I - insignificante
às vezes
sinto que já faleci. fecho os olhos e as dúvidas iluminam um corpo já quase sem
vida. e a mente infinita e elástica a explodir de medo – por cada fantasma uma
razão para não querer abrir os olhos. por cada dor a certeza de que ainda estou
vivo – a luz natural desaparece. as lâmpadas tomam o seu lugar. iluminam o que
está ao seu alcance. e resisto. nada mais posso fazer. estou demasiadamente fragmentado
para brigar com o escuro – conto as estrelas. uma a uma. e por fim. e por
desespero. deito-mo… fecho os olhos… e faleço para tudo que me faz viver. e a
cada amanhecer ressuscito para tudo que me faz morrer – no escuro sinto-me
sempre tão insignificante. sem nenhum castelo para guardar. sem nenhuma cadeira
para me sentar. sem nenhuma certeza para as dúvidas que me subtraem a noite –
pé ante pé. adentro para a caverna das impossibilidades. tudo é confusão. medo.
terror e morte desonrosa – mesmo assim. sobrevivo quando fecho os olhos… e
morro quando os abro – a vida é um desafio. às vezes indecente. às vezes
injusta. às vezes imoral. às vezes quase mortal. às vezes apenas com um
pequeníssimo estímulo para adiarmos para amanhã o que já não suportamos hoje – é
o destino que nos calhou em sorte. ou por mérito. ou por demérito. e um dia.
sem mais adiamentos. finamos por um mandamento interior que não podemos
desrespeitar. é como um impulso elétrico. um punhal que nos espetam de
certezas. uma oração que nos perdoa de todos os excessos e pecados. e tudo o
que era dúvida é agora uma oferta num embrulho irrecusável: paz para sempre – e
enquanto esperamos por esse mandamento. por aqui ficamos. a respirar
devagarinho para que ninguém nos ouça. a viver aos pouquinhos. a resistir
porque o seu contrário é covardia. a soletrar o nosso nome baixinho. a marcar
dias no calendário para assegurar que fazemos parte do mundo sensível – é
quando tomamos o silêncio como o último amigo. tudo o que for dito no desespero
da noite pode tornar-se letal com o nascer do dia – adiamos as dúvidas. as
promessas. as orações. o vento às gaivotas. adiamos tudo até que o corpo não
possa mais dizer: quero falecer – quando acordo. mesmo insignificante. mesmo a
valer nada. dou como certo a chegada de mais uma noite. mais uma ameaça ao siso.
e sofro. e a dúvida é se o meu padecimento é resultado da minha essência. ou
das escolhas que realizei por vontade – não sei. como poderia saber? mas para
cada desafio diurno terei o que sempre tive. audácia e esperança. talvez por
ser insignificante. e não caber em mim mais nada – e para cada himalaias apenas
um passo para a frente. e a certeza de que dor besta só me vencerá se o cume
não alcançar – se não fosse insignificante não haveria himalaias. as montanhas
existem para pessoas como eu: pensam. escrevem. desenham. pintam. traçam
bissetrizes até ao princípio do mundo. remexem o passado para nada mudar. e no
topo da minha capela sistina. uma cabeça tão miserável que confúcio nunca me
teria aceitado para seu aluno – resta-me resistir. pensar para existir. pensar
para não falecer – a minha noite está em oposição à infinitude da mente. é como
se o medo abstrato. filosófico. ou metafísico se tornasse real. como se tomasse
o corpo e o mergulhasse em ácido. e o medo do amanhã. que é meu por direito
próprio. me corroesse os ossos e me desfizesse em prantos – insignificantes.
bem sei – que mais poderia ser do que prantos insignificantes? creio que nada –
escondo-me na escuridão. preciso e amo as noites. à noite ninguém me vê.
ninguém sabe quem sou. ou o que faço. à noite sereno-me. procuro-me. procuro
também as dúvidas. e para cada uma. mais mil a trabalharem em mim. todas
impassáveis. todas a fazer dor. a fazer terror. e a única certeza dentro desta
devastação. são dúvidas a parirem mais dúvidas. e por fim. descarnado.
desesperado. depauperado de qualquer riqueza emocional. apenas uma certeza: amanhã
tudo será pior? e eu. falecido ou não. com dor ou sem. com perdão ou sem. caio
definitivamente no meu abismo. e faleço por uma vontade que não pode ser
contrariada. como se tomasse uma espécie de cicuta que me faz falecer no escuro.
e depois. com o nascer do dia. ressuscito para poder morrer novamente – mas no
dia em que morrer de vez. quando viajar para outro espaço sem dor e medo. sei
que o mundo acordará exatamente igual. nenhuma estrela no céu confiscará o meu nome.
nenhuma luz na terra alumiará a minha falta – já não tenho mais prantos. já não
tenho mais nenhum dote que me permita comprar uma vírgula para mudar a
história. terei que viver com dúvidas. e com a minha preciosa insignificância.
assumir o que sou. mesmo não sendo nada – a vida é um voo para morte. é como se
me tivesse atirado de um arranha céus há mais de 50 anos e andasse estes anos
todos à procura de um local para cair – não se morre com o impacto. morre-se
com a vontade de chegar ao solo. porque a morte física é apenas ausência e silêncio
– escrevo. escrevo sentimentos confusos. incluindo amor. morte. felicidade.
alegria. tristeza. medo. raiva. incompreensão. e para cada um deles um
palavrão: que se foda – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se
não durar mais do que um minuto. eu não deixarei nada que valha mais do que um
minuto – quando um homem falece nada do que fez tem valor se as bocas não falarem
de dor. eu não deixarei nenhuma obra em razão da dor – quando um homem falece. nada
do que fez tem valor se o sol não fizer sombra. eu cresci envolto em nuvens – mas
o que posso fazer se desistir não for solução? mesmo que o vento me cegue o
caminho. é na vontade de desistir que me nomearei cavaleiro. e darei [comigo] o
primeiro passo para a frente. mesmo que o meu nada tema medrar. mesmo que o meu
nada peça para não sofrer. pois estou certo. que um dia. alguém me há de
explicar o que sou. e porquê sou – quem caminha sozinho vai mais rápido. mas
quem caminha acompanhado. vai com certeza mais longe. clarice lispector – eu
vou com certeza chegar mais longe. caminho comigo. e com todos os eus que
carrego de nascença. e somos tantos. a falar. a dar opiniões. a dizer vai por
acolá. para logo outro dizer. é melhor por ali. mas que posso fazer se todos
são importantes. e de todos fiz caminho – confesso que não sei. já me habituei
a não os questionar. não quero compreendê-los. o que quero mesmo é chegar mais
longe. porque há coisas que não queremos saber. às vezes ser. e ter também. mesmo
que seja um dom divino. ou escolha do universo. o melhor mesmo é continuar
insignificante. vestir-me de louco. e viver pendurado numa janela. quem sabe um
dia ganho asas e passo a viver nas árvores. na natureza. na minha natureza –
quando um ser insignificante falece os sinos não dobram. nem choram. nem
gritam. acenam. e dizem sorrindo: já vais tarde. finalmente noites sem dúvidas
– estou certo que mais tarde. ou mais cedo. aprenderei a contar os meus eus. a
catalogá-los. e pedir-lhes que me nomeiem. eu. sampaio rego. fiel depositário.
e único herdeiro das suas vulnerabilidades. dores. desgraças e insignificâncias
– nós. queremos muito acreditar que é possível ir mais longe – e termino esta
primeira parte com um poema de agostinho da silva. in “poemas”
SONHO
Teria
passado a vida
atormentado
e sozinho
se os
sonhos me não viessem
mostrar
qual é o caminho
umas vezes
são de noite
outras em
pleno de sol
com
relâmpagos saltados
ou vagar
de caracol
quem os
manda não sei eu
se o nada
que é tudo à vida
ou se eu
os finjo a mim mesmo
para ser
sem que decida.
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