olhos. e palavra a palavra refazer um nome num corpo. com olhos castanhos de um aceso alegre. e as maçãs do rosto coradas de vergonha atraiçoam a timidez com um finíssimo silêncio de uma mão trémula a desenhar o fim de uma idiotice – quero acreditar que sei falar a escrever – sonho – de volta à realidade. descanso as mãos idiotas. se as mãos estiverem caladas deixarei de ser idiota – não posso mais – há tanta gente por aí a escrever idiotices e não deixam de escrever – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para uma única pessoa me ouvir – talvez tudo não passe de uma farpa. uma palavra espetada de esguelha no dedo indicador da mão que teima em escrever – se for assim é fácil. com uma palavra agulha rasgo a pele e retiro a farpa. para sempre – as farpas. escritas por eça de queirós  e ramalho ortigão. foram uma caricatura da sociedade da época. talvez esta farpa também represente o que de pior há em mim – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para duas pessoas – o problema é dizer o que sou nas palavras. não é fácil dizer-se o que se é em palavras. as mãos tremem-me penduradas num corpo que também treme – talvez não seja idiotice. nem demência. talvez seja parkinson. mas o coração também treme. talvez um ataque cardíaco. talvez uma fobia. uma overdose de palavras difíceis. talvez esteja num sonho. e a cadeira é afinal uma pedra lascada e o computador imaginação de um catraio do passado a desenhar letras em cadernos de duas linhas – talvez não saiba mesmo escrever. e a loucura seja mesmo essa: escrever – talvez afinal não seja idiota. talvez o corpo esteja infectado por um fungo-bolor onde a realidade é atacada e manipulada por bolores alucinogénios – ganzo-me a escrever. quem diria. as palavras são uma droga poderosíssima – um deste dias sou preso por consumo e tráfego de substâncias perigosas e proibidas  – antigamente a policia andava sempre a procura de quem escrevia. e havia gente especializada na leitura destes textos. punham carimbos enormes a dizer: censurado – um dia destes sou preso. censurado não creio. se soubesse escrever talvez me prendessem por um dia – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para três pessoas – tenho a sensação de que estou fechado num elevador parado entre o céu e o inferno e a porta teima em não abrir. carrego num botão. e noutro. e outro. e em todos ao mesmo tempo e nada. tudo parado. paralisado. e um murro na porta igual ao que dou aos dicionários e nada. nada se abre aos meus olhos. da porta para lá nada. como as palavras. da cabeça para lá nada – nada. e o elevador parado. e as palavras paradas. e eu a bater com a mãos nas teclas a fingir que escrevo o que sou  – não sei fazer palavras – mas eu sei que existem. sei. sei. e sei.  ouvi-as na boca de gente diferente – dinis. eça. antunes. andrade. breyner. garret. espanca. pessoa. camões. branco. saramago. estes nomes não me são estranhos. esta gente sabia o que fazer às palavras. existiram. tenho a certeza. vi livros com estes nomes impressos – existem. não sou idiota – mas eu também existo. tenho a certeza. não pode ser loucura. talvez as palavras sejam loucas e não digam o que me vai dentro do corpo. mas só as palavras. porque tudo o que está à minha volta existe. e do lado da porta deste elevador parado entre o céu e o inferno há gente. também com nomes. sei – todos temos nomes. mas confesso que não sei o nome dos meus vizinhos. nunca me escreveram. dizem boa tarde. bom dia. está sol. está mau tempo. tem que se agasalhar. cuidado com o frio. ainda ontem entrou no reino de deus o vizinho do cinquenta e três. o que vivia no terceiro frente. uma pontada de ar e lá foi. que deus o tenha a seu lado – de seguida silêncio. também não tenho nome. talvez porque nunca lhes escrevi – tudo se resume à palavra escrita – as pessoas existem mesmo sem saber escrever. isso eu sei. se não como seria possível eu estar aqui a fingir que sei escrever. se finjo logo existo – a minha vizinha do quarto andar tem um cão branco também existe. o  meu vizinho do sexto com o bigode também existe. e o GNR reformado que vive ao lado da vizinha portista também existe. e o cão do primeiro andar frente também existe – as palavras são cada vez mais complicadas para alguém como eu: hipopotomonstrosesquipedaliofobia. medo. doente de medo. sem cura. raio de palavra enorme para dizer tão pouco. medo – dizem os entendidos que a terapia recomendada para aliviar o corpo deste mal é escrever mesmo que não se saiba muito bem o que se escreve. como quem diz. o que se quer dizer – sou mesmo idiota. para que escrevo se não sei escrever o que tenho dentro do corpo – escrevo – escrevo um texto que não é este. este é só para desabafar esta raiva de não saber gritar com palavras – que tristeza – nem por saber que tenho uma amiga que quando acorda se senta na cama a ler este idiota – sorte a minha. devo ser o único palerma do mundo que tem alguém que gosta de acordar com palavras de um tolo – debruça-se para um raio de sol. o primeiro da manhã puxado por deusas vítreas até à sua almofada feita de penas de anjos  onde os seus cabelos desarrumados seguram os sonhos de um idiota incorrigível – adelgaça as palavras com afeição. com estima. com um “bem-me-quer” que me abraça em confiança e a sua leitura é agora tudo o que não escrevi –  há outra vida nas palavras. não aquelas que escrevi em delírio. mas as que são lidas em pureza nos primeiros raios de sol das manhãs – tudo tão leve. tudo tão sem peso. tudo tão pueril. tudo tão inocente neste acordar enviado pelos anjos – escrevo. escrevo para acordar as palavras que dizem o que não consegui dizer enquanto idiota. talvez alquimia. magia. uma que faz das letras grãos de areia finíssimas. quase inúteis. se não fossem pó não eram nada – nada também existe no dicionário de português:

na·da

(latim [res] nata, coisa nascida)
pronome indefinido

1. Coisa nenhuma (ex.: estava escuro e não vi nada; nada lhe despertou a atenção).
substantivo masculino
2. O que não existe; o não-ser.
3. [Por extensão]  Pouca coisa. = BAGATELA
4. [Figurado]   Fragilidade.

advérbio

5. Expressa negação; de modo nenhum. = NÃO

 
 
quando escrevo sou tudo isto: nada
 
mas.
 

talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para meia dúzia de pessoas

 




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