.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

20/01/2023

escritores. escritores amadores. e pseudoescritores – editar um livro







I.

“sendo os grandes livros, mesmo os meio grandes livros, mesmo os bons livros, mesmo os meio bons livros, extremamente raros. Provavelmente, seria, na melhor das hipóteses, uma mera curiosidade. Poucos anos depois de ter sido publicado, as estantes da «Curiosidade» de todos os alfarrabistas do país estariam atravancadas com exemplares do livro. Seja como for, decidi, se há coisas que a humanidade tem que chegue, que chegue e que sobre, são livros. Ao pensar nas cataratas de livros, nos niágaras de livros, nos caudalosos rios de livros, nos oceanos de livros, nas toneladas e camiões e comboios de livros que naquele momento brotavam das tipografias de todo o mundo, sendo que só pouquíssimos deles mereceriam a pena que lhe pegássemos, que os apreciássemos, já nem falo em os lermos, comecei a pensar que era digno de admiração o ele não ter escrito o livro. Um livro a menos a atravancar o mundo, um livro a menos a ocupar espaço, a apanhar pó e a passar, sem ser lido, das livrarias para os lares e daí para os alfarrabistas, para as lojas de velharias, para as lojas dos trezentos, e daí para outros lares, e para outros alfarrabistas, e lojas de velharias, lojas de trezentos, e daí para novos lares, e assim ad infinitum.” – [o segredo de joe gould de joseph mitchell – pág.167]

 

II.

acabei de ler este fantástico livro. magistralmente bem escrito. divertidíssimo. “uma joia de ternura e de observação bem-humorada”. com prefácio do nosso mágico das palavras. antónio lobo antunes – poderia dar-vos a ler imensas passagens desta obra de “pungente emoção”. mas resolvi trazer este pequeno excerto sobre a feitura de livros a granel – joseph. em poucas palavras. mostrou como é efémera a edição de livros por parte de autores duvidosos. e tal como nos EUA em 1964. também hoje no nosso país o apocalipse da maior parte dos livros é no alfarrabista – editar livros está na moda. começasse a escrever e catrapus. mais um livro para a fornalha. é como quem mete castanhas na assadeira – escrevo há mais de vinte anos. várias horas diárias. e sei. agora muito melhor. que tal como outro qualquer ofício nobre. é preciso tempo para nos tornarmos num suficiente artesão – só o tempo nos torna sábios. amadurece as palavras. equilibra-as. ajuda-as a fazer sentido. a tornarem-se não apenas pele do nobre artesão. mas também do nobre leitor – durante muito anos resisti a editar o que quer que fosse. fiz apenas parte de duas antologias poéticas. com dois poemas. juntamente com outros camaradas – nunca estive certo desta participação. mas às vezes as pessoas valem essa dúvida. não estamos no mundo sozinhos – rapidamente percebi que a vaidade na escrita vale muito menos do que uma peça de roupa nova. esta ainda pode ser usada várias vezes. um livro mau nunca passa do dia da sua apresentação – o que temos nos dias de hoje são uns quantos vaidosos. desmiolados. convencidos de uma arte que não tem. preguiçosos e arrogantes – sem nunca testarem os seus limites. sem esforço. sem dedicação. sem amor. sem dor. querem-se transformar em escritores. querem que o livro os catapulte para o interior de uma parcela privilegiada da sociedade: as elites de uma cultura intelectual – o livro passa a ser o seu porta-estandarte. a chave para abrir todas as conversas. simula paixões e emoções. é a sua ferramenta para se suportar na inutilidade – “o vaidoso necessita dos demais. busca neles a confirmação da ideia que quer ter de si mesmo”* – ninguém é culto por editar um livro. ninguém é escritor por editar um livro. talvez para os tontos. ou familiares babados – mas o grave. e incrivelmente. é que a maior parte destes escritores sprinters. correm cem metros e descansam anos. acreditam mesmo que são familiares do rei midas da escrita. tudo em que tocam fica obra poética – escrevem meia dúzia de coisas à pressa. geralmente poemas. porque no seu entender. é mais fácil fazer acreditar alguma alminha perdida. com meia dúzia de palavras enganchadas – e que de repente. como se fosse uma raspadinha. saca milhões. saca poemas como mais ninguém – tontos e vaidosos – mas a verdade. é que se não vivessem na soberba não editariam. teriam pudor – desventurados. não sabem que escrever um poema com mão e cabeça não é para quem quer. é mesmo para quem sabe. e para quem dedica corpo e alma à nobre arte da escrita. do sacrifício. da leitura. da pesquisa. e principalmente da reflexão – por isso é que escrevo prosa e raramente me aventuro em poesia – um mau escritor também deve editar a sua obra. mas no meu entender tem que o fazer ao fim de um percurso: o das pedras. que não se faz. vai-se fazendo dia a dia. ano a ano. com centenas de textos pensados. centenas de poemas maturados. abertos ao ar. a respirar crescimento. a implorar respeito – sou um escritor amador. ganhei coragem e decidi editar este ano o meu primeiro livro. em prosa. e o que julgo saber é que por muito mau que os meus textos sejam. mereço respeito. fiz de tudo para ser o melhor possível. passei milhares de horas a escrever. milhares a corrigir. outras tantas a ler para mim. a pedir luz e bom senso. a pedir perdão pela minha ousadia a todos aqueles que honraram a nossa literatura ao longo dos tempos – ganhei coragem. mas não vou iludido. vou apenas entregar aos meus filhos um pouco de mim. vou pedir-lhes que me guardem assim como sou. e me leiam aos que vão chegando com o nosso nome. e assim. estou certo. de que contribuí para estarmos todos mais perto do belo – não basta gostar da arte. é preciso respeitá-la – este excerto do livro que vos trago. quando o acabei de ler. pensei: eu não quero ir para um alfarrabista sem que pelo menos um leitor me perdoe esta ambição tresloucada – quero muito acreditar que mereço essa leitura – depois. que me chegue o perdão e eu descansarei – o que não posso ignorar são esses pseudoescritores. vaidosos e impostores. claro que não enganam quem sabe que é melhor escrever do que falar. enganam outros tolos como eles. e principalmente. enganam-se a eles próprios – que os nossos mágicos lhes perdoem. pois eu viverei para sempre na dúvida. editarei humilde. aprendiz. e servo

*josé ortega y gasset

 


 

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