II. o paradoxo de olbers
“*há sempre um grande arco
ao fundo dos meus olhos... a cada passo a minha alma é outra cruz” – que posso
então esperar de mim agora que o arco do tempo está a achatar e a cruz que
carrego a pesar? construí-me em dúvidas. e com elas produzi medo. ausência e
silêncio – será que a origem das dúvidas reside numa racionalidade que lhes é
exclusiva e autônoma? será que com a idade as dúvidas tendem a tornar-se mais
complexas? será que com a idade preferimos não ter dúvidas e encontramos
respostas na religião. no ateísmo. ou no universo? não sei. como não sei uma
imensidão de coisas. mas acredito que com o envelhecimento precisamos cada vez
mais de nos conquistar definitivamente. de nos conhecermos com coerência. de
nos amar incondicionalmente – envelhecemos. e começamos então a catar as
dúvidas morfológicas e anatómicas. estas com prioridade. e uma a uma. com
cuidados de cirurgião. dissecamo-nos. expomo-nos. libertamo-nos da vergonha.
mostramos o que somos. nada mais do que o que somos – tal como antigamente as
mães catavam piolhos nas cabeças dos seus filhos e os exterminavam unha contra
unha. também eu cato as minhas dúvidas. mas não as extermino. aprisiono-as.
acorrento-as ao que me sobra de lucidez. injeto-lhes aceitação.
suportação. e também conformação. afinal
são as minhas dúvidas. geradas e criadas em mim – nietzche dizia que devemos
ter o caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante. eu já sou um
caos. mas no lugar das estrelas tenho as dúvidas a dançar sobre mim – as
dúvidas sufocam-me. desesperam-me. magoam-me. mas estou cada vez mais certo de
que não seria o que sou sem elas. sem o seu caos. sem a sua energia
interrogativa. e também sem a crueldade com que me levam à desesperação para me
encontrar com o que sou hoje – só não tenho a convicção de que alguma vez
levarei todas as minhas dúvidas à certeza. velejo águas sem fronteiras.
aflitas. angustiadas. bem sei que sempre foi assim. e o que nasce em dúvida.
tarde ou nunca será certeza – nesta forma maldosa de viver. inventada por mim
para que a ausência se faça o mais tarde possível. vivo a verdade que sou a
cada noite. e quando o sol range. e a mentira regressa. percebo pelo tino que
me resta que nada em mim é certo. viver o que não sou é um castigo só
compensado pelas dúvidas que alimentam a noite – sem dúvidas seria um monstro.
um vegetal. um ser inanimado. uma pedra pendurada num penhasco à espera de uma
rabanada de vento – tal como olbers. também eu quero acreditar que se a minha
mente fosse estática e repetitiva. nunca teria conseguido construir-me assim
como sou. talvez se me aplique o mesmo princípio do seu paradoxo – as minhas
noites são escuras. frias. solitárias. imersas em dúvidas. em dor. e o corpo de
um lado para o outro. da cama para o tártaro. e do tártaro para dentro do que
não quero ser. e o corpo inchado de coisas inúteis. enorme. como se tivesse
prenho de umas quantas vidas. quase todas dispensáveis. quase todas sem valor
de mercado – o meu corpo é um género de placa prensada de vidas e dúvidas. e
também pela minha parca sabedoria. cheio de incertezas e medos. sempre a
procurar um fim. e elas a nascer sem ordem e saber. e eu a perguntar: porquê?
são minhas por quê? talvez a resposta seja são minhas porque são. ou talvez
porque me fazem expulsar o que não sou. para tentar ser o que quero ser – *“o
homem é a única criatura que se recusa a ser o que é” e este eu. quase
invisível. e que habita dentro da ausência. medo e silêncio. não precisaria
mais do que um caderno de linhas para se tornar parte das coisas reais – nestas
noites embrulhadas em dúvidas e mistérios. a única companhia que suporto é o
conhecimento que não tenho. o de mim também. e que me faz procurar nas
incertezas o que sou. porque sou. ou o que poderia ter sido se… e mais se… e
mais se… e mais se… mesmo sabendo que o se será sempre uma equação com
resultado infinito e variável – mas mesmo este resultado imperfeito. está
sujeito a vários tipos de contaminação: se crescermos em família ou com amigos.
se estarmos sós ou acompanhados. se é noite ou dia. se temos fé ou descrença.
se temos dúvidas ou certezas. se vivemos na terra ou na lua. a invisibilidade
que sou. e que acredito ser genuína. é a minha impressão digital. o meu nome. a
antimatéria reconhecida por todos que me rodeiam – sendo invisível não existo.
resisto no meio de quem é visível – quero acreditar agora. com o meu calendário
em quarto minguante. que sou o que posso ser. e nunca serei mais do que isto
que escrevo. e também sei que serei muito menos para os que me leem – mas depois.
obstinado. procuro soluções. e mergulho nas dúvidas. às vezes como se fossem um
chá quente reconfortante. outras. fico em nada. desintegro-me molecularmente. e
crio um novo paradoxo: e se a minha invisibilidade fosse de tal forma gigante.
do tamanho do universo. não fosse finita. nem estática. e todo o conhecimento
que sei existir em mim. sendo pouco. mais as dúvidas. sendo muitas. porque não
há saber sem dúvidas. fosse uma fonte limpa de produção de energia. sendo a
invisibilidade o seu combustível. reproduzida assexuadamente. sem necessidade
direta da minha inteligência. sendo assim capaz de produzir os seus próprios
interesses. os seus próprios desafios. os seus próprios medos. as suas dúvidas.
isto é: eu. tal como sou – a minha invisibilidade é a minha força. mas **“o meu
pensamento sou eu: é por isso que não consigo parar” – construí o meu universo
escuro. que mais não é do que o meu quarto de pânico. e que tal como uma
ventoinha eólica apenas precisa de vento para produzir a sua energia: eu
preciso de invisibilidade para resistir ao que sou – e eu. invisível. que nada
produzo para além de energia interrogativa. a respirar contradição dolorosa.
morro para adormecer. morro para que o vento não chegue à eólica. e quando o
tártaro me regurgita. acordo para viver – é esta energia. esta força invisível.
que aceito como minha por ser feita do meu pensamento. que me faz nascer
renovado com a luz. e morrer com o escuro. e enquanto não faleço de vez.
resisto a todas dúvidas com mais dúvidas – nenhum homem. mesmo feito de nada.
pode descansar se não tiver um interruptor para as suas assombrações. uma mão
que se despeça da mente e nos faça falecer em calmaria. porque enquanto está
falecido não quer saber se o sol nasce ou não. se o pecado existe. ou não. se a
estrada é certa. ou não. se o amor por mim é verdadeiro. ou apenas a ferramenta
para me manter vivo – olbers fabricou um paradoxo para o universo. eu fabriquei
um paradoxo para mim: porque quero viver se é a morte que me ilumina os dias?
bem. não tenho certeza. talvez porque é no conhecimento da mortalidade que
encontramos clareza sobre a vida – a morte é apenas o nada imortalizado.
continuar vivo é sempre uma opção. a não ser que fosse tetraplégico. ninguém
nos proíbe que nos atiremos de um himalaia.
ou que sufoquemos com um nó de amor. ou nos enrodilhemos num oceano. é
sempre menos custoso falecer do que viver – sempre que o sol desaparece unge-me
saudade. e tal como um samurai se prepara para a batalha. também eu me dobro
sobre a terra que me suporta e honro os pais da minha luminosidade. e mesmo que
esta honra não lhes traga glória. e não sabendo eu se a alma é eterna depois de
perder o corpo. enquanto resisto às dúvidas terrenas. acredito que o nome que me
deram traz consigo um sentido – mas confesso. gostava de saber que dúvidas são
estas que me levam ao nada. pois mesmo que o amor me sobre em cada pegada. e o
desejo de caminhar se prenda às pernas. e o destino a soma de todos os passos.
sei que sou o que vivo na terra das vontades. e que me faz ser o que sou às
vezes não sendo. e mesmo que um dia me falte a estrada. mesmo que a curva seja
eterna. é o meu nome que perdurará em cada pegada que inventei – descobri no
escuro das minhas noites a luz que me ilumina a vida – procuro a minha verdade.
o que presta e o que não presta em mim. tal como nos pede miguel torga no seu
poema. quantos seremos
Quantos
seremos?
Não
sei quantos seremos, mas que importa?!
Um
só que fosse, e já valia a pena.
Aqui,
no mundo, alguém que se condena
A
não ser conivente
Na
farsa do presente
Posta
em cena!
Não
podemos mudar a hora da chegada,
Nem
talvez a mais certa,
A da
partida.
Mas
podemos fazer a descoberta
Do
que presta
E
não presta
Nesta
vida.
E o
que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta
comédia desumana
E
triste,
Que
cobre de soturna maldição
A
própria indignação
Que
lhe resiste.
*mário de sá-carneiro
** albert camus
***jean-paul sartre
Sem comentários:
Enviar um comentário