sábado em saturno – gosto
do sábado. há uma sensação de nada: não trabalhas porque não há nada para fazer;
bebes porque nada te faz mal; vais dançar porque nada te prende em casa;
deitas-te de manhã porque nada é melhor do acordares depois do almoço; sentas-te
no sofá porque nada como estar em nossa casa; olhas a tua companheira porque
nada como tê-la ao teu lado – continuo apaixonado pela mulher que escolhi para
envelhecer. os anos vão passando. e nada me faz não gostar ainda mais hoje do
que ontem – às vezes a simplicidade do nada também pode ser amor: amor respeito;
amor admiração; amor desejo; amor da minha vida; resumindo. amor absoluto: nada
como olhá-la; nada como a ter nos braços; nada como deitar a cabeça no seu colo;
e nada como saber que já estivemos juntos mais de três mil duzentos sábados; e
em todos eles. percebi. que não há nada como só se ter um amor na vida; nada
como amar a mãe dos meus filhos; nada como continuar a envelhecer a seu lado; e
nada como os meus filhos saberem que sou [somos] homem de uma única mulher –
para hesíodo o amor é uma força que move as coisas. sendo capaz de uni-las e
mantê-las juntas – por isso digo: nada como ser hesíodo no século XXI. viver em
amor. unido à mesma mulher desde os seus quinze anos
domingo
em sol – o domingo
ilumina-se. é dia do sol. e a minha casa levanta-se. agiganta-se em aleluias. as
vozes alegram-se. a cozinha incendeia-se. as cadeiras organizam-se à volta da
mesa. e estende-se uma toalha mais branca do que branco – por cada prato uma
hóstia sagrada. nossa – saudámo-nos em alegria e gratidão: isto é o corpo da
nossa família. carne da nossa carne – depois. levantamos o cálice da vida. da
nossa e dos nossos antepassados. e bebemos o sangue do nosso sangue – saudámo-nos.
agora reconhecidos à memória – a família não se esquece e não se renega.
aceitamo-nos como somos e reconhecemos a nossa missão terrena – porque serei
sempre filho. pai. e também avô. este é o meu legado: a comunhão – aos domingos
estamos todos à mesa. alumiados pela luz dos meus pais. que nos guarda e
protege de todos os males do mundo – a família. somos nós. e o nosso universo
“sendo os grandes livros,
mesmo os meio grandes livros, mesmo os bons livros, mesmo os meio bons livros,
extremamente raros. Provavelmente, seria, na melhor das hipóteses, uma mera
curiosidade. Poucos anos depois de ter sido publicado, as estantes da «Curiosidade»
de todos os alfarrabistas do país estariam atravancadas com exemplares do
livro. Seja como for, decidi, se há coisas que a humanidade tem que chegue, que
chegue e que sobre, são livros. Ao pensar nas cataratas de livros, nos niágaras
de livros, nos caudalosos rios de livros, nos oceanos de livros, nas toneladas
e camiões e comboios de livros que naquele momento brotavam das tipografias de
todo o mundo, sendo que só pouquíssimos deles mereceriam a pena que lhe
pegássemos, que os apreciássemos, já nem falo em os lermos, comecei a pensar
que era digno de admiração o ele não ter escrito o livro. Um livro a menos a
atravancar o mundo, um livro a menos a ocupar espaço, a apanhar pó e a passar,
sem ser lido, das livrarias para os lares e daí para os alfarrabistas, para as
lojas de velharias, para as lojas dos trezentos, e daí para outros lares, e
para outros alfarrabistas, e lojas de velharias, lojas de trezentos, e daí para
novos lares, e assim ad infinitum.” – [o segredo de joe gould de joseph
mitchell – pág.167]
II.
acabei de ler
este fantástico livro. magistralmente bem escrito. divertidíssimo. “uma joia de
ternura e de observação bem-humorada”. com prefácio do nosso mágico das
palavras. antónio lobo antunes – poderia dar-vos a ler imensas passagens desta
obra de “pungente emoção”. mas resolvi trazer este pequeno excerto sobre a
feitura de livros a granel – joseph. em poucas palavras. mostrou como é efémera
a edição de livros por parte de autores duvidosos. e tal como nos EUA em 1964.
também hoje no nosso país o apocalipse da maior parte dos livros é no
alfarrabista – editar livros está na moda. começasse a escrever e catrapus.
mais um livro para a fornalha. é como quem mete castanhas na assadeira – escrevo
há mais de vinte anos. várias horas diárias. e sei. agora muito melhor. que tal
como outro qualquer ofício nobre. é preciso tempo para nos tornarmos num
suficiente artesão – só o tempo nos torna sábios. amadurece as palavras.
equilibra-as. ajuda-as a fazer sentido. a tornarem-se não apenas pele do nobre
artesão. mas também do nobre leitor – durante muito anos resisti a editar o que
quer que fosse. fiz apenas parte de duas antologias poéticas. com dois poemas.
juntamente com outros camaradas – nunca estive certo desta participação. mas às
vezes as pessoas valem essa dúvida. não estamos no mundo sozinhos – rapidamente
percebi que a vaidade na escrita vale muito menos do que uma peça de roupa
nova. esta ainda pode ser usada várias vezes. um livro mau nunca passa do dia
da sua apresentação – o que temos nos dias de hoje são uns quantos vaidosos. desmiolados.
convencidos de uma arte que não tem. preguiçosos e arrogantes – sem nunca testarem
os seus limites. sem esforço. sem dedicação. sem amor. sem dor. querem-se transformar
em escritores. querem que o livro os catapulte para o interior de uma parcela
privilegiada da sociedade: as elites de uma cultura intelectual – o livro passa
a ser o seu porta-estandarte. a chave para abrir todas as conversas. simula
paixões e emoções. é a sua ferramenta para se suportar na inutilidade – “o
vaidoso necessita dos demais. busca neles a confirmação da ideia que quer ter
de si mesmo”* – ninguém é culto por editar um livro. ninguém é escritor por
editar um livro. talvez para os tontos. ou familiares babados – mas o grave. e incrivelmente.
é que a maior parte destes escritores sprinters. correm cem metros e descansam
anos. acreditam mesmo que são familiares do rei midas da escrita. tudo em que
tocam fica obra poética – escrevem meia dúzia de coisas à pressa. geralmente
poemas. porque no seu entender. é mais fácil fazer acreditar alguma alminha perdida.
com meia dúzia de palavras enganchadas – e que de repente. como se fosse uma
raspadinha. saca milhões. saca poemas como mais ninguém – tontos e vaidosos – mas
a verdade. é que se não vivessem na soberba não editariam. teriam pudor – desventurados.
não sabem que escrever um poema com mão e cabeça não é para quem quer. é mesmo
para quem sabe. e para quem dedica corpo e alma à nobre arte da escrita. do
sacrifício. da leitura. da pesquisa. e principalmente da reflexão – por isso é
que escrevo prosa e raramente me aventuro em poesia – um mau escritor também
deve editar a sua obra. mas no meu entender tem que o fazer ao fim de um
percurso: o das pedras. que não se faz. vai-se fazendo dia a dia. ano a ano.
com centenas de textos pensados. centenas de poemas maturados. abertos ao ar. a
respirar crescimento. a implorar respeito – sou um escritor amador. ganhei
coragem e decidi editar este ano o meu primeiro livro. em prosa. e o que julgo
saber é que por muito mau que os meus textos sejam. mereço respeito. fiz de
tudo para ser o melhor possível. passei milhares de horas a escrever. milhares
a corrigir. outras tantas a ler para mim. a pedir luz e bom senso. a pedir
perdão pela minha ousadia a todos aqueles que honraram a nossa literatura ao
longo dos tempos – ganhei coragem. mas não vou iludido. vou apenas entregar aos
meus filhos um pouco de mim. vou pedir-lhes que me guardem assim como sou. e me
leiam aos que vão chegando com o nosso nome. e assim. estou certo. de que contribuí
para estarmos todos mais perto do belo – não basta gostar da arte. é preciso
respeitá-la – este excerto do livro que vos trago. quando o acabei de ler.
pensei: eu não quero ir para um alfarrabista sem que pelo menos um leitor me
perdoe esta ambição tresloucada – quero muito acreditar que mereço essa leitura
– depois. que me chegue o perdão e eu descansarei – o que não posso ignorar são
esses pseudoescritores. vaidosos e impostores. claro que não enganam quem sabe
que é melhor escrever do que falar. enganam outros tolos como eles. e
principalmente. enganam-se a eles próprios – que os nossos mágicos lhes perdoem.
pois eu viverei para sempre na dúvida. editarei humilde. aprendiz. e servo
quarta-feira
em mercúrio– mercúrio é um deus mensageiro. e por
isso. eu que não sou deus. nem mensageiro. sou apenas um terráqueo que gosta de
escrever umas palermices – hoje. por ser um dia igual a um outro qualquer.
resolvi em boa-venturança trazer-vos esta mensagem excêntrica. expulsa de mim.
mas conformada. ou inconformada. não sei. a interpretação dependerá do astro
que rege o leitor – mas o que sei. ou quero acreditar saber. é que muito do que
sonhei não fui capaz de realizar. e o que não sonhei. realizei tudo. nada ficou
por fazer – o problema é que estou sem saber de quem é a culpa. se minha. se do
destino. ou se me enviaram para a terra para espiar os pecados da minha vida
anterior – se assim foi. estou certo de que a minha próxima vida será
fantástica. nem preciso de muita coisa. basta-me não sonhar – cresci a pensar
que todas as minhas ideias fornicavam. e que um dia. procriariam o futuro de
coisas inimagináveis – e o pensamento preso a uma gestação: um dia vou despejar
os meus espermatozoides pelo mundo e nascerão milhares de mim – é quarta-feira.
o ponto de encontro das contas. metade da semana já se foi… e eu sem gastar um
espermatozoide – rapo de papel e coloco um risco ao meio. de cima a baixo –
tenho agora duas colunas. o deve e o haver – e lá vou eu pela coluna do deve
abaixo: falta isto. falta aquilo. e ainda mais isto. e também aquilo… e já que
estou em contas. o melhor é também por isto e aquilo. e ainda mais isto. e
isto. e isto… raios. que aborrecimento. ainda falta aquilo e mais aquilo. e
mais uma tonelada de idiotices – é sempre uma trabalheira acertar as contas. é
muita puxada miúda. muito sonho e cêntimo para cá e para lá. e depois vem a
prova dos nove. com os seus noves fora… e sempre nada – de seguida passo para a
coluna do haver. e ali fico estático. como se fosse uma daquelas estátuas
gregas sem movimento. sem coiso no meio das pernas. a olhar para o que só eu
posso e quero enxergar. e pergunto: que raio fizeste até hoje? com que
espartilho te estás a delgaçar se as pernas estão inchadas de não caminhares?
não sei nada de pernas inchadas. mas a minha médica diz que faço retenção de
líquidos. creio que deve ter razão. sempre fiz retenção de alguma coisa. até
dos sonhos. para não falar do IVA – mas não sei. não sei nada de contas. nem
desta cabeça ourada – às vezes gosto de mim assim como sou. outras. pergunto:
porque raio é que tens um metro e oitenta se não consegues ser do tamanho de
nenhuma árvore? não sei. sei que é quarta-feira e gosto muito de ver o mar
prenhe de gaivotas
“sociopata - o
transtorno de personalidade antissocial se caracteriza como um padrão de
desconsiderar ou violar os direitos de outras pessoas. Conhecido também como
sociopatia, é uma condição mental na qual uma pessoa constantemente não mostra
respeito pelo certo e pelo errado e ignora os direitos e sentimentos dos
outros. Pessoas com transtorno de personalidade antissocial tendem a
antagonizar, manipular ou tratar os outros com severidade ou com indiferença
insensível. Eles não mostram culpa ou remorso por seu comportamento” – quando
alguma destas criaturas não consegue produzir o “mea culpa” dos seus transtornos
emocionais: obsessão compulsiva. distimia. transtorno afetivo. transtorno
bipolar. ou outra qualquer patologia no interior da sua cabeça. a solução passa
pelo recurso a técnicos de saúde mental – nada mais podemos fazer. e por mais
que custe. por mais que nos sintamos tristes e magoados. só resta a esperança nos
médicos – que os tratamentos façam o seu trabalho. revertam os sintomas. e
devolvam o mais rapidamente ao mundo a pessoa sã e consciente – florbela
espanca escreveu um poema a que deu o nome: loucura – vamos senti-lo:
Tudo cai! Tudo
tomba! Derrocada
Pavorosa! Não
sei onde era dantes.
Meu solar, meus
palácios meus mirantes!
Não sei de
nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel
febril a cavalgada
Das paixões e
loucuras triunfantes!
Rasgam-se as
sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada,
Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de
insônia, ébrios de anseio!
Loucura a
esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais
as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal
de ser sozinha!
Ó pavoroso e
atroz mal de trazer
Tantas almas a
rir dentro da minha!
e porque a vida
é realmente muito curta e deve ser vivida com saúde mental. deixo-vos uma
anedota que um amigo meio louco um dia me contou: era uma vez. num dia igual a
tantos outros. quando duzentos doentes. com problemas graves de saúde mental. resolveram
fugir da casa de saúde s. josé. também conhecida por casa amarela de barcelos –
pois bem. foram em seu encalço. e para surpresa dos técnicos de saúde. rapidamente
apanharam trezentos – para espanto do mundo. nenhum dos trezentos pertencia ao
grupo dos duzentos – moral da história. tomem atenção às pessoas que entram na
vossa vida. há pelo menos duzentos loucos que ainda continuam em fuga e à
procura de gente sã para atazanar-lhes a vida – mas não deixem de viver. façam
novos amigos sem receio. quem sabe. se algum desses doentes se cura com a vossa
companhia – eu já fiz a minha parte
quinta-feira em júpiter – todos
os dias da semana tem a sua energia. o seu misticismo. o seu legado histórico.
e até as suas lendas – no calendário romano a quinta-feira pertence a júpiter. com
a sua preponderância positiva nos negócios. na fortuna. na bem-aventurança. e
na felicidade – mas para mim. o que dou como certo. já que com o astro nunca vi
fortuna. é que depois de uma quarta-feira. aparece sempre a quinta-feira. e
depois da quinta-feira chegamos sempre a uma sexta-feira – é esta regularidade
dos dias da semana que me deixa aturdido. os cristais dos ouvidos baralham-se. fico
tonto e em desequilíbrio. brutalizo-me. e pergunto: porque não posso eu
escolher o dia em que quero viver. digo melhor. ou resistir à morte – bem sei
que não posso mudar este ritmo caquético dos dias da semana. só me resta aceitar
esta inevitabilidade babilónica. romanizada – enquanto não chega a sexta-feira interrogo-me:
qual o melhor dia da semana para morrer? e qual a melhor idade? pensei logo nos
cem anos. um número redondo. bonito. com cem anos podemos morrer em qualquer
dia da semana. encaixamos sempre bem. o pessoal já está farto de nos mudar a
fralda e a algália – já ontem era tarde – na igreja o luto é feito de
conformismo. e ouve-se dizer: tinha que ir um dia – ninguém fica cá para
semente – sorte já teve ele. viveu até a junta da colaça do coração partir a
meio – o fígado mais parecia um mata-borrão. já não distinguia água do vinho –
os rins… uns passadores. cheios de calcário – e os pulmões… rangiam como portas
desengonçadas – o que tinha de bom era a dentadura. era nova. e como já não conseguia roer carne
vermelha. está impecável. bem a podem por no OLX – a outra alternativa é morrer
novo. e acredito que o melhor dia seja ao domingo. está todo mundo sem fazer
nada. na sorna. podem-se espantar durante mais tempo: sabes quem morreu? sabes?
o desgraçado bateu a caçoleta. foi na sua vez – coitadinho. esticou o pernil –
sabes quem já está a fazer tijolo? nem vais acreditar em quem foi para o
caralho. que neste acaso não é ninguém que tenha ido para a pequena cesta no
alto dos mastros – e aí. percebemos que o luto é mesmo dorido e carregado de um
negro absoluto. com a igreja mergulhada em palmas e raminhos de despedida. lavada
em lágrimas. pesarosos. doridos. alguns arrasados com a tragédia dizem:
coitado. ainda tinha tanto para dar ao mundo. deixa a mulher tão nova. o que
vale é que os filhos já se governam – ele não tinha bom feitio. mas era filho
de deus – quando mordia era um pitbull. raios – tinha o coração na boca. não
ficava nada por dizer – não era mau homem. tinha-se que saber lidar com ele – mas
como ainda estou vivo. o que vos digo. é que mais vale morrer à procura de
glória. do que morrer em piedade – mas que se lixe. saibam todos que a minha
morte será anunciada no dia em que deixar de escrever. e para sossego dos
amigos. já que com os inimigos não conto. aviso já que não haverá funeral nem
missa do sétimo dia – em boa verdade vos digo. vale muito mais um defunto rico
e com saúde. do que um defunto pobrezinho e doente – e com esta máxima me
despeço até que o óbito se confirme