1.
no cimo da minha igreja os sinos batem a
repique. assim se junta gente em falatório. aos meus olhos muita. aos meus
ouvidos. uma turba – as vozes passeiam em círculo. os pés. alinhados pelas
conversas. arrastam dores invisíveis – as
conversas são feitas de palavras – quem pode confiar nas palavras que caem de
bocas sacudidas pelo ir e vir de um sino que nunca saiu do alto daquela torre – há uma multidão anunciada desde o dia em
que o padre da paróquia lançou a água benta na primeira pedra – multidão
palavra – na multidão há sempre o ruído das palavras. muitas. as mais incautas perdem-se
no ar como balões. empurradas pelo som dos sinos. sobem ao céu. para sempre. outras.
procuram ouvidos que não encontram – os corpos estão em festa – é a vida.
desesperadas. caem por terra. moribundas. exaustas da procura. calam-se – há
palavras que não nasceram para serem ouvidas – silêncio. calam-se antes de
ecoar – rente aos pés. esquecidas pelos corpos em festa contínua.
desistem dos sons – calcadas pelo desprezo. serão chão de terra batida a letras
– os foguetes estoiram. os corpos dançam. a multidão eufórica abraça-se em
palavras-gesto. sem boca. sem lábio. sem som. sem uma única corda vocal – e
aquele silêncio-ruído continua abafado pelo toque da banda de música. quarenta
músicos. quarenta instrumentos e nestes uns pratos redondos em ouro polido que
quando batem um contra o outro. anunciam tempestade – o mau tempo não
desmoraliza o homem de bigode que. de batuta na mão. comanda os quarenta
músicos e os quarenta instrumentos de fazer música. sem uma única palavra – talvez
os quarenta instrumentos toquem por medo à batuta-vara que os domina – no compasso
da música. rígida pelos instrumentos. os sorrisos dos quarenta músicos sobem e
descem nas pautas de claves de sol ao ritmo da batuta – as palavras-gesto que
ninguém ouve insistem em confundir o ruído – palavra. palavra-gesto ou gesto-palavra.
tudo serve para construir silêncio nas multidões. nas cidades. nos amigos. até os
inimigos já há muito tempo deixaram de se falar – silêncio. tudo se resume ao
silêncio das palavras – se escrevo falo
para mim. as palavras nascem-me no corpo. ouço-as. como nascente de água. pura.
tudo o que é novo é puro. o pecado precisa de
tempo para corromper o silêncio – toda a palavra nasce limpa. só na boca ganha som.
só no vento se perde – como pássaro. parte em busca do ouvido. talvez abrigo.
talvez acolhimento. amigo. prostituta. bondade. amparo – não entendo nada de
palavras – tenho dias em que sou mudo e. como nos filmes mudos. só resta o
gesto do corpo. do olhar. o piano invisível que corre atrás da personagem em
gritos que imagino insuportáveis – como é fácil contrafazer o som dos lábios – palavra.
gostava de ser palavra para sempre. mesmo que fosse só em lábios contrafeitos –
sou mudo há tanto tempo. à boca as palavras cansadas reclamam descanso –
preciso de mergulhar a palavra-corpo numa banheira de água quente. bem quente. deixar
que o vapor de pinheiro bravo liberte os sentidos – tonifico o corpo e a palavra-corpo – só o desprendimento traz
silêncio
2.
as palavras só têm uma vida dentro de
mim. quando partem. nunca mais voltam. são palavras-som. bravas como o pinheiro
do gel de banho. livres como a gaivota que vive dentro do meu pulmão – palavras-som.
partem e não voltam – algumas deixam saudades. outras. desespero. outras.
arrependimento. outras. incompreensões. e outras. esta raiva que me afoga no aroma
bravio da água – tudo na palavra-som é efémero – ingratas. se soubessem o que
custa trazê-las à boca – restam-me as palavras-papel. imagino-as minhas para
sempre – guardo-as. enquanto houver papel. secretária. gaveta. ou a estante
castanha escura encostada a uma parede que pode ruir a qualquer momento – tenho
medo de tudo o que pode ruir. já vi palavras desmoronarem-se dentro de corpos. corpos
a agonizar sem uma única palavra. promessas. amores destruídos por amantes de
corpo estilizado pela mão da cirurgia – tudo pode ruir dentro das minhas
palavras – na semana passada ruiu um prédio no bairro do aleixo. abatido pela
mão do homem que segurava dinamite – implodiu – implodiu com tudo o que tinha
dentro. só as pessoas foram capazes de abandonar o passado – aprendi que com o
tempo tudo acaba por desmoronar – nascemos e logo começamos a perder vida. perdemos
a infância. a inocência. a juventude. a família encolhe. o tempo escapa. os
sonhos. dissipam-se. até que chega o dia em que perdemos a última luz-palavra –
escrevo para não me esquecer – agora tenho um sonho. como martin luther king.
sonho que um dia uma única palavra me resumirá. uma palavra que depois de estar
impressa deixe de ser minha para sempre – o que não é meu não pode ruir – o
que é de todos. a todos pertence. e no meu mundo. os livros não arderão mais. nem
mesmo as palavras mais bravas se deixarão consumir pelas chamas – não sou
escritor – não me parece importante ser o que quer que seja neste país de gente
que não é nada – um dia encontrei uma chave numa rua deserta. guardei-a. nunca
abriu nada. no entanto continuo a guardar a chave. com a mesma esperança que
tinha quando a encontrei. a rua estava deserta e imaginei que a chave tinha caído
do céu só para me fazer feliz – não. hoje tenho a certeza de que foi alguém
desesperado que ali a deixou. sem nunca ter aberto porta alguma. e eu igual. atormentado
com esta chave. sem coragem para largá-la no deserto que tenho nesta vida.
quero tornar a minha palavra em papel – talvez um dia. depois da minha morte
física. uma parte me espere no túnel da luz. nela. a fechadura que nunca
encontrei – já não servirá para nada. nem a porta. nem a chave. usarei a chave.
mas as ruas continuarão desertas. as paredes continuarão a ruir. os livros a
implodir e as palavras escritas desaparecerão na agonia do silêncio
3.
palavra-papel – palavra-papel. é isto que resta de
mim. digo-vos o que faço com as palavras que não têm som. palavras que
sobrevivem em ruas desertas e que não quero perder. esquecer – tenho tanto medo
de me esquecer da vida que só sobrevive no que escrevo – o meu pai morreu
esquecido de todas as palavras. a doença roubou-lhe tudo. não deixou uma única
palavra escrita. só tenho as fotos. a preto e branco. as únicas onde a voz ainda
se ouve. nos olhos vejo o corpo a andar. e os lábios em movimento. correndo em direção
a mim. a dizer palavras que já não entendo. saudade – faltam as palavras-papel
– escrevo. escrevo palavra-papel. gosto de escrever em papel. gosto de pensar
que sei escolher as teclas negras. onde o branco é o desenho que cada palavra
representa para mim. tenho a certeza de que as palavras são o eco de um som que
só eu consigo ouvir – tenho tantas palavras ainda por escrever – palavras-papel.
um dia. todas as que guardo na cabeça pertencerão ao mundo. do meu mundo. do mundo
que criei. para os amigos inócuos. os inimigos de maldizer. os curiosos céticos.
os leitores ocasionais e dos vampiros de palavras – é por estes que escrevo.
compreendem-me. e para me compreender é preciso provar o sangue que cada
palavra carrega dentro de si. e por fim. adivinhar não o som-papel. mas o som-leitura.
o som onde a vida se imprime – palavra – no cimo da montanha mais longínqua da
minha vida. imagino-a: rodeada pela gota que escorre encosta abaixo. o verde
torna-se escasso à medida que subo. e tudo se reduz a cinzento-terra e
azul-céu. talvez por isso algumas palavras que escrevo ajam como pedras –
pedra-cinza-terra – redondas. chegam-me à cabeça redondas como o mundo que
habito. como os olhos castanhos presos à concavidade do rosto. mais não são do
que dois furos numa caveira onde alguns neurónios enlouquecem por palavras que
falam por mim sem som – tudo o que digo é de boca fechada. quando falo não sou
eu. sou o que vocês querem ver. sorrisos quase sempre. esperança quase sempre.
força quase sempre. determinação quase sempre. projeto quase sempre. futuro
quase sempre. confiança quase sempre. sempre gostei da palavra quase. dá sempre
uma margem de complacência a quem à minha volta vê o que não sou – quase
escrevo. quase morri. quase consegui chegar ao polo norte quando o que queria
mesmo era chegar ao polo sul. ou quase podíamos ser amigos. mas somos quase
inimigos – este mundo é quase fantástico e quase sempre escrevo para ninguém –
escrevo. escrevo este raio o parta em palavras que ninguém ouve – palavras
pedra-cinza-terra. urgentes para mim. moldadas no silêncio para se tornarem voz
4.
as palavras sem arestas nunca se fazem
ouvir – só as palavras arremessadas da montanha. pela força dos braços de um
viriato rebelde. chegam à minha cabeça com a força de se fazerem ruído –
atiro-as com a força de uma raiva que não cabe em palavras. só o ar regista a
sua trajetória como um cometa. à velocidade da luz – o espanto é então geral. a multidão. em pânico.
olha agora para a palavra como se esta fosse lâmina. nunca lhes passou pela
cabeça que esta boca aberta transformasse as palavras som – estupidez. escrevo
palavra-bala. palavra-canhão. palavra-míssil. mas por muito que queira. não sei
exterminar os ruídos que vivem em mim não sei como fazê-lo – tudo funciona ao
contrário em mim. e as palavras que atirei montanha abaixo são agora palavras-bala
enterradas no meu corpo. castigo do deus em que ainda acredito. não sei se
alguém conhece o meu deus. é meu. criei-o só para mim: um pedaço de madeira. dois
pés. duas mãos e quatro pregos – é só meu. só eu sei quando e se faz milagres –
já são tantas as balas perdidas no meu corpo que um dia serei o homem-bala. ou
quem sabe um corpo prestes a implodir de pólvora – só falta o rastilho – seria
uma morte sem honra. um milésimo de segundo. depois do barulho. nada. só o
cheiro a pólvora queimada – nunca mais haveria som-silêncio. o ruído triunfaria
– que é como quem diz. o mal triunfaria. nunca mais teríamos sentimento em
papel. acabariam os livros. as sebentas. os rascunhos e até os aviõezinhos de
papel que lançava na primária. cheios de mensagens de amor para uma amiga que
ainda não sabia ler – acabaria tudo. até esta minha liberdade envergonhada de
vos contar como guardo os sons de uma cabeça que não consegue parar de imaginar
palavras – estão todos confusos com tanto barulho. as festas sempre confundem os
homens que vivem ao som dos sinos que vão e vêm – eu é que não aguento mais
estas palavras que giram em círculos dentro do cérebro. arrastadas por corpos
de gente que não ouve – eu só quero ser artesão. um homem de um só ofício.
quero fazer palavras-peças que. em silêncio. falam – tenho que as tirar da
cabeça. trabalhá-las. dar-lhes forma. cor. sentido. um céu que lhes caia em
cima. ou uma cama onde possa dormir um sono longo. sossegado. e com os
primeiros raios de sol as vogais abrirão em sons nascidos para lá da faringe. do
estômago. ou mais abaixo. dos pés. do dedo grande do pé – aquele que. por ser o
maior. imaginamos ser o mais importante – quero ser assim. grande como o dedo
do meu pé. não fala. não precisa. mas é o maior – ninguém entende a vida dos artesãos
silenciosos. as multidões não sabem que o silêncio os mantém vivos. mesmo que
na sua cabeça sejamos ignorantes. pior. como não usamos boca. não há voz. não
há palavras. não há inteligência – multidão – é no meio dela que nos sentimos
mais sós. esse aglomerado de pessoas não sabe que o silêncio é uma forma de
vida dolorosa. faz-nos amigos da morte. e a morte é silêncio. solidão. ausência
de som. de luz. de primavera. de mar. de gaivotas. de maçãs – tal como o sono
de shakespeare.
também o silêncio é a antecâmara da morte – para a multidão só o bater do
martelo se assemelha com o bater do coração – o silêncio é sinónimo de nada. e
tudo o que é nada não tem boca nem alma – tem de haver pregos. muitos. muito
barulho. só na casa de deus se quer silêncio – pedintes. temos que arrastar a
voz pelo meio dos santos a pedir absolvição para o pecado mortal dos que vivem
sem voz – o que não se entende é sempre obra do diabo. e só o fogo libertará do
mal o homem caído nas profundezas do inferno – fogueira. inquisição da
sociedade – nunca perceberam o porquê de cristo estar seguro por pregos a uma
cruz. e agora não percebem por que é que um artesão usa pregos para se manter
preso à vida – hoje apetece-me morrer com um prego. não um prego qualquer. não.
um prego feito de contrações. preposições. advérbios de lugar. interrogações. negativas
na primeira pessoa – eu não sou. eu não escrevo. eu não vivo. eu não serei nunca
um coração a bater como prego – não morrerei com um prego qualquer. morrerei com
prego de artesão nesta vida feita de silêncio – para quem ainda não sabe. quero
dizer que tenho alma. bem sei que é uma alma de merda. que um dia quer morrer
por dá-cá-aquela-palha – já lhe tenho dito que não pode ser. temos que morrer
por dá cá este prego – não posso ser ingrato. afinal de contas foi este meu
prego que. em silêncio. me trouxe até ao dia de hoje. trouxe-me até vós – talvez
aquela chave que um dia encontrei numa
rua deserta seja a única capaz de abrir as palavras em ruína que deixo para
quem me lê
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