.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

22/08/2022

pedras 1

 

 




[incerteza]

às vezes gostava de saber se falo porque penso. ou se falo para me fazer existir – não tenho nenhuma certeza verdadeira além da dúvida em que vivo. só o estridor provocado pela passagem irrequieta do ar me faz acreditar que existo mesmo sem pensar – às vezes ouço o mar. e mesmo não o vendo. sei que está algures por aí colorido de gaivotas e sal – às vezes em silêncio ouço-me. mas não me vejo. e pergunto: o que há dentro de mim que fala enquanto a boca se cala. não sei – qual a razão para que uma pedra exista num determinado lugar e não noutro? não sei. provavelmente não há nenhuma razão. se há ninguém sabe. eu pelo menos não sei nada do aparecimento de pedras. mesmo daquelas que carrego. nasceram-me nas costas. como as corcundas – e lá vou eu caminhando na incerteza. carregando a dor das pedras e da voz que se esconde atrás da boca – leminski no seu poema dor elegante fala deste sofrimento

 

Um homem com uma dor

É muito mais elegante

Caminha assim de lado

Como se chegando atrasado

Andasse mais adiante

 

Carrega o peso da dor

Como se portasse medalhas

Uma coroa, um milhão de dólares

Ou coisa que os valha

 

Ópios, édens, analgésicos

Não me toquem nessa dor

Ela é tudo o que me sobra

Sofrer vai ser a minha última obra

 

não sei se vou elegante. sei que vou. vou com a minha corcunda. empurrando as pedras de um lado para o outro para chegar mais adiante – mas não gosto das pedras. pelo menos destas que carrego. das outras nada digo. não são minhas e nada fiz para que existissem. quem as mereceu que se enfade. é labuta sua – e eu aqui a falar das pedras para evitar falar de mim. ou de pássaros. ou de malmequeres. pão com marmelada. água benta. ou desesperança – tanta incerteza – às vezes escrevo. e não sei se o que escrevo é resultado do que penso. ou escrevo para fazer existir o que não consigo trazer à boca – às vezes quero apanhar transporte para as maldivas. e ao fim do dia estou em monção – às vezes saio com uma roupinha levezinha. de verão. e vou sem pensar pelo meio das pedras como se não tivesse saído para lado nenhum. e sem que nada o fizesse adivinhar. o dia cresce para um inverno frio. de enregelar. e é quando penso: precisava de um casaquinho de lã para me aconchegar. ou de um abraço. ou de qualquer coisa que me devolva o calor – é o que a vida me deu. e lá voltam as incertezas. não seria mais fácil ir de avião para as maldivas em vez de me apear numa paragem de autocarro? apesar das incertezas. acredito que um dia apanharei o meu autocarro. e mesmo que não vá para as maldivas. irei para onde me levar – será nesta incerteza que um dia chegarei aonde nunca vivi. levar-me-ei à procura de um mundo que não termine atrás da boca. carregarei o que tiver que ser. e mesmo que o destino se faça numa pedra maior que a lua. dinamitá-la-ei com tudo o que resta de mim – mas se tiver que carregar a pedra-lua até ao fim do que sou. que nenhum ópio. édens. ou analgésicos me iluda com o que nunca tive. eu sou a incerteza maior. certo em mim só o tempo a passar – sacudo-me por dentro e por fora e pergunto: porque vivo neste sufoco de incertezas? darão as pedras sentido à dor que carrego sem elegância? seria o mesmo sem elas? escreveria sem este peso? não sei. o que sei é que ”tenho a verdadeira sensação de mim mesmo apenas quando eu estou insuportavelmente infeliz”* – esta sensação de mim acrescenta-me palavras. pedras e medo. digo. muitas palavras. muitas pedras… e ainda mais medo – não quero um édipo rei para os meus desabafos. mesmo que em cada um deles eu encontre mais incertezas do que dias vividos – viver não é uma tragédia. viver é a exponenciação de existir –**“não existe testemunha mais terrível. acusador mais poderoso. do que a consciência que habita em nós”. é esta consciência doentia que me faz trazer para fora da boca o que não consigo guardar. remexendo-me numa agonia absoluta. agitando-me. arrastando-me por cada canto de mim. gritando para lá do que me é permitido ouvir. escrevendo palavra a palavra mesmo quando a boca se contorce em clemência; sei agora que o que não sei escrever nunca existirá – ninguém pode dizer que está vivo se não existir para além de uma boca solta. digo eu. que não sei se falo porque penso. ou falo para existir – a dúvida é devastadora. envelheço carregado de pedras. como se vivesse dentro da fome com um manjar em cima da mesa – e o corpo preso a uma pergunta horrível. catastrófica na dor: porque me nasceram pedras nas costas? quero acreditar que existam para que um dia. talvez breve. possa despedir-me de mim sem saudade – triste forma de desaparecer – é tudo louco. é este ardor. este fervor. este trepar do feijoeiro malvado que me dá coragem para trazer à escrita o que digo em silêncio – acredito que um dia. mais perto do fim de tudo. quando as árvores já não suportarem o peso das andorinhas. possa saber tudo sobre pedras – por esses finais. sei que a delicadeza frágil dos dias iludirá o pensamento. pacificará a culpabilidade perfumando o caminho com jasmim forte e doce. oferecendo-me um pedaço do universo sem pedras e medo – farei então com as próprias mãos a cova onde me apagarei. oferecerei uma lágrima por cada dia perdido. por cada nome olvidado. por cada noite acesa. por cada estrela fundida. juntarei os pés um ao outro para nunca mais os separar. apontarei os olhos com coragem para o fim de tudo e deixar-me-ei cair para sempre no final deste mundo-pedra – será apenas o momento em que recusarei dar um pouco mais de mim

 

*franz kafka

** Sófocles