.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

09/03/2024

por ser o que sou - I

 






I - insignificante


às vezes sinto que já faleci. fecho os olhos e as dúvidas iluminam um corpo já quase sem vida. e a mente infinita e elástica a explodir de medo – por cada fantasma uma razão para não querer abrir os olhos. por cada dor a certeza de que ainda estou vivo – a luz natural desaparece. as lâmpadas tomam o seu lugar. iluminam o que está ao seu alcance. e resisto. nada mais posso fazer. estou demasiadamente fragmentado para brigar com o escuro – conto as estrelas. uma a uma. e por fim. e por desespero. deito-mo… fecho os olhos… e faleço para tudo que me faz viver. e a cada amanhecer ressuscito para tudo que me faz morrer – no escuro sinto-me sempre tão insignificante. sem nenhum castelo para guardar. sem nenhuma cadeira para me sentar. sem nenhuma certeza para as dúvidas que me subtraem a noite – pé ante pé. adentro para a caverna das impossibilidades. tudo é confusão. medo. terror e morte desonrosa – mesmo assim. sobrevivo quando fecho os olhos… e morro quando os abro – a vida é um desafio. às vezes indecente. às vezes injusta. às vezes imoral. às vezes quase mortal. às vezes apenas com um pequeníssimo estímulo para adiarmos para amanhã o que já não suportamos hoje – é o destino que nos calhou em sorte. ou por mérito. ou por demérito. e um dia. sem mais adiamentos. finamos por um mandamento interior que não podemos desrespeitar. é como um impulso elétrico. um punhal que nos espetam de certezas. uma oração que nos perdoa de todos os excessos e pecados. e tudo o que era dúvida é agora uma oferta num embrulho irrecusável: paz para sempre – e enquanto esperamos por esse mandamento. por aqui ficamos. a respirar devagarinho para que ninguém nos ouça. a viver aos pouquinhos. a resistir porque o seu contrário é covardia. a soletrar o nosso nome baixinho. a marcar dias no calendário para assegurar que fazemos parte do mundo sensível – é quando tomamos o silêncio como o último amigo. tudo o que for dito no desespero da noite pode tornar-se letal com o nascer do dia – adiamos as dúvidas. as promessas. as orações. o vento às gaivotas. adiamos tudo até que o corpo não possa mais dizer: quero falecer – quando acordo. mesmo insignificante. mesmo a valer nada. dou como certo a chegada de mais uma noite. mais uma ameaça ao siso. e sofro. e a dúvida é se o meu padecimento é resultado da minha essência. ou das escolhas que realizei por vontade – não sei. como poderia saber? mas para cada desafio diurno terei o que sempre tive. audácia e esperança. talvez por ser insignificante. e não caber em mim mais nada – e para cada himalaias apenas um passo para a frente. e a certeza de que dor besta só me vencerá se o cume não alcançar – se não fosse insignificante não haveria himalaias. as montanhas existem para pessoas como eu: pensam. escrevem. desenham. pintam. traçam bissetrizes até ao princípio do mundo. remexem o passado para nada mudar. e no topo da minha capela sistina. uma cabeça tão miserável que confúcio nunca me teria aceitado para seu aluno – resta-me resistir. pensar para existir. pensar para não falecer – a minha noite está em oposição à infinitude da mente. é como se o medo abstrato. filosófico. ou metafísico se tornasse real. como se tomasse o corpo e o mergulhasse em ácido. e o medo do amanhã. que é meu por direito próprio. me corroesse os ossos e me desfizesse em prantos – insignificantes. bem sei – que mais poderia ser do que prantos insignificantes? creio que nada – escondo-me na escuridão. preciso e amo as noites. à noite ninguém me vê. ninguém sabe quem sou. ou o que faço. à noite sereno-me. procuro-me. procuro também as dúvidas. e para cada uma. mais mil a trabalharem em mim. todas impassáveis. todas a fazer dor. a fazer terror. e a única certeza dentro desta devastação. são dúvidas a parirem mais dúvidas. e por fim. descarnado. desesperado. depauperado de qualquer riqueza emocional. apenas uma certeza: amanhã tudo será pior? e eu. falecido ou não. com dor ou sem. com perdão ou sem. caio definitivamente no meu abismo. e faleço por uma vontade que não pode ser contrariada. como se tomasse uma espécie de cicuta que me faz falecer no escuro. e depois. com o nascer do dia. ressuscito para poder morrer novamente – mas no dia em que morrer de vez. quando viajar para outro espaço sem dor e medo. sei que o mundo acordará exatamente igual. nenhuma estrela no céu confiscará o meu nome. nenhuma luz na terra alumiará a minha falta – já não tenho mais prantos. já não tenho mais nenhum dote que me permita comprar uma vírgula para mudar a história. terei que viver com dúvidas. e com a minha preciosa insignificância. assumir o que sou. mesmo não sendo nada – a vida é um voo para morte. é como se me tivesse atirado de um arranha céus há mais de 50 anos e andasse estes anos todos à procura de um local para cair – não se morre com o impacto. morre-se com a vontade de chegar ao solo. porque a morte física é apenas ausência e silêncio – escrevo. escrevo sentimentos confusos. incluindo amor. morte. felicidade. alegria. tristeza. medo. raiva. incompreensão. e para cada um deles um palavrão: que se foda – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se não durar mais do que um minuto. eu não deixarei nada que valha mais do que um minuto – quando um homem falece nada do que fez tem valor se as bocas não falarem de dor. eu não deixarei nenhuma obra em razão da dor – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se o sol não fizer sombra. eu cresci envolto em nuvens – mas o que posso fazer se desistir não for solução? mesmo que o vento me cegue o caminho. é na vontade de desistir que me nomearei cavaleiro. e darei [comigo] o primeiro passo para a frente. mesmo que o meu nada tema medrar. mesmo que o meu nada peça para não sofrer. pois estou certo. que um dia. alguém me há de explicar o que sou. e porquê sou – quem caminha sozinho vai mais rápido. mas quem caminha acompanhado. vai com certeza mais longe. clarice lispector – eu vou com certeza chegar mais longe. caminho comigo. e com todos os eus que carrego de nascença. e somos tantos. a falar. a dar opiniões. a dizer vai por acolá. para logo outro dizer. é melhor por ali. mas que posso fazer se todos são importantes. e de todos fiz caminho – confesso que não sei. já me habituei a não os questionar. não quero compreendê-los. o que quero mesmo é chegar mais longe. porque há coisas que não queremos saber. às vezes ser. e ter também. mesmo que seja um dom divino. ou escolha do universo. o melhor mesmo é continuar insignificante. vestir-me de louco. e viver pendurado numa janela. quem sabe um dia ganho asas e passo a viver nas árvores. na natureza. na minha natureza – quando um ser insignificante falece os sinos não dobram. nem choram. nem gritam. acenam. e dizem sorrindo: já vais tarde. finalmente noites sem dúvidas – estou certo que mais tarde. ou mais cedo. aprenderei a contar os meus eus. a catalogá-los. e pedir-lhes que me nomeiem. eu. sampaio rego. fiel depositário. e único herdeiro das suas vulnerabilidades. dores. desgraças e insignificâncias – nós. queremos muito acreditar que é possível ir mais longe – e termino esta primeira parte com um poema de agostinho da silva. in “poemas”

 

SONHO

 

Teria passado a vida

atormentado e sozinho

se os sonhos me não viessem

mostrar qual é o caminho

 

umas vezes são de noite

outras em pleno de sol

com relâmpagos saltados

ou vagar de caracol

 

quem os manda não sei eu

se o nada que é tudo à vida

ou se eu os finjo a mim mesmo

para ser sem que decida.



Sem comentários:

Enviar um comentário