[ao
sétimo dia descansa]
I.
em criança. ao domingo. o assado
deslizava furtivamente pelo corredor da minha casa-família. *“era uma casa -
como direi? - absoluta” – o génio da carne assada. em concertação com a
doutrina da igreja católica. e também com a dos meus pais. libertava-se do
aparador em folguedo anunciando aleluias: “bendito seja o senhor. que de dia em
dia nos cumula de benefícios. salmos 68.19” – assim era a minha casa. de
absoluta gratidão: eu. o meu pai. a minha mãe. a minha irmã. o meu irmão. a
minha lurdes. todos felizes. todos crentes na senhora do sameiro. e gratos por
nos acolher na sua graça e proteção – eram domingos absolutos. numa casa
absoluta. num amor também absoluto. com comida melhorada. roupas melhoradas.
sorrisos melhorados. e quando nada falta. nem se ralha. nem o pão amarga – a
bondade de deus morava na minha casa – eu crescia num quarto enorme: uma cama
de bilros parada a norte. duas mesinhas de cabeceira amarradas a dois abajures.
e à direita um guarda-vestidos a esfregar-se no teto – a sul. uma cómoda
aformoseada com um espelho mágico que. quando lhe perguntava quem era a criança
mais feliz do universo respondia: és tu – à esquerda uma cadeira forrada a
veludo. e uma janela aberta ao mundo. tudo iluminado por um candeeiro pregado
ao teto – era um quarto feliz com uma criança absolutamente feliz. que sonhava
sem saber que um dia ia crescer – antes do sino do carmo bater chamamento. já o
cheiro à carne assada lembrava que era dia de comungar – depois de percorrer a
casa absoluta. divisão a divisão. entra pelo meu quarto. e pé ante pé. toma de
assalto o meu sistema olfativo e. delicadamente. desenlaça-me as pálpebras do
escuro – as pupilas apanham as primeiras nesgas de luz. o corpo vira-se para um
lado. depois para o outro. espreguiça-se até não crescer mais. sorri como quem
acaba de nascer pela primeira vez. e abre-se graciosamente como um girassol
para mais um dia a medrar
--
toca a levantar. vais chegar atrasado à missa
bradava
a minha mãe socorrida pela lurdes
--
menino zé luisinho. levante-se já passa das onze
o
sétimo dia era do senhor. e na minha casa as leis do senhor eram levadas a
preceito. visitar a igreja fazia parte do cardápio domingueiro juntamente com
sustento melhorado. “nem só do pão o homem viverá. mas de toda palavra que
procede da boca de deus. mateus 4.4” – já com os olhos acesos de pressa. pulava
do ninho e corria em velocidade para a casa de banho. atirava apressadamente
duas mãozadas de água para a face. um pente corrido com mestria ao cabelo. e
por fim. umas bombadas de laca para
fixar a poupa – em espera. aos pés da cama. a roupa domingueira. bem dobrada e
passada. a cheirar a sabão e generosidade; aprumava-me ajustando-a ao corpo.
calça com vinca. camisa alinhada. e sapato de couro polido a graxa. pronto.
bonito e asseado para receber o senhor em mim – de seguida. uma chávena de
leite com cevada e uma bucha de pão. e lá ia eu em passo de quem é
bem-afortunado – voava em perdão até à casa do meu senhor – mal entrava
no templo dava de frente com o meu cristo pregado à cruz. confesso que nunca me
habituei à brutalidade daquela imagem. àquele ar sofrido. com os olhos virados
para o chão. com uma chapa em cima da cabeça a dizer que era o rei dos
nazarenos. e ali pregado com taxas. com espinhos selvagens a magoar mais do que
o corpo. e eu sem perceber de onde vinha tanta malvadez – aquela imagem
roubava-me a inocência – fazia-lhe então uma vénia respeitosa desenhando com a
mão direita uma cruz em mim. cabeça bem encaixada nos ombros. orgulhoso. orgulhoso
da minha linhagem. subia até ao altar-mor. ajoelhava-me pesarosamente para o
sacrário. onde a píxide. o ostensório. e a eucaristia estavam guardadas. e logo
procurava um lugar onde o santíssimo pudesse ver a minha devoção – sentava-me
calmamente. e ali ficava estático até que a palavra litúrgica se fizesse ouvir
– o sr. padre era um homem de palavra. anunciava a pregação para as onze e
trinta. e ao bater da meia. lá vinha ele. sempre com cara de quem era
perseguido pelo rei herodes – atrás dele. dois acólitos novinhos que. com as
suas túnicas brancas. mais pareciam anjos acabados de sair da cozedura –
sisudo. a olhar o chão. ajoelhava-se para onde o senhor estava escondido e. de
seguida. abria o livro sagrado – ali estava eu. cheio de fé. sem nada que me
pesasse no corpo. nem pedras. nem a consciência. nem pecados mortais. nem
omissões – naquele tempo o pecado venial era a minha distração de criança. um
palavrão ali. outro acolá. uma mentira à lurdes. uma resmunguice com a minha
mãe. mas com o meu pai… não ousava sair da linha. tinha uma mão que parecia uma
máquina de lavar. torcia mesmo a frio – velava a missa com devoção. levanta-me
sempre que os crentes se levantavam. eles já conheciam o andamento litúrgico de
trás para a frente. eu era noviço. mas quando o senhor padre arrancava a
plissar com o ato de contrição. e proferia por minha culpa. tão grande culpa.
batia com a mão no peito com tanta força que as costelas até rangiam – era um
bom miúdo. sem nenhuma pedra às costas. sem culpa de nada. inteiramente crente.
já com a primeira comunhão feita. confessado e absolvido por três pai-nossos e
duas ave-marias. puro como o branco. e com a alma entregue aos desígnios de
deus até ao dia do juízo final – a missa ia andando no seu passo secular. e eu
ia fazendo o que era exigido a um bom menino. rezava o pai-nosso. fazia o sinal
da cruz com elegância. orava pelos falecidos. pelos santos. pelos infiéis.
pelas missões. pela família. pela salvação do mundo. e cobria-me de vergonha
sempre que o ministro de deus erguia a hóstia consagrada e dizia: “tomai e
comei. isto é o meu corpo que será entregue por vós”. e a sineta. na mão de um
acólico. agitava-se a exigir silêncio absoluto – eu também dentro de mim –
depois. comungava. sentia deus tomar conta das minhas entranhas. pedia saúde.
luz. proteção para toda a família. e esperava ansiosamente pelas últimas
palavras do dono daquela gente toda: “ide em paz e o senhor vos acompanhe” – e
lá ia eu em passo feliz. agora livre de pecados que nunca tinha tido – hoje.
sei que nenhuma criança no mundo é pecadora – acelerava para um assado que não
podia esperar. muito menos o meu pai que ao bater da uma hora estava sentado à
cabeceira da mesa
II.
hoje é domingo. acordo. procurei pelo
assado. cheirou-me a pedras. procurei pela minha mãe e não a senti. o meu pai
já não vem almoçar há mais de vinte anos. e a lurdes. já não me manda correr
para a missa das onze e trinta. sabe que perdi a fé – entreguei-me ao universo.
serão as suas forças que me carregarão até a última morada: com fogo vos
abandonarei. e em cinzas habitarei o mar – dessa casa absoluta resta-me a
lurdes. a conspirar a nosso favor há cinco gerações; tratou dos meus bisavós.
avós. dos meus pais. de mim e dos meus irmãos. das minhas sobrinhas. dos meus
filhos. e agora é a bisa também dos meus netos – a lurdes ainda mantem a mesma
fé. devota da virgem maria. a nossa senhora. a filha de deus pai. a mãe de deus
filho. esposa de deus espírito santo – todos os nossos problemas são negociados
por ação direta da lurdes com deus. escuta a missa diariamente na rádio
renascença. e em troca da sua devoção. pede proteção para todos aqueles que ama
– acredito que não haverá ninguém mais influente junto de todo o poderoso do
que a lurdes. fala com ele todo o dia. diria que são unha com carne – é a
lurdes quem ainda pede perdão para as minhas faltas. jura ao seu deus que ainda
sou o mesmo menino. só que envelheci e desencantei-me – este deus da lurdes
nunca quis nada comigo. nunca percebi o porquê. nunca lhe fiz nada de mal. mas
vá-se lá saber as suas razões. carregou-me de pedras – tempos houve em que
acreditava na passagem bíblica - romanos 11.33: “quão insondáveis são os seus
juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” – a lurdes diz que a minha
falta de fé é obra do diabo. coisa de
satanás. que tem mil chifres e mil
formas de nos fazer pecar. mas que deus não dorme. está em todo lado. e nunca
abandona uma ovelha do seu rebanho – não sei se é ou não verdade. o que sei é
que tenho duas hérnias e já não tenho lida para carregar pedras que não mereço
– vida severina. o tempo escapa-se de mim. e eu a correr sem saber para onde.
como se ainda pudesse chegar a algum lado. como se ainda fosse possível voltar
atrás e começar de novo. como se o sino do carmo voltasse a bater o meu nome –
nos dias em que me dou ao mundo. olho para as mãos e pergunto: quais são os
teus desígnios se o que penso teima em não se fazer palavra? estou agora preso
ao universo de aromas. a recordar a minha fé absoluta. numa casa também ela
absoluta. a pedir que o sino não bata a defunto enquanto não tiver respostas –
preciso de saber se escrevo porque penso. ou escrevo para me fazer existir –
agora. começo a habituar-me a viver cada dia como se fosse o último. a
resistir. a sobreviver. e por cada raio de luz que colho. desato um sorriso ao
universo. às vezes apaixonado. às vezes encantado. às vezes zangado. desiludido
também. às vezes apenas por me sentir quase pronto para a invisibilidade. e é
quando parto para o lado oposto de mim. e ali fico criança. à espera que o céu
me caia nos braços
*herberto Hélder
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