I.
“sendo os grandes livros, mesmo os meio
grandes livros, mesmo os bons livros, mesmo os meio bons livros, extremamente
raros. Provavelmente, seria, na melhor das hipóteses, uma mera curiosidade.
Poucos anos depois de ter sido publicado, as estantes da «Curiosidade» de todos
os alfarrabistas do país estariam atravancadas com exemplares do livro. Seja
como for, decidi, se há coisas que a humanidade tem que chegue, que chegue e
que sobre, são livros. Ao pensar nas cataratas de livros, nos niágaras de
livros, nos caudalosos rios de livros, nos oceanos de livros, nas toneladas e
camiões e comboios de livros que naquele momento brotavam das tipografias de
todo o mundo, sendo que só pouquíssimos deles mereceriam a pena que lhe
pegássemos, que os apreciássemos, já nem falo em os lermos, comecei a pensar
que era digno de admiração o ele não ter escrito o livro. Um livro a menos a
atravancar o mundo, um livro a menos a ocupar espaço, a apanhar pó e a passar,
sem ser lido, das livrarias para os lares e daí para os alfarrabistas, para as
lojas de velharias, para as lojas dos trezentos, e daí para outros lares, e
para outros alfarrabistas, e lojas de velharias, lojas de trezentos, e daí para
novos lares, e assim ad infinitum.” – [o segredo de joe gould de joseph
mitchell – pág.167]
II.
acabei de ler este fantástico livro.
magistralmente bem escrito. divertidíssimo. “uma joia de ternura e de
observação bem-humorada”. com prefácio do nosso mágico das palavras. antónio
lobo antunes – poderia dar-vos a ler imensas passagens desta obra de “pungente
emoção”. mas resolvi trazer este pequeno excerto sobre a feitura de livros a
granel – joseph. em poucas palavras. mostrou como é efémera a edição de livros
por parte de autores duvidosos. e tal como nos EUA em 1964. também hoje no
nosso país o destino trágico da maior parte dos livros é no alfarrabista –
editar livros está na moda. começasse a escrever e catrapus. mais um livro para
a fornalha. é como quem mete castanhas apressadamente na assadeira – escrevo há
mais de vinte anos. várias horas diárias. e sei. agora com mais clareza. que
tal como qualquer outro qualquer ofício nobre. é preciso tempo para nos
tornarmos artesões suficientes – só o tempo nos torna sábios. amadurece as
palavras. equilibra-as. ajuda-as a fazer sentido. a tornarem-se não apenas pele
do nobre artesão. mas também do nobre leitor – durante muito anos resisti a
editar o que quer que fosse. fiz apenas parte de duas antologias poéticas. com
dois poemas. juntamente com outros camaradas – nunca estive certo desta
participação. mas às vezes com nos acompanha justifica essa dúvida. não estamos
no mundo sozinhos – rapidamente percebi que a vaidade na escrita vale muito
menos do que uma peça de roupa nova. esta ainda pode ser usada várias vezes. um
livro mau nunca passa do dia da sua estreia pública – o que temos nos dias de
hoje são uns quantos vaidosos. desmiolados. convencidos de uma arte que não
tem. preguiçosos e arrogantes – sem nunca testarem os seus limites. sem
esforço. sem dedicação. sem amor. sem dor. querem-se transformar instantaneamente
em escritores. querem que o livro os catapulte para o interior de uma parcela
privilegiada da sociedade: as elites de uma cultura intelectual – o livro passa
a ser o seu porta-estandarte. a chave para abrir todas as conversas. simula
paixões e emoções. é a sua ferramenta para se justificar na inutilidade – “o
vaidoso necessita dos demais. busca neles a confirmação da ideia que quer ter
de si mesmo”* – ninguém é culto por editar um livro. ninguém é escritor por
editar um livro. talvez para os tontos. ou familiares babados – mas o grave. e incrivelmente.
é que a maior parte destes escritores sprinters. correm cem metros e sentam-se
por anos. acreditam mesmo que são familiares do rei midas da escrita. tudo em
que tocam fica obra poética – escrevem meia dúzia de coisas à pressa.
geralmente poemas. porque no seu entender. é mais fácil fazer crer uma alminha distraída.
com meia dúzia de palavras mal encaixadas – e que de repente. como se uma
raspadinha literária gerasse poemas aos milhões – tontos e vaidosos – mas a
verdade. é que se não vivessem na soberba não editariam. teriam pudor –
desventurados. não sabem que escrever um poema com mão e cabeça não é para quem
quer. é mesmo para quem sabe. e para quem dedica corpo e alma à nobre arte da
escrita. do sacrifício. da leitura. da pesquisa. e principalmente da reflexão –
por isso é que escrevo prosa e raramente me aventuro em poesia – um mau
escritor também deve editar a sua obra. mas no meu entender tem que o fazer ao
fim de um percurso: o das pedras. que não se faz. vai-se fazendo dia a dia. ano
a ano. com centenas de textos pensados. centenas de poemas trabalhados e
amadurecidos. abertos ao ar. a respirar crescimento. a implorar respeito – sou
um escritor amador. ganhei coragem e decidi editar este ano o meu primeiro
livro. em prosa. e o que julgo saber é que por muito mau que os meus textos
sejam. mereço respeito. fiz de tudo para ser o melhor possível. passei milhares
de horas a escrever. milhares a corrigir. outras tantas a ler para mim. a pedir
luz e bom senso. a pedir perdão pela minha ousadia a todos aqueles que dignificaram
a nossa literatura ao longo dos tempos – ganhei coragem. mas não vou iludido.
vou apenas entregar aos meus filhos um pouco de mim. vou pedir-lhes que me
guardem assim como sou. e me leiam aos que vão chegando com o nosso nome. e
assim. estou certo. de que contribuí para estarmos todos mais perto do belo –
não basta gostar da arte. é preciso respeitá-la – este excerto do livro que vos
trago. quando o acabei de ler. pensei: eu não quero ir para um alfarrabista sem
que pelo menos um leitor me perdoe esta ambição tresloucada – quero muito
acreditar que mereço essa leitura – depois. que me chegue o perdão e eu
descansarei – o que não posso ignorar são esses pseudoescritores. vaidosos e
impostores. claro que não enganam quem sabe que é melhor escrever do que falar.
enganam outros tolos como eles. e principalmente. enganam-se a eles próprios –
que os nossos mágicos lhes perdoem. pois eu viverei para sempre na dúvida.
editarei humilde. aprendiz. e servo
*josé ortega y gasset
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