.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

07/03/2012

ensaio mudo da palavra




jacques-louis david





1.


no cimo da minha igreja os sinos batem a repique. assim se junta gente em falatório. aos meus olhos muita. aos meus ouvidos – as vozes passeiam em círculo. os pés. alinhados pelas conversas. arrastam-se – as conversas são feitas de palavras – quem pode confiar nas palavras que caem de bocas agitadas pelo ir e vir de um sino que nunca saiu do alto daquela torre – há uma multidão anunciada desde o dia em que o padre da paróquia lançou a água benta na primeira pedra – multidão palavra – na multidão há sempre o ruído das palavras. muitas. as mais incautas perdem-se no ar como balões. empurradas pelo som dos sinos. sobem ao céu. para sempre. outras. procuram ouvidos que não encontram – os corpos estão em festa – é a vida. desesperadas caem por terra. moribundas. cansadas da procura. calam-se – há palavras que não nasceram para serem ouvidas – silêncio – rente aos pés. esquecidas pelos corpos em festa contínua. desistem dos sons – calcadas pelo desprezo. serão chão de terra batida – os foguetes estoiram. os corpos dançam. a multidão eufórica abraça-se em palavras-gesto. sem boca. sem lábio. sem som. sem uma única corda vocal – e aquele silêncio-ruído continua abafado pelo toque da banda de música. quarenta músicos. quarenta instrumentos e nestes uns pratos redondos em ouro polido que quando batem um contra o outro. anunciam tempestade – o mau tempo não desmoraliza o homem de bigode que. de batuta na mão. comanda os quarenta músicos e os quarenta instrumentos de fazer música. sem uma única palavra – talvez os quarenta instrumentos toquem por medo à batuta-vara – no compasso da música. aprontada pelos instrumentos. os sorrisos dos quarenta músicos sobem e descem nas pautas de claves de sol ao ritmo da batuta – as palavras-gesto que ninguém ouve insistem em confundir o ruído – palavra. palavra-gesto ou gesto-palavra. tudo serve para construir silêncio nas multidões. nas cidades. nos amigos e até servem os propósitos dos inimigos. estes. já há muito tempo deixaram de se falar – silêncio. tudo se resume ao silêncio das palavras – se escrevo falo para mim. as palavras nascem-me no corpo. ouço-as. como nascente de água. pura. tudo o que é novo é puro. o pecado precisa de tempo para corromper o silêncio – toda a palavra é limpa ao nascer. só na boca ganha som. só ao vento é defeito – como pássaro parte em busca do ouvido. talvez abrigo. talvez acolhimento. amigo. prostituta. bondade. amparo – não entendo nada de palavras – tenho dias em que sou mudo. e como nos filmes mudos só o gesto do corpo. do olhar. do piano que não se vê e corre atrás das personagem em gritos que imagino – como é fácil contrafazer o som dos lábios – palavra. gostava de ser palavra para sempre. mesmo que fosse só em lábios contrafeitos – sou mudo há tanto tempo. à boca as palavras cansadas reclamam descanso – preciso de mergulhar a palavra-corpo numa banheira de água quente. bem quente. um gel de banho com aroma a pinheiro bravo – tonifico o corpo e a palavra-corpo – só o desprendimento traz silêncio –




2.


as palavras só têm uma vida dentro de mim. quando partem nunca mais voltam. são palavras-som. bravas. como o gel de banho. livres como a gaivota que vive dentro do meu pulmão – palavras-som. partem e não voltam – algumas deixam saudades. outras desespero. outras arrependimento. outras incompreensão e outras uma raiva capaz de me levar a morrer afogado nesta água com aroma a pinheiro bravo – tudo na palavra-som é efémero – ingratas. se soubessem o que custa trazê-las à boca – restam-me as palavras-papel. imagino-as minhas para sempre – guardo-as. enquanto durar o papel. a secretária. a gaveta ou a estante castanha escura encostada a uma parede que nunca sei quando irá ruir – tenho medo de tudo o que pode ruir. já ouvi ruir palavras a viver em corpos. corpos a sobreviver em palavras. promessas. amores destruídos por amantes de corpo estilizado a mão cirúrgica – tudo pode ruir dentro das minhas palavras – na semana passada ruiu um prédio no bairro do aleixo pela mão do homem que tinha dinamite – implodiu – implodiu com tudo o que tinha dentro. só as pessoas foram capazes de abandonar o passado – aprendi que com o tempo tudo acaba por desmoronar – nascemos e logo começamos a perder vida. perdemos a infância. a inocência. a juventude. a família começa a ficar curta. depois começamos a perder um tempo que desconhecíamos e por último os sonhos. até que chega o dia em que perdemos o último travo – escrevo para não me esquecer – agora tenho um sonho como martin luther king. sonho que um dia vou ter uma palavra que falará tudo sobre mim. uma palavra que depois de estar impressa deixe de ser minha para sempre – o que não é meu não pode ruir – o que é de todos a todos pertence. e o mundo que é meu também não mais deixará arder pilhas de livros. nem que as palavas sejam bravas. não arderão – não sou escritor – não me parece importante ser o que quer que seja neste país. de gente que não é nada. um dia encontrei uma chave numa rua deserta. guardei-a. nunca abriu coisa nenhuma na minha vida. no entanto continuo a guardar a chave. com a mesma esperança que tinha quando a encontrei. a rua estava deserta e imaginei que a chave tinha caído do céu só para me fazer feliz – não. hoje tenho a certeza de que foi alguém desesperado que ali a deixou. por nunca ter aberto o que quer que fosse com aquela chave. e eu. igual. atormentado com esta chave e sem coragem para a largar no deserto que tenho nesta vida. quero tornar a minha palavra em papel – talvez um dia. depois da minha morte física. no túnel de luz aparecerá uma porta com a fechadura para a minha chave – já não servirá para nada. nem a porta. nem a chave. usarei a chave mas as ruas continuarão desertas e as paredes continuarão a ruir. os livros a implodir e as palavras escritas gritarão –




3.


palavras-papel – palavra-papel. é isto que faço agora. digo-vos o que faço com as palavras que não têm som. palavras que sobrevivem em ruas desertas e que não quero perder. esquecer.– tenho tanto medo de me esquecer da vida que agora a guardo em palavras escritas – o meu pai morreu esquecido de todas as palavras. a doença roubou-lhe tudo. não guardou uma única palavra em papel. só tenho as fotos. a preto e branco. são aquelas onde a voz é mais nítida. nos olhos vejo o corpo a andar. e os lábios a correr em direção a mim dizem palavras que já não entendo. saudade – faltam as palavras-papel – escrevo. escrevo palavra-papel. gosto de escrever em papel. gosto de pensar que sei escolher as teclas negras. onde o branco é o desenho que cada palavra representa para mim. tenho a certeza de que as palavras são o que resta de um som que só eu ouço – tenho tantas palavras ainda por escrever. palavras-papel – um dia todas as palavras que guardo na cabeça serão do mundo. do meu mundo. do mundo que criei. dos amigos inócuos. dos inimigos de maldizer. dos curiosos céticos. dos leitores ocasionais. e dos vampiros de palavras – é por estes que escrevo. compreendem-me. e para me compreender é preciso provar o sangue que cada palavra carrega dentro e por fim adivinhar não o som-papel mas o som-leitura. o som que é feito da vida em papel – palavra – no cimo da montanha mais longínqua da minha vida. imagino-a: em volta da gota que corre encosta abaixo. só há pedras. no topo das montanhas o verde é raro. tudo é cinzento-terra e azul-céu. talvez por isso algumas palavras que escrevo agem como pedras. pedra-cinza-terra – redondas. chegam-me à cabeça redondas como o mundo que habito. como os olhos castanhos presos à concavidade do rosto. mais não são do que dois furos numa caveira. com alguns neurónios loucos por palavras que falam por mim de boca fechada – tudo o que digo é de boca fechada. quando falo não sou eu. sou o que vocês querem ver. sorrisos quase sempre. esperança quase sempre. força quase sempre. determinação quase sempre. projeto quase sempre. futuro quase sempre. confiança quase sempre. sempre gostei da palavra quase. dá sempre uma margem de complacência a quem à minha volta vê o que não sou – quase escrevo. quase morri. quase consegui chegar ao pólo norte quando o que queria mesmo era chegar ao pólo sul. ou quase podíamos ser amigos mas somos quase inimigos – este mundo quase é quase fantástico e quase sempre escrevo coisas que ninguém quer ler – escrevo. escrevo. estes raios em palavras que ninguém ouve. palavras pedra-cinza-terra. importantes para mim que faço do silêncio voz –




4.


as palavras sem arestas nunca se fazem ouvir – só as palavras arremessadas da montanha. pela força de uns braços de um viriato rebelde. é que chegam à minha cabeça com força de se fazerem ruído – atiro-as com a força de uma raiva que não se pode escrever em palavras. só o ar regista a sua trajetória como cometa. à velocidade da luz – o espanto é então geral e a multidão. em pânico. olha agora para a palavra como se esta fosse capaz de matar. nunca lhes passou pela cabeça que esta boca aberta fizesse das palavras som – estupidez. escrevo palavra-bala. palavra-canhão. palavra-míssel. mas por muito que queira exterminar os ruídos que vivem em círculos não o sei fazer – tudo funciona ao contrário em mim. e as palavras que atirei pela minha montanha abaixo são agora palavras-bala a enterram-se no meu corpo. castigo do deus em que ainda acredito [não sei se alguém conhece o meu deus. é meu. criei-o só para mim – um pedaço de madeira. dois pés. duas mãos e quatro pregos – é só meu. só eu sei se faz milagres] – já são tantas as balas perdidas no meu corpo que um dia serei o homem-bala. ou quem sabe possa implodir de pólvora – só falta o rastilho – seria uma morte sem honra. uma milésima de segundo e depois do barulho já não existe nada. só o cheiro a pólvora queimada – nunca mais haveria o som-silêncio. o ruído triunfaria. que é como quem diz o mal triunfaria. nunca mais teríamos sentimento em papel. acabariam os livros. as sebentas. os rascunhos e até os aviõezinhos que na primária lançava com mensagens de amor para uma amiga que ainda não sabia ler. acabaria tudo. até esta minha liberdade envergonhada de vos dizer como guardo os sons. de uma cabeça que não consegue parar de imaginar palavras – estão todos confusos com tanto barulho. as festas sempre criam confusão nos homens que vivem ao som dos sinos que vão e vêm – eu é que não aguento mais estas palavras que andam em círculos arrastadas por corpos de gente que não ouve – eu só quero ser artesão. um homem de um só ofício. quero fazer palavras-peças que em silêncio falam – tenho que as tirar da cabeça. trabalhá-las. dar-lhes forma. cor. sentido. um céu que lhes caia em cima ou uma cama para dormirem um sono seguido. sossegado. com os primeiros raios de sol as vogais abrirão em sons nascidos para lá da faringe. no estômago. ou mais abaixo. nos pés. no dedo grande do pé. aquele que por ser o maior a gente imagina que é o mais importante – quero ser assim. grande como o dedo do meu pé. não fala mas também não precisa. é o maior – ninguém entende a vida dos artesões silenciosos. as multidões não sabem que o silêncio os mantém vivos. mesmo que na sua cabeça sejamos ignorantes. pior. como não usamos boca. não há voz. não há palavras. e sem estas não há inteligência – multidão. já li algures que é nas multidões que nos sentimos mais sós. esse aglomerado de pessoas não sabe que o silêncio é uma forma de vida dolorosa. faz-nos amigos da morte. a morte é silêncio. solidão. ausência de som. de luz. de primavera. de mar. de gaivotas. de maçãs – tal como o sono de shakespeare. também o silêncio é a antecâmara da morte – para a multidão só o bater do martelo é parecido com o bater do coração – o silêncio é sinónimo de nada e tudo o que é nada não tem boca nem alma – tem de haver pregos. muitos. muito barulho. só na casa de deus é que se quer silêncio – pedintes. temos que arrastar a voz pelo meio dos santos a pedir absolvição para o pecado mortal dos que vivem sem voz – o que não entendem é obra do diabo. e só o fogo libertará do mal o homem. caído nas profundezas do inferno – fogueira. inquisição da sociedade – nunca perceberam o porquê de cristo estar seguro por pregos a uma cruz. e agora não percebem por que é que um artesão usa pregos para se manter preso à vida – hoje apetece-me morrer com um prego. não um prego qualquer. não. um prego feito de contrações. preposições. advérbios de lugar. interrogações e negativas na primeira pessoa: eu não sou. eu não escrevo. eu não vivo. eu não serei nunca coração a bater como prego – não morrerei como um prego qualquer. morrerei artesão nesta vida feita de silêncio – para quem ainda não sabe. quero dizer que tenho alma. bem sei que é uma alma de merda. que quer um dia morrer por dá-cá-aquela-palha. já lhe tenho dito que não pode ser. temos que morrer por dá cá este prego – não posso ser ingrato. afinal de contas foi este meu prego que. em silêncio. me trouxe até ao dia de hoje. trouxe-me até vós – talvez aquela chave que um dia encontrei numa rua deserta sirva para que aqueles que me leem possam decifrar o que as minhas palavras em ruína dizem





Sem comentários:

Enviar um comentário