escrevo. escrevo medo. escrevo pavor. escrevo nesta
carpintaria afligida de textos imperfeitos – nunca escrevo tudo – terror. tenho
sempre tanto terror das palavras. sempre tão cruas. cruéis. aqui mesmo à mão e
eu sem ferramentas para as usar – o corpo treme. não percebo a razão. afinal as
palavras são de todos aqueles que gostam de as escrever. principalmente dos que
precisam delas para falar. como eu – quero-as unicamente para falar. não as
quero como punhais. não as quero arremessar. não as quero para condenar. nem
para absolver. nem para as oferecer. quero-as para falar de mim – estou refém
das palavras como as gaivotas do mar – é tão penosa esta procura das palavras. e
o corpo sem posição. e a cadeira a tomar formas que não me deixam sentado.
falta de ar. pânico. e o coração a sofrer por não compreender o que fazer nesta
carpintaria – sou um idiota. as palavras idiotizam quem não sabe escrever. mas
continuo a acreditar que um dia aprenderei a escrever uma palavra esdrúxula. grave
ou simples. juntá-las ao feitio dos olhos. e palavra a palavra. refazer um nome
num corpo com olhos castanhos e um olhar cansado. e as maçãs do rosto coradas
de vergonha atraiçoam a timidez. num finíssimo silêncio de uma mão trémula a
desenhar o fim de uma idiotice – quero acreditar que sei falar a escrever –
sonho – de volta à realidade descanso as mãos idiotas. se as mãos estiverem
caladas deixarei de ser idiota – não posso acorrentar-me – há tanta gente por
aí a escrever idiotices e não deixam de escrever – talvez saiba escrever.
talvez. nem que seja para uma única pessoa me ouvir – talvez tudo não passe de
uma farpa. uma palavra espetada de esguelha no dedo indicador da mão que teima
em escrever – se for assim é fácil. com uma palavra agulha rasgo a pele e
retiro a farpa. para sempre – as farpas. escritas por eça de queirós e ramalho
ortigão. foram uma caricatura da sociedade da época. talvez esta farpa também
represente o que de pior há em mim. uma caricatura – talvez saiba escrever.
talvez. nem que seja para duas pessoas – o problema é dizer o que sou nas
palavras. não é fácil dizer-se o que se é em palavras. as mãos tremem-me
penduradas num corpo que também treme – talvez não seja idiotice. nem demência.
talvez seja parkinson. mas o coração também treme. talvez um ataque cardíaco.
talvez uma fobia. uma overdose de palavras difíceis. talvez esteja num sonho. e
a cadeira é afinal uma pedra lascada. e o computador é uma janela de um catraio
do passado que desenha letras em cadernos de duas linhas – talvez não saiba
mesmo escrever. e a loucura seja mesmo essa: escrever – talvez afinal não seja
idiota. talvez o corpo esteja infetado por um fungo-bolor onde a realidade é
atacada e manipulada por bolores alucinogénios – ganzo-me a escrever. quem
diria. as palavras são uma droga poderosíssima – um destes dias sou preso por
consumo e tráfego de palavras perigosas e proibidas – antigamente a polícia
andava sempre à procura de quem escrevia. e havia gente especializada na
leitura destes textos. punham carimbos enormes a dizer: censurado – um dia também
eu sou preso. censurado não creio. se soubesse escrever talvez me prendessem
por um dia – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para três pessoas – tenho
a sensação de que estou fechado num elevador parado entre o céu e o inferno e a
porta teima em não abrir. carrego num botão. e noutro. e outro. e em todos ao mesmo
tempo e nada. tudo parado. paralisado. e um murro na porta igual ao que dou aos
dicionários e nada. nada se abre aos meus olhos. da porta para lá nada. como as
palavras. da cabeça para lá. nada – nada. e o elevador parado. e as palavras
paradas. e eu a bater com as mãos nas teclas a fingir que escrevo o que sou – não
sei fazer palavras – mas eu sei que existem. sei. sei. e sei. ouvi-as na boca de gente diferente – dinis.
eça. antunes. andrade. breyner. garret. espanca. pessoa. camões. branco.
saramago. estes nomes não me são estranhos. esta gente sabia o que fazer às
palavras. existiram. tenho a certeza. vi livros com estes nomes impressos –
existem. não sou idiota – mas eu também existo. tenho a certeza. não pode ser
loucura. talvez as palavras sejam loucas e não digam o que me vai dentro do
corpo. mas só as palavras. porque tudo o que está à minha volta existe. e do
lado da porta deste elevador parado entre o céu e o inferno há gente. também
com nomes. sei – todos temos nomes. mas confesso que não sei o nome dos meus
vizinhos. nunca me escreveram. dizem boa tarde. bom dia. está sol. está mau
tempo. tem que se agasalhar. cuidado com o frio. ainda ontem entrou no reino de
deus o vizinho do cinquenta e três. o que vivia no terceiro frente. uma pontada
de ar e lá foi. que deus o tenha a seu lado – de seguida silêncio. também não
tenho nome. talvez porque nunca lhes escrevi – tudo se resume à palavra escrita
– as pessoas existem mesmo sem saber escrever. isso eu sei. se não como seria
possível eu estar aqui a fingir que sei escrever. se finjo logo existo – a
minha vizinha do quarto andar tem um cão branco. também existe. o meu vizinho
do sexto com o bigode também existe. e o GNR reformado que vive ao lado da
vizinha portista também existe. e o cão do primeiro andar frente também existe
– as palavras são cada vez mais complicadas para alguém como eu:
hipopotomonstrosesquipedaliofobia. medo. doente de medo. sem cura. raio de
palavra enorme para dizer tão pouco. medo – dizem os entendidos que a terapia
recomendada para aliviar o corpo deste mal é escrever mesmo que não se saiba
muito bem o que se escreve. como quem diz. o que se quer dizer – sou mesmo
idiota. para que escrevo se não sei escrever o que tenho dentro do corpo –
escrevo – escrevo um texto que não é este. este é só para desabafar esta raiva
de não saber gritar com palavras – que tristeza – nem por saber que tenho uma amiga
que quando acorda se senta na cama a ler este idiota – sorte a minha. devo ser
o único palerma do mundo que tem alguém que gosta de acordar com palavras de um
tolo – debruça-se para um raio de sol. o primeiro da manhã puxado por deusas
vítreas até à sua almofada feita de penas de anjos. onde os seus cabelos
desarrumados seguram os sonhos de um idiota incorrigível – adelgaça as palavras
com afeição. com estima. com um “bem-me-quer” que me abraça em confiança. e a
sua leitura é agora tudo o que não escrevi – há outra vida nas palavras. não
aquelas que escrevi em delírio. mas as que são lidas em pureza nos primeiros
raios de sol das manhãs – tudo tão leve. tudo tão sem peso. tudo tão pueril.
tudo tão inocente neste acordar enviado pelos anjos – escrevo. escrevo para
acordar as palavras que dizem o que não consegui dizer enquanto idiota. talvez
alquimia. magia. uma que faz das letras grãos de areia finíssimas. quase
inúteis. se não fossem pó não eram nada – nada também existe no dicionário de
português:
pronome
indefinido
1. Coisa
nenhuma (ex.: estava escuro e não vi nada; nada lhe despertou a atenção).
substantivo
masculino
2. O que
não existe; o não-ser.
3. [Por
extensão] Pouca coisa. = BAGATELA
4.
[Figurado] Fragilidade.
advérbio
5.
Expressa negação; de modo nenhum. = NÃO
quando escrevo sou tudo isto: nada
mas.
talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para meia dúzia de pessoas
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