[incerteza]
às vezes gostava de saber se falo porque
penso. ou se falo para me fazer existir – não tenho nenhuma certeza verdadeira
além da dúvida em que vivo. só o estridor provocado pela passagem irrequieta do
ar me faz acreditar que existo mesmo sem pensar – às vezes ouço o mar. e mesmo
não o vendo. sei que está algures por aí colorido de gaivotas e sal – às vezes
em silêncio ouço-me. mas não me vejo. e pergunto: o que há dentro de mim que
fala enquanto a boca se cala. não sei – qual a razão para uma pedra estar num
determinado lugar e não noutro? não sei. provavelmente não há nenhuma razão. se
há ninguém sabe. eu pelo menos não sei nada do aparecimento de pedras. mesmo
daquelas que carrego. nasceram-me nas costas. como uma corcunda – e lá vou eu
caminhando na incerteza. carregando a dor das pedras e da voz que se esconde
atrás da boca – leminski no seu poema dor elegante fala deste sofrimento:
“Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha
Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra”
não
sei se vou elegante. sei que vou. vou com a minha corcunda. empurrando as
pedras de um lado para o outro para chegar mais adiante – mas não gosto das
pedras. pelo menos destas que carrego. das outras nada digo. não são minhas e
nada fiz para que existissem. quem as mereceu que se enfade. é labuta sua – e
eu aqui a falar das pedras para evitar falar de mim. ou de pássaros. malmequeres.
pão com marmelada. água benta. ou desesperança – tanta incerteza – às vezes
escrevo. e não sei se o que escrevo é resultado do que penso. ou escrevo para
fazer existir o que não consigo trazer à boca – às vezes quero apanhar
transporte para as maldivas. e ao fim do dia estou em monção – às vezes saio
com uma roupinha levezinha. de verão. e vou sem pensar pelo meio das pedras
como se não tivesse saído para lado nenhum. e sem que nada o fizesse adivinhar.
o dia cresce para um inverno frio. de enregelar. e é quando penso: precisava de
um casaquinho de lã para me aconchegar. ou de um abraço. ou de qualquer coisa
que me devolva o calor – é o que a vida me deu. e lá voltam as incertezas. não
seria mais fácil ir de avião para as maldivas em vez de me apear numa paragem
de autocarro? apesar das incertezas. acredito que um dia apanharei o meu
autocarro. e mesmo que não vá para as maldivas. irei para onde me levar – será
nesta incerteza que um dia chegarei aonde nunca vivi. levar-me-ei à procura de
um mundo que não termine atrás da boca. carregarei o que tiver que ser. e mesmo
que o destino se faça numa pedra maior que a lua. dinamitá-la-ei com tudo o que
resta de mim – mas se tiver que carregar a pedra-lua até ao fim do que sou. que
nenhum ópio. édens. ou analgésicos me iluda com o que nunca tive. eu sou a
incerteza maior. certo em mim só o tempo a passar – sacudo-me por dentro e por
fora e pergunto: porque vivo neste sufoco de incertezas? darão as pedras sentido
à dor que carrego sem elegância? seria o mesmo sem elas? escreveria sem este
peso? não sei. o que sei é que ”tenho a verdadeira sensação de mim mesmo apenas
quando eu estou insuportavelmente infeliz”* – esta sensação de mim
acrescenta-me palavras. pedras e medo. digo. muitas palavras. muitas pedras… e
ainda mais medo – não quero um édipo rei para os meus desabafos. mesmo que em
cada um deles eu encontre mais incertezas do que dias vividos – viver não é uma
tragédia. viver é a intensificação de existir –**“não existe testemunha mais
terrível. acusador mais poderoso. do que a consciência que habita em nós”. é
esta consciência doentia que me faz trazer para fora da boca o que não consigo
guardar. remexendo-me numa agonia absoluta. agitando-me. arrastando-me por cada
canto de mim. gritando para lá do que me é permitido ouvir. escrevendo palavra
a palavra mesmo quando a boca se contorce em clemência; sei agora que o que não
sei escrever nunca existirá – ninguém pode dizer que está vivo se não existir
para além de uma boca solta. digo eu. que não sei se falo porque penso. ou falo
para me fazer existir – a dúvida é devastadora. envelheço carregado de pedras.
como se vivesse dentro da fome com um manjar sobre a mesa – e o corpo preso a
uma pergunta horrível. catastrófica na dor: porque me nasceram pedras nas
costas? quero acreditar que existam para que um dia. talvez breve. possa
despedir-me de mim sem saudade – triste forma de desaparecer – é tudo louco. é
este ardor. este fervor. este trepar do feijoeiro malvado que me dá coragem
para trazer à escrita o que digo em silêncio – acredito que um dia. mais perto
do fim de tudo. quando as árvores já não suportarem o peso leve das andorinhas.
possa saber tudo sobre pedras – por esses finais. sei que a delicadeza frágil
dos dias iludirá o pensamento. pacificará a culpabilidade. perfumando o caminho
com jasmim forte e doce. oferecendo-me um pedaço do universo sem pedras e medo
– farei então com as próprias mãos a cova onde me apagarei. oferecerei uma
lágrima por cada dia perdido. por cada nome olvidado. por cada noite acesa. por
cada estrela fundida. juntarei os pés um ao outro para nunca mais os separar.
apontarei os olhos com coragem para o fim de tudo e deixar-me-ei cair para
sempre no final deste mundo-pedra – será apenas o momento em que recusarei oferecer
mais de mim ao mundo
*franz
kafka
** sófocles
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