.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

16/03/2024

alzheimer

 



 

nunca controlei a boca

nem a alma

nem a dor

nem a ira do pensamento

mas se um dia me perder

se o nome destapar

se a memória lascar

se do amor deslembrar

se escambar o dia e a noite

o bem e o mal

abracem-me

segredem-me o vosso nome

não me deixem partir sozinho

 

 

[para os meus filhos]



mais um dezassete. mais um março. mais um ano – já passaram vinte e seis anos que o vosso avô partiu sozinho. envolto no branco do hospital. sem que ninguém pudesse acompanhá-lo no adeus. sem que uma mão o conduzisse ao céu – ano após ano. e sem que a saudade desvaneça.  esse dia repete-se incessantemente em mim. é uma chaga que nunca fechará – viverá enquanto eu viver já que nenhuma absolvição serenará o meu pesar – faltou uma última palavra em sua casa. nossa – um último beijo. nosso – e um até sempre. nosso – tínhamos ficado em paz. nós todos

 



12/03/2024

por ser o que sou - II

 




II. o paradoxo de olbers


“*há sempre um grande arco ao fundo dos meus olhos... a cada passo a minha alma é outra cruz” – que posso então esperar de mim agora que o arco do tempo está a achatar e a cruz que carrego a pesar? construí-me em dúvidas. e com elas produzi medo. ausência e silêncio – será que a origem das dúvidas reside numa racionalidade que lhes é exclusiva e autônoma? será que com a idade as dúvidas tendem a tornarem-se mais complexas? será que com a idade preferimos não ter dúvidas e encontramos respostas na religião. no ateísmo. ou no universo? não sei. como não sei uma imensidão de coisas. mas acredito que com o envelhecimento precisamos cada vez mais de nos de nos conquistar definitivamente. de nos conhecermos com coerência. de nos amar incondicionalmente – envelhecemos. e começamos então a catar as dúvidas morfológicas e anatómicas. estas com prioridade. e uma a uma. com cuidados de cirurgião. dissecamo-nos. expomo-nos. libertamo-nos do medo. mostramos o que somos. nada mais do que o que somos – tal como antigamente as mães catavam piolhos nas cabeças dos seus filhos e os exterminavam unha contra unha. também eu cato as minhas dúvidas. mas não as extermino. aprisiono-as. acorrento-as ao que me sobra de lucidez. injeto-lhes aceitação. suportação.  e também conformação. afinal são as minhas dúvidas. geradas e criadas em mim – nietzche dizia que devemos ter o caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante. eu já sou um caos. mas no lugar das estrelas tenho as dúvidas a dançar sobre mim – as dúvidas sufocam-me. desesperam-me. magoam-me. mas estou cada vez mais certo de que não seria o que sou sem elas. sem o seu caos. sem a sua energia interrogativa. e também sem a crueldade com que me levam à desesperação para me encontrar com o que sou hoje – só não tenho a convicção de que alguma vez levarei todas as minhas dúvidas à certeza. velejo águas sem fronteiras. aflitas. angustiadas. bem sei que sempre foi assim. e o que nasce em dúvida. tarde ou nunca será certeza – nesta forma maldosa de viver. inventada por mim para que a ausência se faça o mais tarde possível. vivo a verdade que sou a cada noite. e quando o sol range. e a mentira regressa. percebo pelo tino que me resta que nada em mim é certo. viver o que não sou é um castigo só compensado pelas dúvidas que alimentam a noite – sem dúvidas seria um monstro. um vegetal. um ser inanimado. uma pedra pendurada num penhasco à espera de uma rabanada de vento – tal como olbers. também eu quero acreditar que se a minha mente fosse estática e repetitiva. nunca teria conseguido construir-me assim como sou. talvez se me aplique o mesmo princípio do seu paradoxo – as minhas noites são escuras. frias. solitárias. imersas em dúvidas. em dor. e o corpo de um lado para o outro. da cadeira para o tártaro. da cama para o tártaro. de mim para o tártaro. e do tártaro para dentro do que não quero ser. e o corpo inchado de coisas inúteis. enorme. como se tivesse prenho de umas quantas vidas. quase todas dispensáveis. quase todas sem valor de mercado – o meu corpo é um género de tabopan. um aglomerado de dúvidas prensado pela vida que me suporta. e também pela minha parca sabedoria. cheio de incertezas e medos. sempre a procurar um fim. e elas a nascer sem ordem e saber. e eu a perguntar: porquê? são minhas por quê? talvez a resposta seja são minhas porque são. ou talvez porque me fazem expulsar o que não sou. para tentar ser o que quero ser – *“o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é” e este eu. quase invisível. e que habita dentro da ausência. medo e silêncio. não precisaria mais do que um caderno de linhas para se tornar parte das coisas reais – nestas noites embrulhadas em dúvidas e mistérios. a única companhia que suporto é o conhecimento que não tenho. o de mim também. e que me faz procurar nas incertezas o que sou. porque sou. ou o que poderia ter sido se… e mais se… e mais se… e mais se… mesmo sabendo que o se será sempre uma equação com resultado infinito e variável – mas mesmo este resultado imperfeito. está sujeito a vários tipos de contaminação: se crescermos em família ou com amigos. se estarmos sós ou acompanhados. se é noite ou dia. se temos fé ou descrença. se temos dúvidas ou certezas. se vivemos na terra ou na lua. a invisibilidade que sou. e que acredito ser genuína. é a minha impressão digital. o meu nome. a antimatéria reconhecida por todos que me rodeiam – sendo invisível não existo. resisto no meio de quem é visível – quero acreditar agora. com o meu calendário em quarto minguante. que sou o que posso ser. e nunca serei mais do que isto que escrevo. e também sei que serei muito menos para os que me leem – mas depois. obstinado. procuro soluções. e mergulho nas dúvidas. às vezes como se fossem um chá quente reconfortante. outras. fico em nada. desintegro-me molecularmente. e crio um novo paradoxo: e se a minha invisibilidade fosse de tal forma gigante. do tamanho do universo. não fosse finita. nem estática. e todo o conhecimento que sei existir em mim. sendo pouco. mais as dúvidas. sendo muitas. porque não há saber sem dúvidas. fosse uma fonte limpa de produção de energia. sendo a invisibilidade o seu combustível. reproduzida assexuadamente. sem necessidade direta da minha inteligência. sendo assim capaz de produzir os seus próprios interesses. os seus próprios desafios. os seus próprios medos. as suas dúvidas. isto é: eu. assim como sou – a minha invisibilidade é a minha força. mas **“o meu pensamento sou eu: é por isso que não consigo parar” – construí o meu universo escuro. que mais não é do que o meu quarto de pânico. e que tal como uma ventoinha eólica apenas precisa de vento para produzir a sua energia: eu preciso de invisibilidade para resistir ao que sou – e eu. invisível. que nada produzo para além de energia interrogativa. a respirar contradição dolorosa. morro para adormecer. morro para que o vento não chegue à eólica. e quando o tártaro me regurgita. acordo para viver – é esta energia. esta força invisível. que aceito como minha por ser feita do meu pensamento. que me faz nascer renovado com a luz. e morrer com o escuro. e enquanto não faleço de vez. resisto a todas dúvidas com mais dúvidas – nenhum homem. mesmo feito de nada. pode descansar se não tiver um interruptor para as suas assombrações. uma mão que se despeça da mente e nos faça falecer em calmaria. porque enquanto está falecido não quer saber se o sol nasce ou não. se o pecado existe. ou não. se a estrada é certa. ou não. se o amor por mim é verdadeiro. ou apenas a ferramenta para me manter vivo – olbers fabricou um paradoxo para o universo. eu fabriquei um paradoxo para mim: porque quero viver se é a morte que me ilumina os dias? bem. não tenho certeza. talvez porque é no conhecimento da mortalidade que encontramos clareza sobre a vida – a morte é apenas o nada imortalizado. continuar vivo é sempre uma opção. a não ser que fosse tetraplégico. ninguém nos proíbe que nos atiremos de um himalaias.  ou que sufoquemos com um nó de amor. ou nos enrodilhemos num oceano. é sempre menos custoso falecer do que viver – sempre que o sol desaparece unge-me saudade. e tal como um samurai se prepara para a batalha. também eu me dobro sobre a terra que me suporta e honro os pais da minha luminosidade. e mesmo que esta honra não lhes traga glória. e não sabendo eu se a alma é eterna depois de perder o corpo. enquanto resisto às dúvidas terrenas. acredito que o nome que me deram não foi em vão – mas confesso. gostava de saber que dúvidas são estas que me levam ao nada. pois mesmo que o amor me sobre em cada pegada. e o desejo de caminhar se prenda às pernas. e o destino a soma de todos os passos. sei que sou o que vivo na terra das vontades. e que me faz ser o que sou às vezes não sendo. e mesmo que um dia me falte a estrada. mesmo que a curva seja eterna. é o meu nome que perdurará em cada pegada que inventei – descobri no escuro das minhas noites a luz que me ilumina a vida – procuro a minha verdade. o que presta e o que não presta em mim. tal como nos pede miguel torga no seu poema. quantos seremos



Quantos seremos?


Não sei quantos seremos, mas que importa?!

Um só que fosse, e já valia a pena.

Aqui, no mundo, alguém que se condena

A não ser conivente

Na farsa do presente

Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,

Nem talvez a mais certa,

A da partida.

Mas podemos fazer a descoberta

Do que presta

E não presta

Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira

Quotidiana.

Esta comédia desumana

E triste,

Que cobre de soturna maldição

A própria indignação

Que lhe resiste.



*mário de sá-carneiro 

** albert camus

***jean-paul sartre


09/03/2024

por ser o que sou - I

 






I - insignificante


às vezes sinto que já faleci. fecho os olhos e as dúvidas iluminam um corpo já quase sem vida. e a mente infinita e elástica a explodir de medo – por cada fantasma uma razão para não querer abrir os olhos. por cada dor a certeza de que ainda estou vivo – a luz natural desaparece. as lâmpadas tomam o seu lugar. iluminam o que está ao seu alcance. e resisto. nada mais posso fazer. estou demasiadamente fragmentado para brigar com o escuro – conto as estrelas. uma a uma. e por fim. e por desespero. deito-mo… fecho os olhos… e faleço para tudo que me faz viver. e a cada amanhecer ressuscito para tudo que me faz morrer – no escuro sinto-me sempre tão insignificante. sem nenhum castelo para guardar. sem nenhuma cadeira para me sentar. sem nenhuma certeza para as dúvidas que me subtraem a noite – pé ante pé. adentro para a caverna das impossibilidades. tudo é confusão. medo. terror e morte desonrosa – mesmo assim. sobrevivo quando fecho os olhos… e morro quando os abro – a vida é um desafio. às vezes indecente. às vezes injusta. às vezes imoral. às vezes quase mortal. às vezes apenas com um pequeníssimo estímulo para adiarmos para amanhã o que já não suportamos hoje – é o destino que nos calhou em sorte. ou por mérito. ou por demérito. e um dia. sem mais adiamentos. finamos por um mandamento interior que não podemos desrespeitar. é como um impulso elétrico. um punhal que nos espetam de certezas. uma oração que nos perdoa de todos os excessos e pecados. e tudo o que era dúvida é agora uma oferta num embrulho irrecusável: paz para sempre – e enquanto esperamos por esse mandamento. por aqui ficamos. a respirar devagarinho para que ninguém nos ouça. a viver aos pouquinhos. a resistir porque o seu contrário é covardia. a soletrar o nosso nome baixinho. a marcar dias no calendário para assegurar que fazemos parte do mundo sensível – é quando tomamos o silêncio como o último amigo. tudo o que for dito no desespero da noite pode tornar-se letal com o nascer do dia – adiamos as dúvidas. as promessas. as orações. o vento às gaivotas. adiamos tudo até que o corpo não possa mais dizer: quero falecer – quando acordo. mesmo insignificante. mesmo a valer nada. dou como certo a chegada de mais uma noite. mais uma ameaça ao siso. e sofro. e a dúvida é se o meu padecimento é resultado da minha essência. ou das escolhas que realizei por vontade – não sei. como poderia saber? mas para cada desafio diurno terei o que sempre tive. audácia e esperança. talvez por ser insignificante. e não caber em mim mais nada – e para cada himalaias apenas um passo para a frente. e a certeza de que dor besta só me vencerá se o cume não alcançar – se não fosse insignificante não haveria himalaias. as montanhas existem para pessoas como eu: pensam. escrevem. desenham. pintam. traçam bissetrizes até ao princípio do mundo. remexem o passado para nada mudar. e no topo da minha capela sistina. uma cabeça tão miserável que confúcio nunca me teria aceitado para seu aluno – resta-me resistir. pensar para existir. pensar para não falecer – a minha noite está em oposição à infinitude da mente. é como se o medo abstrato. filosófico. ou metafísico se tornasse real. como se tomasse o corpo e o mergulhasse em ácido. e o medo do amanhã. que é meu por direito próprio. me corroesse os ossos e me desfizesse em prantos – insignificantes. bem sei – que mais poderia ser do que prantos insignificantes? creio que nada – escondo-me na escuridão. preciso e amo as noites. à noite ninguém me vê. ninguém sabe quem sou. ou o que faço. à noite sereno-me. procuro-me. procuro também as dúvidas. e para cada uma. mais mil a trabalharem em mim. todas impassáveis. todas a fazer dor. a fazer terror. e a única certeza dentro desta devastação. são dúvidas a parirem mais dúvidas. e por fim. descarnado. desesperado. depauperado de qualquer riqueza emocional. apenas uma certeza: amanhã tudo será pior? e eu. falecido ou não. com dor ou sem. com perdão ou sem. caio definitivamente no meu abismo. e faleço por uma vontade que não pode ser contrariada. como se tomasse uma espécie de cicuta que me faz falecer no escuro. e depois. com o nascer do dia. ressuscito para poder morrer novamente – mas no dia em que morrer de vez. quando viajar para outro espaço sem dor e medo. sei que o mundo acordará exatamente igual. nenhuma estrela no céu confiscará o meu nome. nenhuma luz na terra alumiará a minha falta – já não tenho mais prantos. já não tenho mais nenhum dote que me permita comprar uma vírgula para mudar a história. terei que viver com dúvidas. e com a minha preciosa insignificância. assumir o que sou. mesmo não sendo nada – a vida é um voo para morte. é como se me tivesse atirado de um arranha céus há mais de 50 anos e andasse estes anos todos à procura de um local para cair – não se morre com o impacto. morre-se com a vontade de chegar ao solo. porque a morte física é apenas ausência e silêncio – escrevo. escrevo sentimentos confusos. incluindo amor. morte. felicidade. alegria. tristeza. medo. raiva. incompreensão. e para cada um deles um palavrão: que se foda – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se não durar mais do que um minuto. eu não deixarei nada que valha mais do que um minuto – quando um homem falece nada do que fez tem valor se as bocas não falarem de dor. eu não deixarei nenhuma obra em razão da dor – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se o sol não fizer sombra. eu cresci envolto em nuvens – mas o que posso fazer se desistir não for solução? mesmo que o vento me cegue o caminho. é na vontade de desistir que me nomearei cavaleiro. e darei [comigo] o primeiro passo para a frente. mesmo que o meu nada tema medrar. mesmo que o meu nada peça para não sofrer. pois estou certo. que um dia. alguém me há de explicar o que sou. e porquê sou – quem caminha sozinho vai mais rápido. mas quem caminha acompanhado. vai com certeza mais longe. clarice lispector – eu vou com certeza chegar mais longe. caminho comigo. e com todos os eus que carrego de nascença. e somos tantos. a falar. a dar opiniões. a dizer vai por acolá. para logo outro dizer. é melhor por ali. mas que posso fazer se todos são importantes. e de todos fiz caminho – confesso que não sei. já me habituei a não os questionar. não quero compreendê-los. o que quero mesmo é chegar mais longe. porque há coisas que não queremos saber. às vezes ser. e ter também. mesmo que seja um dom divino. ou escolha do universo. o melhor mesmo é continuar insignificante. vestir-me de louco. e viver pendurado numa janela. quem sabe um dia ganho asas e passo a viver nas árvores. na natureza. na minha natureza – quando um ser insignificante falece os sinos não dobram. nem choram. nem gritam. acenam. e dizem sorrindo: já vais tarde. finalmente noites sem dúvidas – estou certo que mais tarde. ou mais cedo. aprenderei a contar os meus eus. a catalogá-los. e pedir-lhes que me nomeiem. eu. sampaio rego. fiel depositário. e único herdeiro das suas vulnerabilidades. dores. desgraças e insignificâncias – nós. queremos muito acreditar que é possível ir mais longe – e termino esta primeira parte com um poema de agostinho da silva. in “poemas”

 

SONHO

 

Teria passado a vida

atormentado e sozinho

se os sonhos me não viessem

mostrar qual é o caminho

 

umas vezes são de noite

outras em pleno de sol

com relâmpagos saltados

ou vagar de caracol

 

quem os manda não sei eu

se o nada que é tudo à vida

ou se eu os finjo a mim mesmo

para ser sem que decida.



06/02/2024

destino







todos os corpos são gaivotas. vivem pousados em vento. o destino é feito pelo tamanho das asas - in. retalhos – número de série 27042012s(r)ego02

 


21/01/2024

tuning II e III





 


II.

as palavras deixaram de ser irreverentes. aceitam-me. e acomodam-se no lugar que lhe disponho. como se eu e elas fizéssemos parte de um banquete. e nos sentássemos à mesa. em família – quem nos lê não quer fast-food. quer um banquete de gala. requintado. luxuoso. elegante. sob holofotes. quer estar no centro de todas as atenções. quer os homens de smoking preto. sapato verniz. e camisa branca ornada com laço papillon – as senhoras de vestido justo. preto. de lantejoulas. salto alto de agulha. uma echarpe suave a tapar os ombros nus. e no colo do peito a maior esmeralda verde já alguma vez regurgitada por uma rocha – na mesa. o início da degustação gourmet. carne maturada ao tempo da arte. acompanhada por letras salteadas em perífrase. com alto teor de metáforas e hipérboles. tudo regado com um néctar de apolo – ao fim destes anos. vinte e cinco não é pouca coisa. as palavras tornaram-se divertidas. já não se mostram enfezadas. falam comigo. respeitam-me. insinuam-se. nenhuma quer ficar fora da história. tornaram-se mais tolerantes. sabem que não foi fácil artilhar o carro para chegar até aqui. mas agora. às portas de um novo genesis. querem mais. querem mais papel. querem mais conhecimento. mais arte. mais definição – eu também quero. mas o medo. essa coisa tantas vezes abstrata. essa dor que nos espreita por detrás de cada palavra… e nos magoa sem piedade – como se escrever pudesse merecer castigo – um escritor. por mais mau que seja. vive atormentado. o seu mundo está coberto de nuvens e homens maus. e ao fim da jornada. quando apagamos a luz. as palavras saem de nós para alimentar os demónios. e ali ficamos. em alerta. de espada na mão protegendo a nossa honra. evitando que alguma seja levada para o inferno – não há escritor que não tenha tido um motor partido. uma bomba de água entupida. os fusíveis queimados. e palavras atravancadas no nó da garganta – e o domar de letras petrificado. preso ao seu tártaro. ajoelhado. a pedir a são judas tadeu. o santo das causas impossíveis. que o proteja dos demónios críticos – a vida de quem escreve não é fácil. mas não mudaria uma vírgula do caminho que percorri. mesmo sabendo que não estou isento de imprecisões – mas se ficasse por aqui. se não escrevesse nem mais uma palavra. diria que já não foi mau. caminhei com o que sonhei. e a cada nascer do sol encontrei-me para ser um pouco melhor – nem tudo foi mal-acabado. eu e as palavras amparamo-nos. rimos juntos. choramos juntos. andamos por dicionários juntos. perdemo-nos juntos. viajamos juntos para lá das nuvens. às vezes até acampamos em estrelas e cometas. e as metáforas e hipérboles a nosso lado. ajudando-nos a criar ilusões. para não falar no sujeito poético que. com a mania de dizer tudo o que lhe apetece. escapa sempre às responsabilidades – foi uma viagem e tanto. bem sei que sempre exagerei com as figuras de estilo. mas que posso fazer contra isso. estavam mesmo à mão. e a mão daquele que escreve é incontrolável – ser escritor é um sacrifício medonho. só quem realmente gosta de contar histórias é capaz de sobreviver a vinte e cinco anos de anonimato – escrevi. e ainda hoje escrevo para não ficar doente. para sobreviver a este mundo terrível que sufoca a minha cabeça. e que todos os dias me atormenta com a vida de verdade. e tudo faz para que desista de procurar a cura pela estrada do papel – escrever é uma viagem alucinante. às vezes acreditamos que estamos a trabalhar para uma obra de arte. e dentro da nossa cabeça assim é. e no outro dia. despois de umas horas de sono. olhamos para o papel e interrogamo-nos: quem foi o monstro que escreveu esta trampa? e ali ficamos mortos. quase sem respirar. a perguntar se vale a pena continuar. e vamos buscar aquele bocadinho de forças para o momento em que estamos no cimo da ponte. entre o escreve. e não escreve. desiste. não desiste. e voltamos ao princípio. renascemos no caus. e mais uma vez com a esperança de que quando atingirmos o ponto final. nos sintamos geniais – e o medo instalado. a interrogar-se. será que não consigo chegar a um escritor de verdade? as palavras cada vez são mais exigentes. e às vezes não as sei entender. saber até sei. mas não consigo domá-las como desejava. é como se estivesse num fórmula 1.  com mais de mil cavalos selvagens a puxar por mim. e eu sem mãos para tanto power. para tanto cavalo bonito

 


III.

mas o que sei. e desta vez sei mesmo. será em 2024 que me tornarei pela primeira vez pai de um livro. finalmente escritor – não um livro qualquer. não. será o meu livro. o meu best seller. com a minha impressão digital. a vida escrita em papel. sem adornos. sem falsidades. sem imposturices. com honestidade emocional. intelectual também. sendo apenas eu em cada momento desse eu. às vezes no escuro. às vezes no nada. a soletrar o nome para não me perder. para não me esquecer. a lascar pedra – sem este outro eu. sei. agora. que não escreveria uma única palavra. não curaria nenhuma dor. não perdoaria nenhuma falha. não encontraria nada em mim que valesse a pena fazer existir. a mesmidade seria para mim uma doença incurável – o tempo passou. rápido creio eu. precisava de outro tanto para me tornar mais nobre. mais respeitado – veremos do que serei capaz – as palavras são sempre tão difíceis. tão desgastantes. tão rigorosas. sempre a imporem acompanhamentos diferenciados. exigentes na escolha dos ingredientes. alguns exóticos. outros raros. que desconheço. ou não sou capaz de trabalhar. – talvez queiram batata brava. e uma saladinha com todos. vinagre balsâmico e duas pedrinhas de sal a gosto – o meu livro será a gosto. a meu gosto – espero que a gosto de todos aqueles que me leem

 



15/01/2024

andam por aí





Não vou aos cemitérios porque não está lá ninguém

e ao perguntar-lhe

– Então estão onde?

o Bento fez aquele sorriso que lhe enche a cara toda, explicou

– Andam por aí.

e, de facto, andam por aí. A minha mãe anda por aí, o meu pai anda por aí e fartamo-nos de nos cruzar com eles, só que às vezes, distraídos, não damos por isso. Eu para o Bento

 

antónio lobo antunes


eu digo mais.

a minha cunhada zeza anda por aí

o meu sogro joão anda por aí 

o meu tio joão anda por aí

 

 

10/01/2024

tuning






 

I.

será que atingi a maturidade a escrever? será que a idade sénior me protegerá de escrever tontarias? não sei. gostava de ter uma bola de cristal. mas não tenho – a minha dúvida é que seja uma espécie de automóvel tuning. que vai sofrendo alterações. às vezes para parecer mais bonito. noutras. mais competitivo – comecei por aparelhar umas jantes mais largas. para me amarrar melhor às palavras; depois. abri um teto para mais facilmente ser ouvido quando peço perdão; não satisfeito. meti dois faróis xénon para não me voltar a enganar no caminho – medroso. alterei a suspensão para aguentar os solavancos gramaticais. e para me defender. comprei um rádio com colunas a debitar 1000 decibéis. às vezes precisamos de calar o mundo – por último. mandei apetrechar dois “bofantes” cromados para impressionar. tipo carro de corrida. mas que não corre para lado nenhum. faz barulho por ter o escape roto – lembro-me do dia em que comecei a acelerar. e fui pela vida da escrita. ganhando coragem a cada passo. a cada quilómetro feito de passos. e um dia distraí-me. e quando olhei para o conta-velocidade tinha ultrapassado os cem quilómetros horários – que loucura. vidro aberto e aquela sensação incrível do vento a misturar-me o léxico. as palavras a esvoaçar. e o cérebro em êxtase aos gritos de aflição. anunciando a todo momento a fusão de um punhado de vocábulos. o nascimento de um grande texto – o ponteiro do velocímetro a trepar incrédulo pela potência. o cabelo a imitar os braços do boneco da michelin. e os óculos ryban. a sorrirem para o retrovisor. e os lábios a sublinhar suavemente o pensamento: nada do que escrevi merece recordação. para a frente é o caminho – vivia um tempo feliz. excêntrico. acreditava que um dia deixaria de ser carro tuning e passaria a um avião de combate. um F16 – depois. passei os cento e vinte. e comecei a olhar para trás à procura da brigada. e a perguntar-me. será que algum critico literário ou apenas leitor. mandar-me-á parar? talvez um dia aconteça. é inevitável. quem anda à chuva molha-se – mas o que me preocupa não é a chuva. é se um desses entendidos me disser: -- o cavalheiro fica sem carta definitivamente. é um perigo para a arte. o melhor para si. e para todos os que gostam de ler. é confiscar-lhe o lápis. obrigá-lo rapidamente a parar de escrever – continuei a acelerar. e a escrita cada vez mais em pânico. sempre que passava por um radar sorria. ficar bem na fotografia é o desejo de todo escritor – sorrindo talvez apanhe apenas uma contraordenação primária. uma advertência. ou trinta dias de suspensão – quando escrevemos tornámo-nos vaidosos. e acreditamos piamente que um dia podemos ter uma pontinha de sorte. e quem sabe. tornarmo-nos no melhor escritor da nossa rua – palerma. estou farto de saber que a sorte dá muito trabalho – no entanto. a ingenuidade alimenta a criança que teima em viver no meu corpo adulto – continuei a acelerar. quem não gosta de andar depressa com as palavras? encosto aqui. para-choques a raspar por ali. arranhão acolá. mas sempre a teimar. pensava para mim: enquanto não capotar o caminho é para a frente – comecei de triciclo. virei de pernas para o ar centenas de vezes e nunca desisti – depois. passei para a bicicleta. e as marcas de lamber o alcatrão cravaram-se-me no corpo. mais uma vez recusei resignar – agora. que tenho quatro rodas. um travão servofreio com sensores ABS. cinto de segurança em diagonal. e airbags duplo frontal. também não vou abandonar as palavras – passaram vinte e cinco anos. as palavras estão mais maduras. eu também. já não estou tão vaidoso. e na minha simplicidade. quero acreditar que atingi a velocidade do som. claro que ainda não sou F16. muito menos um foguete capaz de me levar ao espaço. mas labutei-me muito por dentro. afinei-me para corridas trabalhosas. acredito que um dia chegarei a um paris-dakar – não sei. mas que importa. chegarei onde tiver que chegar – também aprendi a colocar o ouvido nas palavras. e agora ouço o seu trabalhar. como quando o médico coloca o estetoscópio sobre o coração. e diz: -- respire fundo – e máquina a trabalhar ao ralanti. num batimento certo. e as palavras a trabalhar dentro dele. e eu com as mãos ansiosas por mais prazer. com as palavras presas às pontas dos dedos. excitadas. os dedos também. e no cérebro hauser a tatear um noturno em dó sustenido menor de frédéric chopin. e o papel branco a desenvolver-se. a sonhar com uma história de amor correspondido. a oferecer-se ao escritor