adolescente. um dia para
os amigos. um minuto para o corpo. a bola a saltar e o pião a rolar num peito
atravessado a vento sul. a puxar gaivotas para um mar nunca antes navegado. e o
cabelo castanho. imortal. desviado para o lado mais a seu jeito – sou primavera.
abril. e os dias pequenos para tanto coração – nesse tempo não havia inverno. ossos
rijos. braços fortes. pernas a correr acima do tronco e os olhos a avistar dias
para lá do ocaso – no corpo. os amigos a trabalhar dia e noite. como relógios
pendurados em paredes de pedra. com séculos. os ponteiros a marcar o futuro ao segundo
num tic tac imperceptível – queria tanto crescer – e os dias a imitar
tartarugas. demorados. o sol incapaz de fazer sombra. nem vento. nem frio. nem
arrepios. nem medos. a gola alta tapa a garganta franzina que não se cansa de
gritar o nome dos amigos. zé do gerês. tiago. agostinho. jorge. toni. vicente.
fernando. fontes. rui. meno. tó mané. carlitos. lúcio. pimenta. joca. luís
vieira. quim. leites. paulo (s). pedro. gijo. miguel. joão. zeca [que “deus” me
perdoe se me esqueci de algum] – éramos tantos. ainda somos muitos. mas não
tantos. há agora um mundo novo. um mundo bom e justo. onde os corpos não adoecem.
as amizades não acabam. as palavras nunca ficam por dizer – um mundo que desejo
acreditar. passam-se os dias a jogar à bola. o luís vieira entre duas nuvens. a
fingir postes de uma baliza. defendendo como guarda-redes. o joca [filho do
gaspar chapeiro] chuta de trivela. em estilo. com o corpo a inclinar-se para o
lado de uma conversa que nunca tivemos
devo-te um pedido de
desculpas. espero que me perdoes. partiste tão rápido. sem ao menos um café. um
abraço. sei lá. algo que me deixasse
ficar em paz
de tanta vida gasta. sobra-me hoje este único
arrependimento. coisas da juventude – sou dos mais novos do rebanho. sempre
quis ter amigos mais velhos. sempre soube que estes sabiam o que eu desconhecia
– éramos um clã. uma tribo da praça do comércio. quem aqui nasce ou cresce.
fica marcado para sempre. como ferro quente nos rebanhos – os gregos e romanos
também usaram técnicas de fogo nos seus rebanhos. o seu legado correu o mundo –
o nosso fogo era diferente. marcava o coração. era feito de inocência. de
ingenuidade. de fé. de camaradagem. de bondade. de amparo. de abraço. de
fraternidade. de verdade. nos olhos duas luzinhas vivas. acesas. brasa para
temperar ferro – mais um dia. mais futebol – frente a frente. os dois mais
velhos. deitam os pés. como um duelo. o primeiro que toca a ponta do pé começa a escolher a equipa.
primeiro os mais velhos. de seguida os melhores jogadores e finalmente os putos
– emudecimento. os putos ficavam sempre para último. aceitam o que lhes cabe por
sorte em silêncio – tu vais para a baliza – de um lado uma pedra. do outro um
poste de luz que nada alumia. fundido pelos remates perdidos em ais de um quase
golo e as biqueiras dos sapatos sem tinta. e nos ouvidos a certeza de que a
minha mãe um dia destes cumpria a promessa de me comprar umas chancas
ó rapaz. olha como tens
esses sapatos comprados há menos de um mês. pensas que o teu pai é rico
um género de praxe académica dos nossos dias. os
grandes exerciam um poder absoluto na miudagem. físico. se necessário. psicológico
obrigatório – a livre expressão da individualidade como parceiro de equipa. que
se limitava a um abanar da cabeça. dizer sim – e eu ali. olhos caídos em mudez.
acotinhados a um canto. a receber ordens. mas bem lá por dentro. alegre por
partilhar um espaço-tempo ao lado dos grandes – os putos são felizes com tão pouco
– o jogo vai começar. muda aos seis. acaba aos doze. não há desforra – e ali
fico eu a vê-los a correr de um lado para o outro. encostado ao poste de luz. fundido.
a pedra é muito pequena. mais pequena do que qualquer puto com o sonho de
crescer o mais rápido possível
passa. passa. olha o
carlitos. chuta. golo. golo. golo
a culpa era sempre do puto da baliza. olhos para
baixo. boca fechada antes que um dos grandes se irritasse e me fizesse a andar
a mil – os mais velhos tinham sempre razão – mas os amigos grandes são assim.
às vezes injustos. não importava. o
importante era fazer parte do seu mundo. fazer parte do jogo. estar na
equipa. pertencer ao rebanho – e ali estou a crescer. a conhecê-los pelos gestos.
pelas vozes grossas. todas diferentes. pela roupa. e eles todos elegantes a
falar com palavras que nunca tinha ouvido. não eram da escola. eram da vida.
dos anos. da altura do corpo. enquanto batiam com o cigarro na palma da mão. e
o fósforo acendia um fogo de desejo nos meus olhos – queria crescer. queria ser
também eu enorme e bater com o cigarro. apertar o tabaco naquele tubo de papel
e fazer fumo às bolinhas. ritmadas pelos maxilares. a mexer para cima e para
baixo. como vulcão a anunciar erupção. explosão. expansão. e o fumo. engolido em
golfadas. sai pelo nariz de um novo guerreiro. enquanto a ponta do cigarro era
confiscada por mais um puto. a beata. agora em posse de um novo dono. queima entre
dedos. pouco mais resta do que o filtro. e os meus olhos a ver o tempo arder. e
por cada segundo queimado. uma a menos. passa num filtro amarrotado de conversa
de amigos. para sempre – quero ser grande – camarada. raio de palavra.
companheiro. raio de palavra. amigo. raio de palavra. para onde foram estas
palavras? para onde? roubaram-mas e não percebi. quando estamos a crescer não
damos conta de quase nada – agora sou gigantesco. fumo. e por cada golfada de
fumo um centímetro de altura – os mais velhos naquele tempo eram mais sábios.
ouvi-los era aprender. respeitá-los era obrigatório. fumar era crescer no
respeito – sabiam tantas coisas que eu não sabia. meu deus. como eram
inteligentes. e bonitos. sempre a sorrirem. e eu ali a olhar. invejoso. a querer
ser como todos eles. e eles a falar. e eu sem conseguir ouvir todos ao mesmo
tempo. e eles a apontar para o futuro. e eu sem saber onde estava o meu. e eles
com as calças vincadas e eu todo engelhado. e eles com os pés no chão e eu com
a cabeça no ar. eram tão bonitos. eram meus amigos e os amigos são sempre
bonitos. eram os melhores amigos do mundo. enormes. tão grandes como a roda
gigante das diversões. vinha todos os anos para as festas da cidade em honra de
s. joão. e eu. às voltas a tentar ver o mundo pela sua altura. como a roda. a
girar. sem parar. sem parar – era enorme esta roda. eles também – ninguém tinha
amigos como eu – com a chegada da noite a recolha obrigatória dos corpos. era o
meu momento de profunda tristeza – sem eles estava só. num silêncio de morte.
um silêncio sem existência de vida. de confiança. de segurança. de amor. de
tudo – eles eram tudo
até amanhã pessoal
e lá os levava eu para casa. todos. sem saberem.
eram tantos. todos tão diferentes e especiais – colocava-os na cómoda. de
frente para a cama. separados por tamanhos. os mais velhos ficavam à frente. queria-os
sempre à mão. a fintar a escuridão. a passar a bola de pé para pé. e o polícia
de giro sisudo a dizer:
meninos. toca a guardar
a bola. estão fartos de saber que é proibido jogar nos passeios. vamos ter
problemas
olhos no chão. a bola nas costas debaixo da camisete.
um silêncio de quem é culpado pela quinquagésima vez. e as cabeças a dizer que
sim. juravam com os dedos em figas que não voltaríamos a jogar na rua – ninguém
pecava. ninguém mentia. os dedos cruzados em figas eram a absolvição. código de
honra entre amigos – e ali ficavam eles até que o dia chamasse pelo meu nome – queria
tanto que me conhecessem. bem sei que estava a dormir. mas também sei que falo
enquanto sonho. eles estavam em todos os meus sonhos. quem sabe dizia algo
importante. de afeição. e pela manhã acordava com abraços a dizer: bom dia
amigo. estamos à tua espera – tinha tanta coisa importante para lhes dizer. sonhos.
pedacinhos de coisas prontas a construir lugares onde a amizade é para sempre –
doce vida. doce jovem. doce esperança. as mãos em formação seguravam vidas que
não eram minhas – a padaria lusitana. servida por duas portas. era verão se
estavam abertas. faziam corrente de ar. e o cheirinho ao pão a passear por cima
dos ombros de miúdos a rebolar pelo chão. a jogar à carica na beira de um
passeio de pedra silenciosa – ninguém falava quando nós gritávamos. éramos ciclistas.
queríamos acreditar. e o camisola amarela representava todos os meus amigos –
eu lá ia. pendurado no carro vassoura. feliz por vê-los felizes – não entra
nestas corridas quem quer – tanta gente naquela rua. tanta gente naquela praça.
tanta gente no meu mundo – a celestinha de bata branca. atrás do balcão.
relatava a sua vida aos clientes enquanto a soma era feita de meias dúzias
celestinha dúzia e meia
para mim. estaladiços. hoje estou com pressa
a freguesa segurava uma saca de tecido bordada à mão
com três letras: pão – nada era mais importante do que o pão na vida das
famílias. vizinhos. amigos. todos sabiam o meu nome – os meus amigos eram o meu
pão. alimentavam-me com a esperança de um mundo azul. com mar. sol e sal. com
gaivotas. livres como o vento. feitas de asas. feitas de eternidade – e as
meias dúzias a cair das prateleiras de madeira coloridas de farinha a imitar neve
em montanhas mágicas. na saca a lenda da rainha santa isabel: rosas senhor.
rosas – havia tanta gente a sorrir. eu também – onde está essa gente dos
sorrisos? onde? morreu? talvez. eu também morri e as sacas bordadas. estamos
todos mortos e nem demos ainda conta – o meu amigo tiago pergunta:
celestinha tem bombocas?
esgotaram menino. agora só na próxima semana
éramos todos meninos. éramos todos meninos e eu. sem
saber. e eles. sem saber. só o tempo sabia da nossa meninice. talvez por isso
me acordava sempre com sol. persiana para cima. pijama fora. escada abaixo. e
em duas passadas ali estava eu na rua. aos pinchos. bola na mão. e os compinchas
a chegar um a um. e os dias a sorrir até cair de cansaço na noite
mais dois e já dá para
jogarmos três contra três ou então aos centros. a deitar fora
um a um. depois do jantar. juntávamos a amizade numa
roda que se fechava numa aliança imortal – falávamos de tudo que era nada. e
tudo fazia sentido. e eu ali a fechar um círculo que nunca percebi onde
começava na certeza de que nunca seria mais feliz em lugar nenhum do mundo – o
meu mundo era ali. naquele círculo. naquela aliança. afortunado – noite. sou agora
silêncio. escondo-me. tenho medo de ficar sozinho – 23.30. está na hora de voltar a casa. o oceano pacífico
começa à meia noite. RFM – sintonizo a emissora e ouço o mar a ir e a voltar.
as músicas calmas acompanham o corpo numa melancolia-saudade. nunca mais é
manhã – noite. longe dos meus amigos é sempre tão demorada. ler era aliviar o
corpo do peso do relógio – o silêncio também se distrai com o tempo. leio.
leio. leio. só os livros falam comigo. para eles eu estou ali tal e qual como
nos sonhos. sem censura. sem idade. sem correrias. sem tristeza. estou apenas
ali. deitado de bruços na cama a segurar o saber. alumiado por uma lâmpada de
quarenta velas a florir a minha solidão – as noites eram gastas a sonhar com
mundos que não conhecia na companhia do belga hercule poirot. detetive belga. personagem
das histórias de agatha christie – tinha que saber tanto como o meu amigo zé do
gerês. vestia aqueles pulôveres de decote redondo. chegado ao pescoço. que não
deixavam sair as golas da camisa. não gostava do decote em bico. dizia com ar
de quem possui a capacidade de saber todas as coisas do mundo – e eu a ouvi-lo.
ainda hoje não gosto de pulôveres de bico. fiquei com quase tudo dele. era meu
amigo. é meu amigo. será sempre meu amigo – há palavras que nunca lhe disse.
possivelmente irei partir sem as dizer – e o tempo fez de mim o que hoje
escrevo. fez muito pouco. muito pouco. raio de gajo que não serve para nada.
nem para escrever o que sinto. e sinto tanto. nunca deixei de sentir. a
infância nunca se deixa de sentir. nem se perde. nem se esquece. muito menos
aquele desejo de abraçar um futuro idílico – o tempo passou. e agora descubro
que só me trouxe dúvidas. as certezas ficaram todas na juventude
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