[saudade]
tenho saudade de ser criança. tenho saudade
de dar a mão ao senhor meu pai. de me sentar no colo da senhora minha mãe.
tenho saudade do tempo em que desejava o que ainda não existia. de querer o
impossível. da infinidade do corpo. de me encontrar sem castigos – o tempo
voou. e com esse voo chegaram os relógios. os dias. as normas. os valores. os
princípios. o amor. a desculpa. a etiqueta. a mentira. a honra. a insegurança.
a maldade… e o fim da pureza – tornei-me pecador – a vela do batismo apagou-se.
passei a viver entre a noite e o dia. entre o certo e o arrependimento. entre
amar os outros e amar o que sou. tornei-me um soldado ao serviço da estupidez.
inventei a maior idade. forjei desejos para os castrar com manigâncias. e criei
infernos para poder viver o céu – agora. já não desejo o impossível. a minha
criança interior é. humildemente. um forasteiro resignado – o que gostava mesmo
de saber é se escrevo porque penso. ou se escrevo para me fazer existir. mas
não sei. acredito que nunca saberei – agora vivo entre nostalgia e medo. é
nesta fraqueza que me sento a escrever. interrogando-me. o que mais virá para
fazer de mim um defunto? estou aqui. talvez quase morto. talvez só medo. talvez
as duas coisas. talvez… nem sei. estou qualquer coisa. que não sabendo dizer
bem que coisa é. digo assim para que me entendam: estou pré-morto – ruy belo no
seu poema a mão no arado escreveu: é triste ir pela vida como quem regressa e
entrar humildemente por engano pela morte dentro – eu escrevo. sim. é triste –
cavei um fosso até ao centro da terra. e é com essa terra que me cubro
diariamente – vou de norte para sul. sempre dos pássaros de ruy belo para as
minhas gaivotas. sempre de romeu para a julieta. sempre de mim para os que amo
ilimitadamente – não se ama muito. ama-se. nenhum amor é demais. por isso me
curvo em gratidão para todos aqueles que me ensinaram a amar sem limites – sou
um homem perdido de amores. amo os meus pais com saudade. a minha companheira.
os meus filhos. as minhas noras. os meus netos. os meus irmãos. os meus amigos.
alguns recentes. outros. da minha nascença. amo viver. amo as gaivotas. o mar.
os meus cães. e esta sensação de quem ama. às vezes até amo as pedras que
carrego – que mais pode um homem viver se não o amor? só a harmonia. os afetos.
o perdão. e a compaixão dão sentido à nossa pegada terrestre – beethoven a
tocar. a empurrar-me para o tempo dos esquecidos. enquanto as mãos massajam o
coração para que não pare sem que o buraco chegue ao outro lado do mundo –
pudesse eu ter sido água do rio. e um dia. talvez morasse no fundo do mar – mas
não fui água. nem jangada. nem peixe. nem margem para que ao menos pudesse ver
a água passar. fui… sei lá bem o quê. fui… às vezes crescido em demasia.
outras. parado a olhar a imensidão de tudo o que me rodeava. a interrogar-me.
porque há peixes pequenos se o mar é tão grande? carrego o meu próprio destino.
e nunca consegui um antídoto para o largar no abismo das coisas sem resposta –
somos o que somos. nasci com esta sorte. agora… procurar-me é a minha distração
– aqui ando. sem eira nem beira. a avaliar as incertezas. às vezes a olhar o
universo. às vezes a contar os dedos dos pés. com as mãos atravessadas no que
julgo certo em mim. a suicidar-me pelo que não sei. sem que nenhum rio me
queira levar. sem que nenhum pássaro me queira para descansar. sem que nenhum
mágico me queira fazer desaparecer – fui por onde atalhei. às vezes como
peregrino. às vezes a pé por desgraça. outras a correr por não saber parar sem
morrer. mas fui. fui sem nunca perceber que o mundo não pode oferecer a todos o
que não chega para alguns – triste destino que me levou como um conto. de
pedras me carregou. com atalhos me iludiu – o relógio é carrasco do erro –
agora. no tempo que me castiga. só quero saber se escrevo porque penso. ou se
escrevo para me fazer existir – somos o que somos. cumpramos então o que somos
– o que quero mesmo. sim. o que quero mesmo. é um dia chegar ao mar. mas se
nenhum rio me carregar. se nenhum pássaro me levar. irei dependurado num balão.
e quando uma onda me exaltar. deixo-me cair até que os olhos se afoguem na
escuridão. e se um tubarão me engolir. que me leve em silêncio para o fundo do
mundo – preciso de harmonia e paz. preciso de me encontrar novamente com o
impossível. acreditar. serenar e aceitar. nada é pior de que um corpo
esquartejado de sonhos – estou cansado. sinto as mãos a abrandar. e o corpo a
mingar. mas se o meu cérebro tivesse pedais… juro que subia ao santuário da
senhora da graça. e quem sabe contar-lhe-ia uma desgraça: falava-lhe de mim e
do meu destino. e sem a maçar. mostrava-lhe a gaveta onde me escondo quando me
perco em interrogações. fica num baixio. mesmo por detrás do olho esquerdo. ao
lado do ouvido. e por baixo da língua. é aqui que todos os dias faço o milagre
da incerteza sobreviver ao destino – porque me carregaram as costas de pedras
se nem pedi para nascer? estou enfermo. sinto o corpo a bracejar. a resmungar.
sinto a loucura a chegar silenciosamente. devagarinho. só para não assustar – e
eu por aqui. a pensar. um dia hei de encontrar-me com as palavras e farei o meu
epitáfio: aqui. nesta urna de cinzas. vive a única certeza de quem nasce
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