I.
será que atingi a
maturidade na escrita? será que a idade sénior me protegerá de escrever
tontarias? não sei. gostava de ter uma bola de cristal. mas não tenho – a minha
dúvida é que seja uma espécie de automóvel tuning. que vai sofrendo alterações.
às vezes para parecer mais bonito. noutras. mais competitivo – comecei por aparelhar
umas jantes mais largas. para me amarrar melhor às palavras; depois. abri um teto
para mais facilmente ser ouvido quando peço perdão; não satisfeito. meti dois faróis
xénon para ver melhor o caminho – medroso. alterei a suspensão para aguentar os
solavancos gramaticais. e para me defender. comprei um rádio com colunas a
debitar 1000 decibéis. às vezes precisamos de calar o mundo – por último.
mandei apetrechar dois “bofantes” cromados para impressionar. tipo carro de
corrida. mas que não corre para lado nenhum. faz barulho por ter o escape roto
– lembro-me do dia em que comecei a acelerar. e fui pela vida da escrita. ganhando
coragem a cada passo. a cada quilómetro feito de passos. e um dia distraí-me. e
quando olhei para o conta-velocidade tinha ultrapassado os cem quilómetros
horários – que loucura. vidro aberto e aquela sensação incrível do vento a
misturar-me o léxico. as palavras a esvoaçar. e o cérebro em êxtase aos gritos
de aflição. anunciando a todo momento a fusão de um punhado de vocábulos. o
nascimento de um grande texto – o ponteiro do velocímetro a trepar incrédulo pela
potência. o cabelo a imitar os braços do boneco da michelin. e os óculos ryban.
a sorrirem para o retrovisor. e os lábios a sublinhar suavemente o pensamento:
para a frente é o caminho. nada do que escrevi
merece recordação – vivia um tempo feliz. excêntrico. acreditava que um dia
deixaria de ser carro tuning e passaria a um avião de combate. um F16 – depois.
passei os cento e vinte. e comecei a olhar para trás à procura da brigada. e a
perguntar-me. será que algum critico literário ou apenas leitor. mandar-me-á
parar? talvez um dia aconteça. é inevitável. é o risco de quem se expõe – mas o
que me preocupa não é a chuva. é se um desses entendidos me disser: -- o
cavalheiro fica sem carta definitivamente. é um perigo para a arte. o melhor
para si. e para todos os que gostam de ler. é confiscar-lhe o lápis. obrigá-lo
rapidamente a parar de escrever – continuei a acelerar. e a escrita cada vez
mais em pânico. sempre que passava por um radar sorria. ficar bem na fotografia
é o desejo de todo escritor – sorrindo talvez apanhe apenas uma contraordenação
primária. uma advertência. ou trinta dias de suspensão – quando escrevemos
tornámo-nos vaidosos. e acreditamos piamente que um dia podemos ter uma
pontinha de sorte. e quem sabe. tornarmo-nos no melhor escritor da nossa rua – palerma.
estou farto de saber que a sorte dá muito trabalho – no entanto. a ingenuidade
alimenta a criança que teima em viver no meu corpo adulto – continuei a
acelerar. quem não gosta de andar depressa com as palavras? encosto aqui.
para-choques a raspar por ali. arranhão acolá. mas sempre a teimar. pensava
para mim: enquanto não capotar o caminho é para a frente – comecei de triciclo.
virei de pernas para o ar centenas de vezes e nunca desisti – depois. passei
para a bicicleta. e as marcas de lamber o alcatrão cravaram-se-me no corpo.
mais uma vez recusei resignar – agora. que tenho quatro rodas. um travão
servofreio com sensores ABS. cinto de segurança em diagonal. e airbags duplo
frontal. também não vou abandonar as palavras – passaram vinte e cinco anos. as
palavras estão mais maduras. eu também. já não estou tão vaidoso. e na minha
simplicidade. quero acreditar que atingi a velocidade do som. claro que ainda
não sou F16. muito menos um foguete capaz de me levar ao espaço. mas labutei-me
muito por dentro. afinei-me para corridas trabalhosas. acredito que um dia
chegarei a um paris-dakar – não sei. mas que importa. chegarei onde tiver que
chegar – também aprendi a colocar o ouvido nas palavras. e agora ouço o seu
trabalhar. como quando o médico coloca o estetoscópio sobre o coração. e diz:
-- respire fundo – e máquina a trabalhar ao ralanti. num batimento certo. e as
palavras a trabalhar dentro dele. e eu com as mãos ansiosas por mais prazer.
com as palavras presas às pontas dos dedos. excitadas. os dedos também. e no
cérebro hauser a tatear um noturno em dó sustenido menor de frédéric chopin. e
o papel branco a desenvolver-se. a sonhar com uma história de amor
correspondido. a oferecer-se ao escritor
Sem comentários:
Enviar um comentário