3. terceiro dia de
trabalho
7.30 da manhã entro na fábrica. com um pé ao acaso. ainda
não tinha compreendido que na vida um toque de superstição não faz mal a
ninguém. encantonei-me junto à secção de corte. sem saber muito bem o que me
esperava. nervosíssimo e cheio de temor. com os olhos escondidos. aguardava
pelo toque das oito – as mulheres-operárias iam entrando. marcavam o relógio de
ponto. uma a uma davam o bom dia ao filho do patrão. deitavam os olhos ao chão
e esgueiravam-se em passo ligeiro para o seu posto de trabalho – a meu lado. os
meus colegas de corte arrumavam-se calmamente nas suas mesas e começavam a
amolar as facas. num vai e vem da lâmina. rasgando a lixa e o aço. ora com um
lado da faca para baixo. ora para cima. num movimento de pulso firme e ritmado.
certo. como se houvesse um metrônomo a marcar o tempo de ida e volta – as
mulheres mesmo sem quotas. não havia ainda qualquer lei da paridade. estavam em
grande maioria. sempre estiveram neste ramo da confeção – os minutos galopavam.
a ansiedade galopava com o relógio. sem imaginar que iria dar início a um
trabalho de vinte e dois anos – quando levantei os olhos do chão mesas e
máquinas estavam ocupadas. embaladas por um barulho miudinho. cochichos sobre a
minha chegada. curiosas por saber qual
função teria o filho do patrão – seriam mais ou menos quarenta mulheres. mais
quatro homens no corte. um nos acabamentos. um no armazém. e mais três
administrativos. incluindo a minha irmã – o pessoal da contabilidade só entrava
às oito e trinta. era gente com outra graciosidade nos gestos e na fala. mais
citadinos. mais cultos. e por via desse refinamento eram os donos das contas –
a campainha começa a ressoar. tocada pelo encarregado geral. oito horas em
ponto. nas fábricas não há tolerância de ponto. oito horas são mesmo oito horas
– no fim do zunido houve uns microssegundos de silêncio que se estendia por
toda a fábrica – uma explosão de barulho varre todo o silêncio. as máquinas de
costura arrancam agitadas. tinham pela frente oito horas de ziguezague – era um
trabalho duro e de muita responsabilidade. na pele não se pode recuar um ponto.
para além de que uma qualquer desatenção e o dedo fica debaixo da agulha – um
ofício de costas dobradas. braços a carregar material. pernas no pedal. e olhos
fixos numa agulha que não cessa de saltar para cima e para baixo. sem dúvida o
trabalho mais pesado de toda a produção – todo mundo labuta. ao contrário do
liceu que havia sempre mandriões como eu. só trabalhava quando me apetecia ou
quando resolvia frequentar as aulas – o meu irmão já estava a postos. pegava
também às oito e era sempre certíssimo. um autêntico relógio suíço. dos caros.
nunca se atrasava. nunca o vi chegar depois da hora – a minha mãe metida no
meio das mulheres distribuía trabalho. sempre numa lufa-lufa. chamava por esta
e aquela. tudo girava sobre a sua orientação – sempre com um ar de preocupada.
como se trouxesse o mundo às costas. rodava de mesa em mesa gesticulando com
autoridade – depois da ronda. estando todo o material distribuído e certa de
que nada as faria abrandar. embrenhava-se numa mesa a ajudar – o sr. arlindo.
encarregado geral. veio ter comigo. leva-me para a mesa dos forros. chama o
alberto. o mais qualificado na arte de golpear a pele. manda-o preparar uma
faca e uma tala da lixa para amolar o fio. e recebo a minha primeira lição na
arte de amolar – nunca me dei bem com os amolanços. nunca consegui pôr o fio da
faca como um profissional. ficava sempre como um formão. não havia manómetro
que me guiasse a mão. o que me roubava precisão. os cantos e reentrâncias
precisavam sempre de duas ou três passagens para concluir o corte. um desastre
– colocam-me em cima da mesa os moldes de uma determinada bolsa. nunca imaginei
que levasse tantos. teria trinta a cinquenta. felizmente que os do forro eram
menos. mas mesmo assim. quase uma dezena. uma confusão – o alberto começa a
colocar os moldes em cima do forro. chama-me atenção para o desperdício e
alerta-me para a necessidade de os encaixar uns nos outros. era fundamental
evitar desperdício de material. no poupar residia a arte de um cortador de
primeira categoria – por último o perigo da faca resvalar no molde e cortar um
dedo. claro que não evitei alguns cortes. era um novato habituado à
esferográfica – e pronto. chegara o momento de provar o que valia. estava por
minha conta. anos e anos de malandrice e dez minutos de formação profissional –
não me lembro quantos forros fui obrigado a cortar naquela minha primeira
referência. mas também não era importante. o trabalho nunca acabava. o meu
estudo sim. mal começava – ainda não tinha chegado o meio da manhã já eu dava
voltas e voltas à minha cabeça. percebi rapidamente que foi um erro. não tinha
necessidade nenhuma de ali estar. mesmo sendo um estudante medíocre – o orgulho
derrotou-me. empurrou-me para um mundo que só passados muitos anos percebi. e
apesar de me ter apaixonado pela criação de moda. que nunca fui verdadeiramente
eu naquele ofício. nem creio que os meus irmãos também alguma vez tenham sido
inteiramente felizes – não somos da arte dos negócios. somos emocionais. e quem
vive do coração nunca é feito para ser um bom industrial – tudo fiz para
esconder este meu lado afetivo. durante muitos anos fui o patrão mais exigente
dentro daquela empresa. algumas vezes muito duro. tinha objetivos que queria
atingir. queria ser o número um. e talvez por isso. apesar de querer ser o
número um. apesar de me forçar a sê-lo. era ali no meio dos modelos e das
ideias que me sentia inteiro – naquele tempo lidar com o pessoal era muito
complicado. ainda não se falava em produtividade como nos dias de hoje. e muito
menos em competitividade – havia um outro sector da empresa muito importante:
os vendedores. eram um pouco como os propagandistas. lábia e uma conversa
afinada fazia toda a diferença no total de vendas – nunca gostei de vender.
ainda hoje não gosto. tínhamos seis ou sete vendedores espalhados pelo país.
mas quando era exigido a presença de um responsável da empresa junto de um
cliente. pedia sempre aos meus irmãos para me substituírem – os dois eram muito
melhores na arte de impingir mercadoria. principalmente a minha irmã. tinha
herdado esse jeito do meu pai. eram mais profissionais. vendiam mesmo sem
gostar. para mim isso era impensável. para além de serem mais atenciosos. mais
sorridentes – o que eu gostava mesmo era de estar dentro da fábrica. gostava de
máquinas. do cheiro à cola. à pele. e daquela gente que com as mãos fazia quase
tudo – mas onde me realizava. era no gabinete de design e modelagem. era neste
espaço mágico que se criavam todas as coleções – fomos a primeira empresa do
ramo a ter uma equipa de modelistas. o crescimento da empresa a isso obrigou.
no começo a criação de modelos era feita pela minha mãe. quem mais senão ela –
esta equipa. não fazia mais nada a não ser tratar da criação de novos modelos –
era um trabalho infernal. de seis em seis meses tínhamos que criar sessenta
modelos de bolsas. cinquenta cintos de senhora. mais uma dezena de homem.
quatro ou cinco coleções de viagem. tendo cada coleção pelo menos vinte a
trinta modelos. e mais quase uma centena de marroquinaria de homem e mulher –
quando terminávamos as coleções. estávamos completamente esgotados – a par da
confeção dos novos modelos tínhamos que calcular a previsão de vendas.
orientávamo-nos apenas pela experiência e intuição. só com esta arte de
adivinhação era possível começar a fazer compras da matéria prima. centenas de
coisas difíceis de enumerar. trabalhávamos sem rede. o fabrico era feito em
cima das vendas – era um trabalho extenuante. às vezes completamente louco. os
problemas sucediam-se e o improviso era a nossa maior arte – hoje sei que não
seria possível manter aquele ritmo por muito mais tempo. era imensamente
desgastante. valia-me a idade e uma vontade enorme de vencer – depois do
encerramento da fábrica fui pela primeira vez verdadeiramente feliz. não por
escassos momentos. mas durante muito tempo. nem sabia que era possível ter
tanto espaço para ser feliz. reencontrei-me com a família. voltei a estudar. e
finalmente. comecei a ler. essa viria a ser a minha grande paixão. e logo logo
comecei a escrever. faço-o há vinte e quatro anos. todos os dias. seis horas no
mínimo – há males que vem por bem. nunca teria sido o pai que fui. nem o
marido. nem teria sabido separar os bons amigos dos maus. tornei-me exímio
nesta triagem. rapidamente percebo o que está dentro do invólucro – no entanto.
tenho que ser sincero com uma coisa. tudo o que sei e o que sou aprendi na
nossa empresa familiar. e aprendi imenso. entrei um miúdo irresponsável e
aquela gente fez-me homem. prepararam-me para a vida. foi uma experiência
fantástica – confesso que nunca recuperei totalmente daquele encerramento
forçado da empresa. estávamos a escassos anos de nos tornarmo-nos líderes
destacados do mercado nacional. fiquei muito zangado. com raiva dos políticos.
os primeiros tempos foram muito difíceis – não sei se alguma vez vou conseguir
dormir sem que os pesadelos me assaltem o descanso. às vezes dói muito – a
fábrica deu-me autoestima. acreditava em mim. acreditava que tudo o que fazia
teria sucesso. e tive muito. e quanto mais conseguia. mais queria. queria
sempre fazer mais coisas. queria aumentar a produção. fabricar novos produtos.
queria estar sempre na vanguarda da moda. queria ter a primeira cor. a primeira
inovação. a primeira máquina. queria um mundo perfeito. com o envelhecimento
compreendi que o ótimo é inimigo do bom – tinha tantos sonhos. não pensava em
mais nada a não ser tornar-me cada dia melhor. tinha a certeza de que mais
tarde. ou mais cedo. seriamos uma marca de referência nacional e internacional
– apesar de ser muito exigente com todos os colaboradores nunca disse não a
nenhum. fosse o que fosse. tantas vezes critiquei o meu pai pela proximidade
com os funcionários e aí estava eu. igual ou mais próximo ainda – o mais
difícil era gerir os egos dos chefes de secção. passei as passas do algarve
para manter a equipa unida até ao último dia da empresa. felizmente nunca me
abandonaram. principalmente a margarida e o paulo. caíram como árvores. firmes.
de pé. agoniaram a meu lado. e deram-me a oportunidade de encerrar a empresa
com a dignidade possível. fizemos contas com todos os trabalhadores. apenas uma
funcionária não aceitou o acordo – ainda hoje. sempre que me cruzo com qualquer
um deles. saudámo-nos com carinho. é bom saber que ficaram com o melhor de mim
– o mundo do trabalho é complicado para qualquer pessoa que está a dar os
primeiros passos. acredito que em todas as profissões o primeiro dia será
sempre lembrado. mas eu tinha levado uma vida de rambóia. sempre bem vestido.
com dinheiro no bolso. com os mesmos amigos de rua. amava os meus amigos. a
partilhar todas as brincadeiras de manhã à noite. a planear passeios e viagens
à volta do mundo. a olhar as pernas das minhas colegas de liceu. levemente
escondidas atrás de minissaias. a não ter que pensar no dia seguinte. a mandar
o futuro lixar-se. e de repente tudo acabara. estava prisioneiro do toque da
campainha – na fábrica não se parava de hora em hora como no liceu. o único
toque de intervalo era para almoçar. não podia ir ao bar. nem ao badalhoco em
frente ao liceu sá de miranda. comprar meia sêmea com chouriço. não podia fazer
piadas. fazer charme. namoriscava. Fugia às aulas. não podia tudo. estava
aprisionado numa cadeia em que o guarda prisional era o meu pai – na fábrica
ninguém falava. a única linguagem permitida era a das máquinas. que mesmo
fazendo muito barulho nunca conseguia imitar a saída dos alunos do liceu. nós
fazíamos muito mais chinfrim – rapidamente percebi que o trabalho era levado
muito a sério – ao fim das duas primeiras horas não tinha feito nada. a faca
não me obedecia nas mãos. e as mulheres de volta da mesa a perguntar se já
tinha os forros cortados – comecei a ficar preocupado. percebi que a continuar
assim estaria metido num rico sarilho. iria passar uma vergonha no meio da
mulherada – ao fim do dia já era outro. não digo que fosse um cortador de
primeira. mas a faca já corria nas mãos e os forros começaram a estar prontos
sempre que me eram solicitados – ao segundo dia já acumulava obra em cesto e
comecei a ter mais vagar para pensar. porque se cortava daquela maneira e não
de outra – no fim da primeira semana já tinha colocado tudo em causa. e pensei:
se encontrar uma forma de cortar mais rápido os forros. quem sabe. posso dar à
soleta mais cedo – a minha motivação não era o trabalho. mas sim fugir
rapidamente daquele inferno – não conseguia esquecer os amigos. de cada vez que
cortava um forro assolava-me o fantasma da liberdade. da rua. das brincadeiras.
da boa vida – já passou muito tempo desde esse meu primeiro dia de trabalho. o
meu pai e a minha mãe já estão confortavelmente nalgum lugar sagrado. vivos. e
com saúde. só mesmo os meus irmãos. por isso posso escrever a minha verdade.
aquela que guardo. e fazer deste pedaço da minha vida. um pedido íntimo de
perdão. acreditando que já estou perdoado por tudo que tenha corrido menos bem
– por esta certeza. e com a idade a crescer numa corrida de velocidade. permite-me qualquer tipo de confissão. o
tempo lava a alma. e com a “velhice” percebemos que o que era importante na
juventude. agora com cabelos embranquecidos. ou sem eles. já não é – como já
escrevi várias vezes: o que não é realmente importante. não o será mais tarde.
acredito que os meus irmãos possam ter uma outra opinião. o que é normal e
compreensível. aprendi a não me colocar no lugar dos outros. a não ser para os
compreender – para justificar este meu receio sobre a memória e o que ela tende
a guardar. vou contar uma história engraçada que me aconteceu há relativamente
pouco tempo – quando eu tinha os meus nove anos. estudava no conservatório de
música calouste gulbenkian. estávamos no período de carnaval. e já nesse tempo
os miúdos fantasiavam-se – era uma escola frequentada pelas elites da cidade.
tudo filhos de senhores doutores. gente endinheirada e muito respeitada pela
importância das suas profissões – na maioria das escolas os alunos não tinham
dinheiro para roupa e sapatos quanto mais para fantasias. o carnaval das
crianças era vivido consoante o poder económico dos seus pais – lembro-me
muitíssimo bem de pedir à minha mãe uma roupa de cowboy. e também me lembro de
insistir durante uns quantos dias na necessidade de ir fantasiado – cansado de
não ter a sua atenção disse-lhe que todos os meus colegas iam mascarados e que
seria uma vergonha se eu também não fosse – a minha mãe era muito forreta.
sempre foi. uma das suas muitas virtudes. mas os tempos não eram nada fáceis –
depois de muito insistir. lá me foi comprar uma roupa de cowboy ao centro da
cidade – mas a coisa não correu bem. a roupa era cara. a minha mãe recusou-se a
gastar tanto dinheiro. e acabei com um chapéu de cowboy. uma estrela de
sheriff. um coldre de plástico e uma pistola que não dava para matar coisa
nenhuma. tudo muito piroso e de mau gosto – eram os limites da minha mãe. e
sabendo como se comportava com gastos excêntricos sei hoje que foi um ato de
amor – lembro-me da festa de carnaval e também me lembro de ser o puto mais mal
vestido da minha classe. com a fantasia mais rasca. uma tragédia em dois atos:
a compra da minha mãe. e a vergonha da minha aparição no dia de carnaval na
escola. estava envergonhado – pois bem. andei com esse trauma anos e anos.
sempre que o carnaval chegava lá me assolavam as memórias da pirosice da minha
fardeta – eis a surpresa. passados mais de vinte anos. a minha colega na
gulbenkian ana paula aparece-me num jantar de um amigo comum. tinha passado uma
eternidade – é claro que não estávamos iguais. tínhamos ambos envelhecido.
estávamos casados e cada um de nós com dois filhos rapazes. mas os traços de
fisionomia e personalidade mantinham-se intactos – ao fim de alguns minutos.
com milhentas interrogações. demos conta que tínhamos retomado a amizade no
lugar em que a deixamos – foi fantástico. claro que tudo se deveu à minha
amiga. continuava a falar pelos cotovelos. foi o suficiente para acabar com
qualquer receio que ainda pudesse existir – passamos momentos fantásticos.
fizemos viagens que recordamos. férias divertidas. muitas noitadas. pudemos
partilhar um pouco da nossa vida. foi muito bom reconquistá-la para perto de
mim – ainda nos vemos com alguma regularidade. agora menos porque deixou a
minha cidade à procura de melhor sorte. mas a amizade mantém-se sabendo agora
que a distância será sempre a que nós quisermos – há três ou quatro anos a
minha amiga manda-me uma foto de grupo desse carnaval. e lá estou eu metido no
meio de trinta e muitos alunos. com cara de poucos amigos. renegando com toda a
certeza a minha mãe. e para meu grande espanto. e ao contrário do que tinha
guardado em lembrança. estava fantasticamente mascarado. muitos dos meus amigos
nem sequer estavam fantasiados – fiquei para morrer. como é possível ter
guardado uma memória falsa durante tanto tempo. não sei como. mas sei que
aconteceu – passei a duvidar de todas as memórias de infância – bem sei que
estas memórias que escrevo já não são de uma criança. são de um quase adulto.
mas mesmo assim. cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém –
quando resolvi largar os estudos pensei com os meus botões. os meus irmãos são
mais velhos. já tem a empresa oleada. eu vou mesmo ser patrão. trabalho quando
me apetecer. vou fazendo o meu percurso profissional nas calmas. e o ordenado
cai ao fim do mês – enganei-me completamente. os meus irmãos. como já referi.
não nasceram para serem industriais. e por essa lacuna [agora menor] a fábrica
continuava a depender dos meus pais. a única que estava mais ou menos adaptada
era a minha irmã. estava na contabilidade. setor não produtivo e dependente da
produção. quando há dinheiro é o melhor local para se trabalhar. quando o
dinheiro falta é o deus me livre da aflição – o meu irmão era. e ainda é. uma
pessoa excecional. atrever-me-ia a dizer que excelente pode não traduzir com
justiça quão é excelente. agora que estou envelhecido e já posso dizer tudo.
creio que o único defeito era ter ainda menos jeito para a fábrica do que eu –
era bom demais. às vezes irritava-me que ele fosse tão bom. mas no mundo
industrializado é um defeito perigoso. em determinadas situações pode até
tornar-se muito perigoso. infelizmente era um defeito de família – eu também
entrei boa pessoa. quando me apaixonei pelo trabalho fiz um grande esforço para
me tornar um pouco pior. o mundo estava a mudar e não era possível singrar sem
exigência. a produtividade era baixíssima. muitas das funcionárias não tinham
nenhuma noção da importância do tempo nas empresas. o custo do minuto começou a
pesar. e corríamos o risco de não ser competitivos com os nossos concorrentes –
atrevo-mo a dizer que uma grande parte não queria um trabalho. mas apenas um
emprego – hoje. percebo que a culpa não era completamente dos funcionários. mas
isso é outra história – o primeiro dia passou com muito custo. quando saí
parecia que tinha estado preso um mês. senti-me como se fosse um presidiário
que. depois de cumprir largos anos de pena. sai da prisão sem saber o que fazer
ao destino – eu sabia. fui logo ter com os amigos e sem dar parte de fraco
enfrentei a realidade. tinham estado toda a tarde na galhofa – estive para
morrer – no dia seguinte comecei a pensar em terminar o trabalho mais depressa.
começou a obra de engenharia que espantou não só os meus pais como também todos
os funcionários. revolucionei o corte dos forros. passou a andar mais folgado.
passei a fazer em menos de uma manhã o que antes demorava um dia – esta
solução-invenção baseava-se num jogo de réguas de madeira numeradas e colocadas
nas extremidades laterais da mesa de corte: no lado oposto ao cortador um
desenrolador. e junto a este uma régua fixa e uma outra que deslizava sobre as
réguas laterais – com esta engenhoca os forros eram cortados sem necessidade de
sobrepor os moldes. quando se puxava a peça do forro ela assentava sempre no
local de corte. o ganho de tempo era quase de uma hora para sete. sete vezes
mais produção – em traços gerais era mais ou menos isto. uma daquelas coisas
simples. tipo ovo do colombo que. como todas as invenções. surgem para ajudar o
trabalhador a simplificar o trabalho e a ganhar mais tempo para si. no meu caso
esse tempo seria para ir ter com os meus amigos – pedi autorização para mandar
construir a engenhoca. ainda sofri alguma resistência. mas a permissão lá saiu
por parte de quem mandava – a família desconfiada torcia para que corresse bem.
o encarregado zombava com subtileza. todos estavam à espera de um valente
trambolhão. vinha agora um puto mostrar como se trabalhava – mostrei mesmo –
por momentos acreditei que tinha achado o santo graal. mas nada disso. afinal o
cálice era de latão. não havia forros para cortar havia outras tarefas.
puseram-me na mesa de acabamentos – confesso que esta invenção trouxe a
motivação que me faltava. passei a acreditar que era capaz de ser líder. e fui
durante mais de vinte anos seguidos. mas trouxe também algo que desconhecia. o
respeito dos trabalhadores que começaram a ver-me não como o filho do patrão.
mas como alguém com aptidão para liderar os destinos da empresa – durante uns
tempos não se falava de outra coisa. era o maior – o meu pai orgulhoso. nunca
lhe tinha passado pela cabeça que o filho fosse capaz de tamanho feito em tão
pouco tempo. apanhou o meu cunhado na empresa e foi logo mostrar-lhe a obra de
engenharia – o meu cunhado filipe vale era engenheiro nos CTT. hoje na altice.
e como engenheiro tinha sempre direito a opinar. o meu pai dava-lhe ouvidos.
percebia-se que tinha por ele uma grande estima – isto cá para nós. o meu pai
tinha um fraquinho pela lolinha. nunca deixou de ser a menina da casa – a minha
mãe sempre teve o feitio mais difícil. mas no que dizia respeito ao genro era
mais tolerante. tinha vaidade por ter a filha casada com um homem formado –
naquele tempo uma pessoa com um curso superior trazia consigo quase sempre a
verdade da vida. mesmo que assim não fosse. o que dizia obrigava que pelo menos
colhesse atenção – ora o problema é que o meu cunhado também achou que eu podia
chegar longe. sugeriu ao meu pai mandar-me tirar um curso de agente de métodos.
no porto. numa escola que dava pelo nome de NORMA – era tudo muito bonito. mas
obrigava-me a levantar cedo. apanhar o autocarro. passar o dia em aulas e voltar
tarde – fui trabalhar para não ter aulas e o meu querido cunhado mete-me numa
sala o dia todo – lá se foram os amigos durante quatro meses – mas como um mal
nunca vem só. o meu pai tinha uma casa de campo. e no início do tempo quente.
com a desculpa de que precisava de regar as árvores. no fim do trabalho fugia
para a aldeia. e só de lá saía no fim das vindimas – fui muito feliz na aldeia
dos meus avós. as férias grandes eram vividas no meio dos campos e eucaliptos –
arrisco-me a dizer que foi talvez o período em que fui mais tempo feliz. é
hábito dizer que a felicidade não existe. vive-se apenas pequenos momentos.
naquela aldeia era feliz desde o levantar até ao deitar – tenho imensas
saudades dessa infância de luz. pela manhã cedo levantava-me e ia direto para
casa de um vizinho lavrador. santana e glorinha. o pequeno almoço era uma malga
de sopa de couves e feijões e um naco de boroa cozida no forno. estava
alimentado para a manhã – arrancava com a dona glorinha e filhas. são e
gracinha. para o campo. a puxar o carro de bois – meu deus. que alegria – e ali
ficava todo o dia. a ajudar no que podia. às vezes a desajudar no que não
entendia – aprendi rapidamente a aparelhar uma junta de bois. apanhar milho.
sacholar a terra e abrir canais de água para a rega. e à merenda lanchava como
os jornaleiros. uma posta de bacalhau. broa e um trago de vinho tinto a
empurrar tudo isso – foi uma das mais bonitas infâncias que tive na aldeia –
sem os meus pais em casa era obrigado a dormir na cama dos meus pais. tinham telefone
na mesinha de cabeceira o que me permitia ligar para o número do despertar e
apanhar a camioneta a horas – se tudo isto era mau. agora imaginem que a cama
dos meus pais tinha um colchão ortopédico que era como pedra. duro como tudo.
coitado do meu pai. as dores da minha mãe sobravam sempre para ele – quando me
habituei ao colchão estava a acabar a formação. nunca consegui dormir uma noite
sem dores. levantava-me sempre amarrado à coluna. torto – nunca mais fiquei bem
das minhas costas. o que agradeço ao meu cunhado filipe – tenho milhentas
histórias da fábrica. não seria possível não ter. foram muitos anos ali metido.
algumas poderia escrevê-las neste momento. outras. ainda precisam de mais tempo
de maturação. preciso que o amadurecimento me mostre o que fiz bem. e o que fiz
de errado. onde tinha razão. e principalmente onde perdi a razão – o que posso
garantir é que serei inflexível neste meu acerto de contas com o passado. sem
contemplações. é absolutamente essencial que assim seja. os meus filhos estão
criados. mas faltam os netos. é essencialmente por estes que escrevo. um dia
este meu testemunho pode fazer a diferença – estudar é fundamental. podia ter
feito tudo. podia até ter acabado o curso e só depois ter ido para a fábrica.
mas deveria ter entrado na universidade – não há industriais sem fábricas. mas
há advogados sem tribunais. há dentistas sem consultórios. há professores sem
escolas
há o dever de morrermos com uma profissão
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