.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/03/2012

mal[me]queres de pedra




pablo picasso



uma janela voltada para norte. um quarto. uma cama. uma cruzeta vazia. uma cadeira de pinho presa ao casaco preto que descansa tempo às costas – à esquerda da cabeceira um par de sapatos. novos. pretos também. sola de cartão. aguardam a chegada dos pés – imperturbados. moram de costas para a janela. a vida é apenas feita de sons que ocupam ruas que já não conheço –à direita da cabeceira. um lápis descansa em cima de uma folha de papel que quero acreditar estar em branco. aguarda a mão que um dia esmagará o coração até que a dor do bater termine. ao lado. meia dúzia de molduras. fotos são dor. são corações a bater e todos os corações doem – quero-as vazias. sem olhos. sem sorrisos. sem corpos. sem marcas do tempo. longe da vista longe do coração – quero a cabeceira limpa de tempo de vida. quero amnésia. quero esquecer-me de mim e talvez assim deixe de existir e possa definitivamente partir sem que nenhuma foto chore – ninguém pode chorar pelo que não há. por quem não existe – resta-me o cheiro das fotos que um dia foram pessoas – embelezo o vazio das mesinhas com uma jarra branca presa a malmequeres em agonia – sentado no chão. onde vivo. dobro a camisa branca que também é tempo. abotôo o botão junto ao pescoço. colarinhos engomados. aflitos com a rigidez das mãos. caiem contra mim – alinho as costuras pelas formas do corpo. nem mais nem menos. as costuras são importantes. têm a talha de quem as produziu. os olhos de que quis que encaixassem ás formas de um pano que antes de ser cortado não tinha nome. era vendido a centímetro. estendido num balcão de madeira. o comerciante olhava para mim e dizia: -- o menino só precisa de cinquenta centímetros de pano – e eu digo que quarenta e nove devem chegar – meto as mangas para dentro do peito. escondo as mãos. acerto os punhos. na vertical dos colarinhos e deixo que brilhe o bolso do lado do coração – com um bordado. a letra pequena. onde ainda posso ler: nasceu a tantos dos tantos. do ano do senhor de mil novecentos e qualquer coisa e partiu para a companhia do senhor no ano de dois mil e. porra. os olhos estão uma trampa e a letra está trémula. talvez esteja a chorar. talvez já esteja morto. talvez estas mãos que ainda me abraçam sejam de outro mundo e tenham por lapso. vindo até mim para me dizer que o futuro existe noutra dimensão – talvez a infelicidade seja isto. ser feliz é ser doido. não pensar. não sonhar. não poder morrer porque sempre esteve morto e os mortos não falam e logo tudo o que eu ouço. mesmo quando estou a dormir. são só pássaros a voar. gaivotas à procura de peixe para alimentar a alma e justificar a vida dos peixes – talvez um monstro me leve e se encontre a justificação para a minha vida. talvez um dia. saiba que as cores das paredes são brancas por que sempre vivi num manicómio. onde o castigo é obrigarem-me a escrever. talvez um dia abra a porta e veja penduradas nas árvores todas as palavras que perdi dentro de mim. e por baixo essa gente que se diz minha amiga. espera de braços abertos o fruto que cai dos meus olhos – onde estou se não estou em lado nenhum. onde estão aqueles que um dia disseram que tinham a mesma loucura. viviam no mesmo hospício e eu que sempre disse: não. não somos loucos. somos apenas jovens – agora. janto voltado para o douro. onde a água doce corre para o mar. indivisível. guardada por margens feitas de luz e vozes que não se casam de falar que o tempo e a água caminham como se fosse ali que acabasse tudo. e depois. afinal. é na imensidão do mar ou do tempo que se faz a renovação e tudo começa de novo – não falo da morte. que para mim essa é eterna. falo ainda da vida. da imensidão da vida – tal como a água doce acaba no mar eu acabo a dizer: claro que sim. o mundo é isto. os abraços afinal renovam-se. e a água. como por milagre parou – eu também – só hoje voltei a envelhecer e a ficar doido – talvez seja o contrário. hoje. estou lúcido. os outros é que estão doidos






17/03/2012

para sempre




rafael sanzio




hoje os sinos voltam a tocar e eu aqui com a memória na mão – o tempo passa sempre tão depressa quando o corpo não existe – ao olhar só mesmo a recordação. diria que foi ontem. nas mãos um desejo irracional de te tocar. como se ainda fosse possível – não é –  e o corpo sempre em arrepios por ainda ouvir aquela voz – o papá faleceu – foi assim. e o que era feito de pó partiu para deus. o teu deus. aquele por quem fazias o sinal da cruz pedindo-lhe que te acolhesse no dia de todos os choros – ficamos com as lágrimas a cair para sempre – os sinos tocam março e aquele pedaço de terra que me caiu das mãos ainda vai no ar. nunca te cobriu  – março é o meu mês. o nosso mês. filho és. pai serás. assim como fizeres. assim acharás – é já depois de amanhã o nosso dia – feliz dia do pai



13/03/2012

epistola




* o arco-íris de alain guerra e neraldo de la paz




ainda que encontre o pote de ouro continuarei a querer as cores do arco-íris




* os artistas cubanos alain guerra e neraldo de la paz, que hoje moram nos estados unidos, acharam um jeito bem interessante de reaproveitar roupas que as pessoas não querem mais: eles transformaram blusas, calças e outras peças usadas em arte.



11/03/2012

«HÁ UMA PORTA QUE EU FECHEI ATÉ AO FIM DO MUNDO»




jorge luis borges





Há uma linha de Verlaine que não mais recordarei,
Há uma rua próxima vedada aos meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que eu fechei até ao fim do mundo.
Entre os livros da minha biblioteca (estou a vê-los)
Algum existirá que já não abrirei.
Este verão farei cinquenta anos;
A morte, incessantemente, vai-me desgastando.





Jorge Luis Borges traduzido por Ruy Belo


07/03/2012

ensaio mudo da palavra




jacques-louis david





1.


no cimo da minha igreja os sinos batem a repique. assim se junta gente em falatório. aos meus olhos muita. aos meus ouvidos – as vozes passeiam em círculo. os pés. alinhados pelas conversas. arrastam-se – as conversas são feitas de palavras – quem pode confiar nas palavras que caem de bocas agitadas pelo ir e vir de um sino que nunca saiu do alto daquela torre – há uma multidão anunciada desde o dia em que o padre da paróquia lançou a água benta na primeira pedra – multidão palavra – na multidão há sempre o ruído das palavras. muitas. as mais incautas perdem-se no ar como balões. empurradas pelo som dos sinos. sobem ao céu. para sempre. outras. procuram ouvidos que não encontram – os corpos estão em festa – é a vida. desesperadas caem por terra. moribundas. cansadas da procura. calam-se – há palavras que não nasceram para serem ouvidas – silêncio – rente aos pés. esquecidas pelos corpos em festa contínua. desistem dos sons – calcadas pelo desprezo. serão chão de terra batida – os foguetes estoiram. os corpos dançam. a multidão eufórica abraça-se em palavras-gesto. sem boca. sem lábio. sem som. sem uma única corda vocal – e aquele silêncio-ruído continua abafado pelo toque da banda de música. quarenta músicos. quarenta instrumentos e nestes uns pratos redondos em ouro polido que quando batem um contra o outro. anunciam tempestade – o mau tempo não desmoraliza o homem de bigode que. de batuta na mão. comanda os quarenta músicos e os quarenta instrumentos de fazer música. sem uma única palavra – talvez os quarenta instrumentos toquem por medo à batuta-vara – no compasso da música. aprontada pelos instrumentos. os sorrisos dos quarenta músicos sobem e descem nas pautas de claves de sol ao ritmo da batuta – as palavras-gesto que ninguém ouve insistem em confundir o ruído – palavra. palavra-gesto ou gesto-palavra. tudo serve para construir silêncio nas multidões. nas cidades. nos amigos e até servem os propósitos dos inimigos. estes. já há muito tempo deixaram de se falar – silêncio. tudo se resume ao silêncio das palavras – se escrevo falo para mim. as palavras nascem-me no corpo. ouço-as. como nascente de água. pura. tudo o que é novo é puro. o pecado precisa de tempo para corromper o silêncio – toda a palavra é limpa ao nascer. só na boca ganha som. só ao vento é defeito – como pássaro parte em busca do ouvido. talvez abrigo. talvez acolhimento. amigo. prostituta. bondade. amparo – não entendo nada de palavras – tenho dias em que sou mudo. e como nos filmes mudos só o gesto do corpo. do olhar. do piano que não se vê e corre atrás das personagem em gritos que imagino – como é fácil contrafazer o som dos lábios – palavra. gostava de ser palavra para sempre. mesmo que fosse só em lábios contrafeitos – sou mudo há tanto tempo. à boca as palavras cansadas reclamam descanso – preciso de mergulhar a palavra-corpo numa banheira de água quente. bem quente. um gel de banho com aroma a pinheiro bravo – tonifico o corpo e a palavra-corpo – só o desprendimento traz silêncio –




2.


as palavras só têm uma vida dentro de mim. quando partem nunca mais voltam. são palavras-som. bravas. como o gel de banho. livres como a gaivota que vive dentro do meu pulmão – palavras-som. partem e não voltam – algumas deixam saudades. outras desespero. outras arrependimento. outras incompreensão e outras uma raiva capaz de me levar a morrer afogado nesta água com aroma a pinheiro bravo – tudo na palavra-som é efémero – ingratas. se soubessem o que custa trazê-las à boca – restam-me as palavras-papel. imagino-as minhas para sempre – guardo-as. enquanto durar o papel. a secretária. a gaveta ou a estante castanha escura encostada a uma parede que nunca sei quando irá ruir – tenho medo de tudo o que pode ruir. já ouvi ruir palavras a viver em corpos. corpos a sobreviver em palavras. promessas. amores destruídos por amantes de corpo estilizado a mão cirúrgica – tudo pode ruir dentro das minhas palavras – na semana passada ruiu um prédio no bairro do aleixo pela mão do homem que tinha dinamite – implodiu – implodiu com tudo o que tinha dentro. só as pessoas foram capazes de abandonar o passado – aprendi que com o tempo tudo acaba por desmoronar – nascemos e logo começamos a perder vida. perdemos a infância. a inocência. a juventude. a família começa a ficar curta. depois começamos a perder um tempo que desconhecíamos e por último os sonhos. até que chega o dia em que perdemos o último travo – escrevo para não me esquecer – agora tenho um sonho como martin luther king. sonho que um dia vou ter uma palavra que falará tudo sobre mim. uma palavra que depois de estar impressa deixe de ser minha para sempre – o que não é meu não pode ruir – o que é de todos a todos pertence. e o mundo que é meu também não mais deixará arder pilhas de livros. nem que as palavas sejam bravas. não arderão – não sou escritor – não me parece importante ser o que quer que seja neste país. de gente que não é nada. um dia encontrei uma chave numa rua deserta. guardei-a. nunca abriu coisa nenhuma na minha vida. no entanto continuo a guardar a chave. com a mesma esperança que tinha quando a encontrei. a rua estava deserta e imaginei que a chave tinha caído do céu só para me fazer feliz – não. hoje tenho a certeza de que foi alguém desesperado que ali a deixou. por nunca ter aberto o que quer que fosse com aquela chave. e eu. igual. atormentado com esta chave e sem coragem para a largar no deserto que tenho nesta vida. quero tornar a minha palavra em papel – talvez um dia. depois da minha morte física. no túnel de luz aparecerá uma porta com a fechadura para a minha chave – já não servirá para nada. nem a porta. nem a chave. usarei a chave mas as ruas continuarão desertas e as paredes continuarão a ruir. os livros a implodir e as palavras escritas gritarão –




3.


palavras-papel – palavra-papel. é isto que faço agora. digo-vos o que faço com as palavras que não têm som. palavras que sobrevivem em ruas desertas e que não quero perder. esquecer.– tenho tanto medo de me esquecer da vida que agora a guardo em palavras escritas – o meu pai morreu esquecido de todas as palavras. a doença roubou-lhe tudo. não guardou uma única palavra em papel. só tenho as fotos. a preto e branco. são aquelas onde a voz é mais nítida. nos olhos vejo o corpo a andar. e os lábios a correr em direção a mim dizem palavras que já não entendo. saudade – faltam as palavras-papel – escrevo. escrevo palavra-papel. gosto de escrever em papel. gosto de pensar que sei escolher as teclas negras. onde o branco é o desenho que cada palavra representa para mim. tenho a certeza de que as palavras são o que resta de um som que só eu ouço – tenho tantas palavras ainda por escrever. palavras-papel – um dia todas as palavras que guardo na cabeça serão do mundo. do meu mundo. do mundo que criei. dos amigos inócuos. dos inimigos de maldizer. dos curiosos céticos. dos leitores ocasionais. e dos vampiros de palavras – é por estes que escrevo. compreendem-me. e para me compreender é preciso provar o sangue que cada palavra carrega dentro e por fim adivinhar não o som-papel mas o som-leitura. o som que é feito da vida em papel – palavra – no cimo da montanha mais longínqua da minha vida. imagino-a: em volta da gota que corre encosta abaixo. só há pedras. no topo das montanhas o verde é raro. tudo é cinzento-terra e azul-céu. talvez por isso algumas palavras que escrevo agem como pedras. pedra-cinza-terra – redondas. chegam-me à cabeça redondas como o mundo que habito. como os olhos castanhos presos à concavidade do rosto. mais não são do que dois furos numa caveira. com alguns neurónios loucos por palavras que falam por mim de boca fechada – tudo o que digo é de boca fechada. quando falo não sou eu. sou o que vocês querem ver. sorrisos quase sempre. esperança quase sempre. força quase sempre. determinação quase sempre. projeto quase sempre. futuro quase sempre. confiança quase sempre. sempre gostei da palavra quase. dá sempre uma margem de complacência a quem à minha volta vê o que não sou – quase escrevo. quase morri. quase consegui chegar ao pólo norte quando o que queria mesmo era chegar ao pólo sul. ou quase podíamos ser amigos mas somos quase inimigos – este mundo quase é quase fantástico e quase sempre escrevo coisas que ninguém quer ler – escrevo. escrevo. estes raios em palavras que ninguém ouve. palavras pedra-cinza-terra. importantes para mim que faço do silêncio voz –




4.


as palavras sem arestas nunca se fazem ouvir – só as palavras arremessadas da montanha. pela força de uns braços de um viriato rebelde. é que chegam à minha cabeça com força de se fazerem ruído – atiro-as com a força de uma raiva que não se pode escrever em palavras. só o ar regista a sua trajetória como cometa. à velocidade da luz – o espanto é então geral e a multidão. em pânico. olha agora para a palavra como se esta fosse capaz de matar. nunca lhes passou pela cabeça que esta boca aberta fizesse das palavras som – estupidez. escrevo palavra-bala. palavra-canhão. palavra-míssel. mas por muito que queira exterminar os ruídos que vivem em círculos não o sei fazer – tudo funciona ao contrário em mim. e as palavras que atirei pela minha montanha abaixo são agora palavras-bala a enterram-se no meu corpo. castigo do deus em que ainda acredito [não sei se alguém conhece o meu deus. é meu. criei-o só para mim – um pedaço de madeira. dois pés. duas mãos e quatro pregos – é só meu. só eu sei se faz milagres] – já são tantas as balas perdidas no meu corpo que um dia serei o homem-bala. ou quem sabe possa implodir de pólvora – só falta o rastilho – seria uma morte sem honra. uma milésima de segundo e depois do barulho já não existe nada. só o cheiro a pólvora queimada – nunca mais haveria o som-silêncio. o ruído triunfaria. que é como quem diz o mal triunfaria. nunca mais teríamos sentimento em papel. acabariam os livros. as sebentas. os rascunhos e até os aviõezinhos que na primária lançava com mensagens de amor para uma amiga que ainda não sabia ler. acabaria tudo. até esta minha liberdade envergonhada de vos dizer como guardo os sons. de uma cabeça que não consegue parar de imaginar palavras – estão todos confusos com tanto barulho. as festas sempre criam confusão nos homens que vivem ao som dos sinos que vão e vêm – eu é que não aguento mais estas palavras que andam em círculos arrastadas por corpos de gente que não ouve – eu só quero ser artesão. um homem de um só ofício. quero fazer palavras-peças que em silêncio falam – tenho que as tirar da cabeça. trabalhá-las. dar-lhes forma. cor. sentido. um céu que lhes caia em cima ou uma cama para dormirem um sono seguido. sossegado. com os primeiros raios de sol as vogais abrirão em sons nascidos para lá da faringe. no estômago. ou mais abaixo. nos pés. no dedo grande do pé. aquele que por ser o maior a gente imagina que é o mais importante – quero ser assim. grande como o dedo do meu pé. não fala mas também não precisa. é o maior – ninguém entende a vida dos artesões silenciosos. as multidões não sabem que o silêncio os mantém vivos. mesmo que na sua cabeça sejamos ignorantes. pior. como não usamos boca. não há voz. não há palavras. e sem estas não há inteligência – multidão. já li algures que é nas multidões que nos sentimos mais sós. esse aglomerado de pessoas não sabe que o silêncio é uma forma de vida dolorosa. faz-nos amigos da morte. a morte é silêncio. solidão. ausência de som. de luz. de primavera. de mar. de gaivotas. de maçãs – tal como o sono de shakespeare. também o silêncio é a antecâmara da morte – para a multidão só o bater do martelo é parecido com o bater do coração – o silêncio é sinónimo de nada e tudo o que é nada não tem boca nem alma – tem de haver pregos. muitos. muito barulho. só na casa de deus é que se quer silêncio – pedintes. temos que arrastar a voz pelo meio dos santos a pedir absolvição para o pecado mortal dos que vivem sem voz – o que não entendem é obra do diabo. e só o fogo libertará do mal o homem. caído nas profundezas do inferno – fogueira. inquisição da sociedade – nunca perceberam o porquê de cristo estar seguro por pregos a uma cruz. e agora não percebem por que é que um artesão usa pregos para se manter preso à vida – hoje apetece-me morrer com um prego. não um prego qualquer. não. um prego feito de contrações. preposições. advérbios de lugar. interrogações e negativas na primeira pessoa: eu não sou. eu não escrevo. eu não vivo. eu não serei nunca coração a bater como prego – não morrerei como um prego qualquer. morrerei artesão nesta vida feita de silêncio – para quem ainda não sabe. quero dizer que tenho alma. bem sei que é uma alma de merda. que quer um dia morrer por dá-cá-aquela-palha. já lhe tenho dito que não pode ser. temos que morrer por dá cá este prego – não posso ser ingrato. afinal de contas foi este meu prego que. em silêncio. me trouxe até ao dia de hoje. trouxe-me até vós – talvez aquela chave que um dia encontrei numa rua deserta sirva para que aqueles que me leem possam decifrar o que as minhas palavras em ruína dizem





04/03/2012

a4




cezanne



a noite nas mãos – escrevo – procuro nas palavras o que deus me deu de poeta. digo poeta porque não sei dizer mais nenhum nome que traga nas palavras dor e na leitura amor – inclinado. gosto do que penso e penso: um dia terei uma palavra só minha. mais comprida do que o meu nome – sou da plebe – fonemas? não interessa sou leitura. aconchego – escrevo – quem sabe se com a ajuda de um gnomo um dia possa ser uma folha a4. dobrada em quatro. guardada no fundo de um bolso com quatro  cantos – casaco –  casaco gasto pelo tempo. pela moda. sem estação. sem nenhum dia especial para dizer: vesti – um casaco – um casaco sem nome. remendado. quase trapo. a forma é-lhe dada pela cruzeta e pelo passado: cotovelos puídos. punhos esfiados. cor desbotada. tudo isto preso a um guarda-vestidos que já nada guarda – agarrados a este nada. só eu e o casaco. um quer ser escritor o outro. quer dar um passeio num corpo com profissão – casaco de escritor – como se o casaco de um escritor guardasse. por dentro. a magia dos ilusionistas e num passe de pura magia soubesse mudar o destino de um casaco sem nome – destino! quem pode mudar o destino? ninguém – não há gaivotas a sair de dentro de cartolas – só poderei sobreviver nos olhos dos que guardam folhas a4 – se um dia esta gente de vento tiver sorte. dirá: desde que meti esta folhinha a4 no bolso a vida é uma gaivota – sempre fui gaivota – nesta noite de janela longa. as mãos já  passaram além de taprobana – seria assim que diria camões? quero pensar que sim. afinal sou lusitano e os lusitanos sempre gostaram de viajar nem que seja numa folha de  papel a4 – noite. sou noite – a noite nunca dorme. e é cada vez mais inversamente proporcional à minha vontade de escrever – muita –