.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/02/2011

pela última vez









esta manhã procurei-me. desapareci. no tempo perdi-me – ouço o corpo. caminha de um lado para o outro. aos pés presas as coisas. talvez sejam memórias de outra vida – pedaços de mim – olho. volto a olhar e nada vejo. estou escondido atrás de um pensamento. uma janela partida. de onde se veem coisas que um dia foram reais – silêncio todo o silêncio – dentro do silêncio eu - rebentam lágrimas. acontecem sempre que recordo o passado. deve ser da saudade. arrependimento talvez – há agora dentro deste emudecimento uma papoila que reclama luz. os barulhos já não o são e os ouvidos abrem-se como flores a atapetar jardins – talvez esteja mais sensível. mais velho. mais perto do fim – os humanos choram por coisas de nada. alguns choram até de felicidade. não é o meu caso. choro por despedaçar recordações. choro por não poder voltar a encontrar-me. estou perdido para sempre. para sempre – deito-me. deixo o corpo cair no nada e choro. choro todas as noites que não dormi. choro cada nascer do sol que não é meu. choro cada prato de sopa que me afoga os olhos parados. choro de cada vez que tenho de “comer o pão que o diabo amassou”. choro. choro. choro – choro sem saber porque choro. se é ainda o corpo que amarra a carne aos ossos. este jeito de chorar traz-me gretas aos lábios. é do vento. este vento norte sempre me fez mal aos olhos que tenho à boca. coisas dos humanos – depressa tenho de aparecer ao corpo. usá-lo. assim como quem vai construir outra vida. outra história. a morte afinal já está tão perto. tenho a oração na boca para a absolvição. talvez o melhor seja caminhar. ir de encontro ao fim. sem medo. sem temor. sem o suor frio que gela o tempo – caminho. às vezes devagar. outras mais depressa que os pés. umas vezes na vertical. outras curvado. é aqui que aproveito para deitar os olhos ao chão. onde vive tudo o que escrevi com verdade – há dias em que é tanta a desonra que nem os abro. tenho medo. tantos barulhos correm dentro de mim. correm com sangue. sobrevivem comendo a pouca carne que resta agarrada aos ossos. apodrece sempre que penso. sempre que chamo pelo meu nome. sempre que mudo a cor dos olhos para verde. sempre que penteio o cabelo para trás. sempre que a brisa é quente. como se ainda houvesse verão e o cheiro a terra conquistasse a fé que um dia tive. mas o calor é o inferno – maldito inferno – tenho que andar. tenho de ir – olhar para dentro do passado não é fácil. o arrependimento não quebra correntes feitas de aço temperado ao fogo da juventude. nunca. nunca – queria tanto que quebrassem. talvez assim a dor partisse e as mãos morressem de sorrisos. talvez – o tempo passa. passa. passa e em pedra continua. bruxedo. feitiço. encantamento. não interessa. o corpo ainda continua a chorar. sem lágrimas. sem língua. sem memória. sem futuro. sem solução. sobram as mãos para escrever – não sei se estas são as últimas palavras. nunca sei quando serão as últimas. o último suspiro. o último sofrimento. o último sopro de vida. mas em cada dia que vivo. há tempo que já não é tempo. é despedida.



15/02/2011

hoje ando por aqui





luc tuymans e michaël borremans





hoje ando por aqui. nem compreendo bem o que é andar por aqui. talvez sentir o movimento das marés. ouvir as gaivotas a falar com o vento. recordar o calor dos verões que me fizeram crescer. lembrar o homem fada que vendia língua da sogra – vive dentro de mim uma praia azul. enorme. com baldinhos. com forminhas. com ancinhos. com grandes castelos de areia – nos meus castelos. aqueles que eram feitos por mãos que ainda não conheciam o pecado. só havia o bem – naquela praia todos os dias nascia um novo castelo – eu era rei. a meu lado os meus súbditos: estrelas-do-mar. búzios. lapas. mexilhões. o sargaço e aquele cheiro a iodo que me faz correr vida adentro – o mar ia e vinha. vaga atrás de vaga. dia atrás de dia e os castelos de sonhos cresciam e morriam com o sol a cair no mar – pela manhã. no areal. o prenúncio de uma vida: ruínas – mas os meus súbditos ali estavam. fiéis. nunca me abandonaram. a cada novo dia de sol. um novo castelo. com uma nova esperança – ainda hoje. sempre que vou à praia ali estão os meus amigos. mas já não sou capaz de construir castelos. não os quero desiludir mais. sei que vão ruir ao cair da noite. pela manhã não terei a mesma força para construir outros como no passado – não sou capaz. já não sou capaz – o meu mundo já não é igual. o sol não volta a cair no mar – agora sou peregrino. as mãos outrora brancas agora cinzentas. sem alegria. sem vida. sem iodo. respiram para viver. encurtam caminho com a morte – um dia. depois de outro verão. as marés não mais subirão até ao meu areal. não mais voltarão a destruir os meus castelos. estarei então finalmente frente a frente com o tudo e o nada – o meu último verão – eu e os meus castelos seremos então para sempre uma história de fadas. enterrados num mundo só nosso. mágico. viveremos para sempre. onde agora vivem aqueles que um dia me ajudaram a fazer verdadeiros castelos – hoje ando por aqui. este verão não me larga. a água é tão azul. encontro ainda as barracas enterradas no areal. guardavam tanta gente. gente feliz. famílias de pais cansados pelo trabalho – o meu pai falava. falava sempre. era enorme. havia dias que tapava o sol. as nuvens. e até o horizonte acabava morto a seus pés. nunca vi nenhuma onda maior do que ele. era mesmo grande. sabia que a vida era feita de palavras. palavras abertas. livres. doces. doces como mel. sempre enfeitadas de gestos para rostos passageiros – a minha mãe. sentada na areia. ouvia o sol. olhava o futuro com orgulho na face – sempre teve medo dos inesperados males de um mundo. feito de trabalho que não queria para os seus – o futuro tão perto e tão longe – a saudade é cada vez mais cruel. deve ser por saber a morte cada dia mais perto. mais negra – a carne. mais dia menos dia. não vai aguentar. levará definitivamente outra metade de mim – o homem fada que vende língua da sogra grita. grita pelo meu nome. enquanto as pernas revolvem a areia que ainda não chegou ao mar – nesta areia branca. pura como estas memórias. enterrei os meus sonhos – hoje ando por aqui. recordo quem fui e tudo o que sou. como falava. com ele aprendi a falar. como sorria. com ele aprendi a sorrir. como sonhava. com ele aprendi a sonhar. como amava. com ele aprendi a amar. como era amigo. foi com ele que aprendi a ser pai – hoje ando por aqui. penso. porque é que o mundo não anda para trás. devia andar. tenho tantas saudades do homem fada que vendia língua da sogra.



14/02/2011

porquê










não me venham dizer que afinal nunca estive ali. estive ali e aqui – estive dentro de um milhão de perguntas que nunca têm resposta. nem casa. nem adro. nem paz. nem guerra. nem nada – talvez seja culpa minha. talvez seja louco e não saiba quem sou. talvez não saiba o caminho para casa. talvez viva num manicómio pintado de branco. talvez esteja morto desde o primeiro dia que chorei. talvez seja uma gaivota cinzenta sem mar. talvez hoje não esteja a chover e a água que cai do céu seja apenas a fonte de todos os problemas a regar os jardins pendurados nos guarda-chuvas dos humanos loucamente felizes. talvez faça perguntas que nunca têm resposta. talvez afinal ainda seja criança – as crianças são sempre ingénuas. puras. mas ingénuas. para cada resposta encontram sempre mais um porquê – porque deus me fez assim. porque deus não vive na porta ao lado. porque deus não tem um carro desportivo – anda tão devagar. demora tanto tempo a chegar – talvez esteja velhinho. talvez não tenha carta. cansado de ser deus vou inventar um deus. um que ainda ninguém adore. um que esteja pregado numa cruz. um que morra aos trinta e três anos. um que suba ao reino dos céus e se sente à direita do pai. um que ressuscite lázaro. um que saiba andar em cima da água. um que saiba o meu nome. um que viva não na minha porta ao lado. um que viva ao lado do meu mundo. o meu mundo com pessoas – bem sei que sou louco



12/02/2011

nunca só





graciela silva rivas.




caminho por aqui. triste. mas nunca só – trago na memória uma mão cheia de pessoas que nunca me abandonam – tenho saudades. muitas saudades de abraçar



04/02/2011

17 de abril









ainda tudo me corre nas mãos
noite
......dia
..........noite
................dia
....................a morte cada vez mais ali
................mais aqui
a palavra
.............esta que fala por mim
.............................................sobrevive
entre as noites
...................um dia
apenas um dia
.................de abril