.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/01/2023

sábado em saturno

 





sábado em saturno – gosto do sábado. há uma sensação de nada: não trabalhas porque não há nada para fazer; bebes porque nada te faz mal; vais dançar porque nada te prende em casa; deitas-te de manhã porque nada é melhor do acordares depois do almoço; sentas-te no sofá porque nada como estar em nossa casa; olhas a tua companheira porque nada como tê-la ao teu lado – continuo apaixonado pela mulher que escolhi para envelhecer. os anos vão passando. e nada me faz não gostar ainda mais hoje do que ontem – às vezes a simplicidade do nada também pode ser amor: amor respeito; amor admiração; amor desejo; amor da minha vida; resumindo. amor absoluto: nada como olhá-la; nada como a ter nos braços; nada como deitar a cabeça no seu colo; e nada como saber que já estivemos juntos mais de três mil duzentos sábados; e em todos eles. percebi. que não há nada como só se ter um amor na vida; nada como amar a mãe dos meus filhos; nada como continuar a envelhecer a seu lado; e nada como os meus filhos saberem que sou [somos] homem de uma única mulher – para hesíodo o amor é uma força que move as coisas. sendo capaz de uni-las e mantê-las juntas – por isso digo: nada como ser hesíodo no século XXI. viver em amor. unido à mesma mulher desde os seus quinze anos

 

22/01/2023

domingo em sol









domingo em sol – o domingo ilumina-se. é dia do sol. e a minha casa levanta-se. agiganta-se em aleluias. as vozes alegram-se. a cozinha incendeia-se. as cadeiras organizam-se à volta da mesa. e estende-se uma toalha mais branca do que branco – por cada prato uma hóstia sagrada. nossa – saudámo-nos em alegria e gratidão: isto é o corpo da nossa família. carne da nossa carne – depois. levantamos o cálice da vida. da nossa e dos nossos antepassados. e bebemos o sangue do nosso sangue – saudámo-nos. agora reconhecidos à memória – a família não se esquece e não se renega. aceitamo-nos como somos e reconhecemos a nossa missão terrena – porque serei sempre filho. pai. e também avô. este é o meu legado: a comunhão – aos domingos estamos todos à mesa. alumiados pela luz dos meus pais. que nos guarda e protege de todos os males do mundo – a família. somos nós. e o nosso universo


 

20/01/2023

escritores. escritores amadores. e pseudoescritores – editar um livro







I.

“sendo os grandes livros, mesmo os meio grandes livros, mesmo os bons livros, mesmo os meio bons livros, extremamente raros. Provavelmente, seria, na melhor das hipóteses, uma mera curiosidade. Poucos anos depois de ter sido publicado, as estantes da «Curiosidade» de todos os alfarrabistas do país estariam atravancadas com exemplares do livro. Seja como for, decidi, se há coisas que a humanidade tem que chegue, que chegue e que sobre, são livros. Ao pensar nas cataratas de livros, nos niágaras de livros, nos caudalosos rios de livros, nos oceanos de livros, nas toneladas e camiões e comboios de livros que naquele momento brotavam das tipografias de todo o mundo, sendo que só pouquíssimos deles mereceriam a pena que lhe pegássemos, que os apreciássemos, já nem falo em os lermos, comecei a pensar que era digno de admiração o ele não ter escrito o livro. Um livro a menos a atravancar o mundo, um livro a menos a ocupar espaço, a apanhar pó e a passar, sem ser lido, das livrarias para os lares e daí para os alfarrabistas, para as lojas de velharias, para as lojas dos trezentos, e daí para outros lares, e para outros alfarrabistas, e lojas de velharias, lojas de trezentos, e daí para novos lares, e assim ad infinitum.” – [o segredo de joe gould de joseph mitchell – pág.167]

 

II.

acabei de ler este fantástico livro. magistralmente bem escrito. divertidíssimo. “uma joia de ternura e de observação bem-humorada”. com prefácio do nosso mágico das palavras. antónio lobo antunes – poderia dar-vos a ler imensas passagens desta obra de “pungente emoção”. mas resolvi trazer este pequeno excerto sobre a feitura de livros a granel – joseph. em poucas palavras. mostrou como é efémera a edição de livros por parte de autores duvidosos. e tal como nos EUA em 1964. também hoje no nosso país o apocalipse da maior parte dos livros é no alfarrabista – editar livros está na moda. começasse a escrever e catrapus. mais um livro para a fornalha. é como quem mete castanhas na assadeira – escrevo há mais de vinte anos. várias horas diárias. e sei. agora muito melhor. que tal como outro qualquer ofício nobre. é preciso tempo para nos tornarmos num suficiente artesão – só o tempo nos torna sábios. amadurece as palavras. equilibra-as. ajuda-as a fazer sentido. a tornarem-se não apenas pele do nobre artesão. mas também do nobre leitor – durante muito anos resisti a editar o que quer que fosse. fiz apenas parte de duas antologias poéticas. com dois poemas. juntamente com outros camaradas – nunca estive certo desta participação. mas às vezes as pessoas valem essa dúvida. não estamos no mundo sozinhos – rapidamente percebi que a vaidade na escrita vale muito menos do que uma peça de roupa nova. esta ainda pode ser usada várias vezes. um livro mau nunca passa do dia da sua apresentação – o que temos nos dias de hoje são uns quantos vaidosos. desmiolados. convencidos de uma arte que não tem. preguiçosos e arrogantes – sem nunca testarem os seus limites. sem esforço. sem dedicação. sem amor. sem dor. querem-se transformar em escritores. querem que o livro os catapulte para o interior de uma parcela privilegiada da sociedade: as elites de uma cultura intelectual – o livro passa a ser o seu porta-estandarte. a chave para abrir todas as conversas. simula paixões e emoções. é a sua ferramenta para se suportar na inutilidade – “o vaidoso necessita dos demais. busca neles a confirmação da ideia que quer ter de si mesmo”* – ninguém é culto por editar um livro. ninguém é escritor por editar um livro. talvez para os tontos. ou familiares babados – mas o grave. e incrivelmente. é que a maior parte destes escritores sprinters. correm cem metros e descansam anos. acreditam mesmo que são familiares do rei midas da escrita. tudo em que tocam fica obra poética – escrevem meia dúzia de coisas à pressa. geralmente poemas. porque no seu entender. é mais fácil fazer acreditar alguma alminha perdida. com meia dúzia de palavras enganchadas – e que de repente. como se fosse uma raspadinha. saca milhões. saca poemas como mais ninguém – tontos e vaidosos – mas a verdade. é que se não vivessem na soberba não editariam. teriam pudor – desventurados. não sabem que escrever um poema com mão e cabeça não é para quem quer. é mesmo para quem sabe. e para quem dedica corpo e alma à nobre arte da escrita. do sacrifício. da leitura. da pesquisa. e principalmente da reflexão – por isso é que escrevo prosa e raramente me aventuro em poesia – um mau escritor também deve editar a sua obra. mas no meu entender tem que o fazer ao fim de um percurso: o das pedras. que não se faz. vai-se fazendo dia a dia. ano a ano. com centenas de textos pensados. centenas de poemas maturados. abertos ao ar. a respirar crescimento. a implorar respeito – sou um escritor amador. ganhei coragem e decidi editar este ano o meu primeiro livro. em prosa. e o que julgo saber é que por muito mau que os meus textos sejam. mereço respeito. fiz de tudo para ser o melhor possível. passei milhares de horas a escrever. milhares a corrigir. outras tantas a ler para mim. a pedir luz e bom senso. a pedir perdão pela minha ousadia a todos aqueles que honraram a nossa literatura ao longo dos tempos – ganhei coragem. mas não vou iludido. vou apenas entregar aos meus filhos um pouco de mim. vou pedir-lhes que me guardem assim como sou. e me leiam aos que vão chegando com o nosso nome. e assim. estou certo. de que contribuí para estarmos todos mais perto do belo – não basta gostar da arte. é preciso respeitá-la – este excerto do livro que vos trago. quando o acabei de ler. pensei: eu não quero ir para um alfarrabista sem que pelo menos um leitor me perdoe esta ambição tresloucada – quero muito acreditar que mereço essa leitura – depois. que me chegue o perdão e eu descansarei – o que não posso ignorar são esses pseudoescritores. vaidosos e impostores. claro que não enganam quem sabe que é melhor escrever do que falar. enganam outros tolos como eles. e principalmente. enganam-se a eles próprios – que os nossos mágicos lhes perdoem. pois eu viverei para sempre na dúvida. editarei humilde. aprendiz. e servo

*josé ortega y gasset

 


 

18/01/2023

quarta-feira em mercúrio

 






quarta-feira em mercúrio – mercúrio é um deus mensageiro. e por isso. eu que não sou deus. nem mensageiro. sou apenas um terráqueo que gosta de escrever umas palermices – hoje. por ser um dia igual a um outro qualquer. resolvi em boa-venturança trazer-vos esta mensagem excêntrica. expulsa de mim. mas conformada. ou inconformada. não sei. a interpretação dependerá do astro que rege o leitor – mas o que sei. ou quero acreditar saber. é que muito do que sonhei não fui capaz de realizar. e o que não sonhei. realizei tudo. nada ficou por fazer – o problema é que estou sem saber de quem é a culpa. se minha. se do destino. ou se me enviaram para a terra para espiar os pecados da minha vida anterior – se assim foi. estou certo de que a minha próxima vida será fantástica. nem preciso de muita coisa. basta-me não sonhar – cresci a pensar que todas as minhas ideias fornicavam. e que um dia. procriariam o futuro de coisas inimagináveis – e o pensamento preso a uma gestação: um dia vou despejar os meus espermatozoides pelo mundo e nascerão milhares de mim – é quarta-feira. o ponto de encontro das contas. metade da semana já se foi… e eu sem gastar um espermatozoide – rapo de papel e coloco um risco ao meio. de cima a baixo – tenho agora duas colunas. o deve e o haver – e lá vou eu pela coluna do deve abaixo: falta isto. falta aquilo. e ainda mais isto. e também aquilo… e já que estou em contas. o melhor é também por isto e aquilo. e ainda mais isto. e isto. e isto… raios. que aborrecimento. ainda falta aquilo e mais aquilo. e mais uma tonelada de idiotices – é sempre uma trabalheira acertar as contas. é muita puxada miúda. muito sonho e cêntimo para cá e para lá. e depois vem a prova dos nove. com os seus noves fora… e sempre nada – de seguida passo para a coluna do haver. e ali fico estático. como se fosse uma daquelas estátuas gregas sem movimento. sem coiso no meio das pernas. a olhar para o que só eu posso e quero enxergar. e pergunto: que raio fizeste até hoje? com que espartilho te estás a delgaçar se as pernas estão inchadas de não caminhares? não sei nada de pernas inchadas. mas a minha médica diz que faço retenção de líquidos. creio que deve ter razão. sempre fiz retenção de alguma coisa. até dos sonhos. para não falar do IVA – mas não sei. não sei nada de contas. nem desta cabeça ourada – às vezes gosto de mim assim como sou. outras. pergunto: porque raio é que tens um metro e oitenta se não consegues ser do tamanho de nenhuma árvore? não sei. sei que é quarta-feira e gosto muito de ver o mar prenhe de gaivotas



15/01/2023

socio pata









“sociopata - o transtorno de personalidade antissocial se caracteriza como um padrão de desconsiderar ou violar os direitos de outras pessoas. Conhecido também como sociopatia, é uma condição mental na qual uma pessoa constantemente não mostra respeito pelo certo e pelo errado e ignora os direitos e sentimentos dos outros. Pessoas com transtorno de personalidade antissocial tendem a antagonizar, manipular ou tratar os outros com severidade ou com indiferença insensível. Eles não mostram culpa ou remorso por seu comportamento” – quando alguma destas criaturas não consegue produzir o “mea culpa” dos seus transtornos emocionais: obsessão compulsiva. distimia. transtorno afetivo. transtorno bipolar. ou outra qualquer patologia no interior da sua cabeça. a solução passa pelo recurso a técnicos de saúde mental – nada mais podemos fazer. e por mais que custe. por mais que nos sintamos tristes e magoados. só resta a esperança nos médicos – que os tratamentos façam o seu trabalho. revertam os sintomas. e devolvam o mais rapidamente ao mundo a pessoa sã e consciente – florbela espanca escreveu um poema a que deu o nome: loucura – vamos senti-lo:

 

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada

Pavorosa! Não sei onde era dantes.

Meu solar, meus palácios meus mirantes!

Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...


Passa em tropel febril a cavalgada

Das paixões e loucuras triunfantes!

Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!

Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...

 

Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!

Loucura a esboçar-se, a enegrecer

Cada vez mais as trevas do meu seio!

 

Ó pavoroso mal de ser sozinha!

Ó pavoroso e atroz mal de trazer

Tantas almas a rir dentro da minha!

 

e porque a vida é realmente muito curta e deve ser vivida com saúde mental. deixo-vos uma anedota que um amigo meio louco um dia me contou: era uma vez. num dia igual a tantos outros. quando duzentos doentes. com problemas graves de saúde mental. resolveram fugir da casa de saúde s. josé. também conhecida por casa amarela de barcelos – pois bem. foram em seu encalço. e para surpresa dos técnicos de saúde. rapidamente apanharam trezentos – para espanto do mundo. nenhum dos trezentos pertencia ao grupo dos duzentos – moral da história. tomem atenção às pessoas que entram na vossa vida. há pelo menos duzentos loucos que ainda continuam em fuga e à procura de gente sã para atazanar-lhes a vida – mas não deixem de viver. façam novos amigos sem receio. quem sabe. se algum desses doentes se cura com a vossa companhia – eu já fiz a minha parte 


 

 

12/01/2023

quinta-feira em júpiter









quinta-feira em júpitertodos os dias da semana tem a sua energia. o seu misticismo. o seu legado histórico. e até as suas lendas – no calendário romano a quinta-feira pertence a júpiter. com a sua preponderância positiva nos negócios. na fortuna. na bem-aventurança. e na felicidade – mas para mim. o que dou como certo. já que com o astro nunca vi fortuna. é que depois de uma quarta-feira. aparece sempre a quinta-feira. e depois da quinta-feira chegamos sempre a uma sexta-feira – é esta regularidade dos dias da semana que me deixa aturdido. os cristais dos ouvidos baralham-se. fico tonto e em desequilíbrio. brutalizo-me. e pergunto: porque não posso eu escolher o dia em que quero viver. digo melhor. ou resistir à morte – bem sei que não posso mudar este ritmo caquético dos dias da semana. só me resta aceitar esta inevitabilidade babilónica. romanizada – enquanto não chega a sexta-feira interrogo-me: qual o melhor dia da semana para morrer? e qual a melhor idade? pensei logo nos cem anos. um número redondo. bonito. com cem anos podemos morrer em qualquer dia da semana. encaixamos sempre bem. o pessoal já está farto de nos mudar a fralda e a algália – já ontem era tarde – na igreja o luto é feito de conformismo. e ouve-se dizer: tinha que ir um dia – ninguém fica cá para semente – sorte já teve ele. viveu até a junta da colaça do coração partir a meio – o fígado mais parecia um mata-borrão. já não distinguia água do vinho – os rins… uns passadores. cheios de calcário – e os pulmões… rangiam como portas desengonçadas – o que tinha de bom era a dentadura.  era nova. e como já não conseguia roer carne vermelha. está impecável. bem a podem por no OLX – a outra alternativa é morrer novo. e acredito que o melhor dia seja ao domingo. está todo mundo sem fazer nada. na sorna. podem-se espantar durante mais tempo: sabes quem morreu? sabes? o desgraçado bateu a caçoleta. foi na sua vez – coitadinho. esticou o pernil – sabes quem já está a fazer tijolo? nem vais acreditar em quem foi para o caralho. que neste acaso não é ninguém que tenha ido para a pequena cesta no alto dos mastros – e aí. percebemos que o luto é mesmo dorido e carregado de um negro absoluto. com a igreja mergulhada em palmas e raminhos de despedida. lavada em lágrimas. pesarosos. doridos. alguns arrasados com a tragédia dizem: coitado. ainda tinha tanto para dar ao mundo. deixa a mulher tão nova. o que vale é que os filhos já se governam – ele não tinha bom feitio. mas era filho de deus – quando mordia era um pitbull. raios – tinha o coração na boca. não ficava nada por dizer – não era mau homem. tinha-se que saber lidar com ele – mas como ainda estou vivo. o que vos digo. é que mais vale morrer à procura de glória. do que morrer em piedade – mas que se lixe. saibam todos que a minha morte será anunciada no dia em que deixar de escrever. e para sossego dos amigos. já que com os inimigos não conto. aviso já que não haverá funeral nem missa do sétimo dia – em boa verdade vos digo. vale muito mais um defunto rico e com saúde. do que um defunto pobrezinho e doente – e com esta máxima me despeço até que o óbito se confirme 


 

09/01/2023

despedida









fui meu amor

e sou agora

contorno de um corpo no tempo

feito a carvão

invisível ao humano comum

já não tenho estas mãos

que seguraste

nem estes olhos

que viram romper as manhãs em ti

e agora.

aqui. neste mundo desconhecido

menos infinito do que tu

sou uma jarra pousada

numa campa sem glória

 


06/01/2023

deambulações noturnas XLVI

 





para 2023:

tal como sófocles também eu tenho as minhas tragédias. e o que julgo saber com alguma certeza. é que gostava de ser o herói de mim mesmo – nada mais