as
cadeiras certas em volta da mesa. e eu a contá-las. uma. duas. três. quatro.
cinco. seis. sete. oito. nove. dez. onze. e duas guardadas com saudade – quando
voltaremos a ocupá-las? o dia igual à noite. e a noite igual ao dia. e os olhos
acertados com o que é importante: a minha casa-família – pergunto-me: o que
trouxeste ao mundo nesta vida? por onde caminhaste? aonde chegaste? ainda não
tenho resposta. mas sinto-me em paz. acredito que o melhor de mim ainda está
para chegar – se eu tivesse experimentado esta paz em miúdo. talvez nunca tivesse
envelhecido cansado e atormentado – um homem em paz é infinitamente mais
generoso – a cuca e o max confinados aos meus pés. como se o mundo dos caninos
vivesse também uma pandemia. a fitarem-me os olhos com um sossego absoluto. a
perguntarem-se: porque está ele ali sentado se o sol está no ar – tantas vezes
invejei a sua vida tranquila. tantas vezes me interroguei: porque não fogem
para a liberdade? porque aceitam este cativeiro a troco de uma malga de comida?
a resposta é simples: por amor. gostam de mim. adotaram-me. mesmo sabendo que
caminho em duas pernas hesitantes – eu também estou confinado por amor. amo a
minha família. os meus amigos. os meus cães. amo até as pombas que diariamente
pousam no beiral do meu terraço a troco de umas migalhas – amo o mundo apesar dos
os seus paradoxos e imperfeições – como poderia desafiar esta doença maldita
correndo o risco de perder todos aqueles que amo? não podia – preciso ainda de
fazer tanta coisa. preciso de alcançar a honradez do meu pai. preciso de
continuar a ser pai. avô até que os ossos cedam. até que o coração se canse e
morra enlaçado em saudade – tenho absoluta necessidade de morrer de amor. assim
como píramo e tisbe. romeu e julieta. ou pessoa e ofélia. não importa como
parto. desde que parta numa viagem de amor. se possível perfeito – “se queres
ser [um amor] perfeito. vende o que tens e dá-os aos pobres – depois segue-me –
não leveis nada pelo caminho. nem bastão. nem alforge. nem uma segunda túnica”.
crente ou não a bíblia é um bastião de saber – a felicidade encontra-se na
humildade. na simplicidade. no sorriso. na bondade. no silêncio e na
contemplação. diria. nas coisas mais simples – o belo emerge do nada sempre que
nos despojamos do supérfluo – quero um amor perfeito como promessa de vida
eterna – talvez os meus cães vivam comigo um amor perfeito. despojaram-se do
supérfluo. vivem sem bastão. sem alforge. e sem uma segunda túnica. vivem em paz
plena – agora tenho a certeza de que são eles que me invejam. e se interrogam:
porque não corre ele pelo mundo fora? porque tenho o meu prato de comida. a
minha malga de água. as cadeiras que conto por amor. e a certeza de que se
ocuparão de alegria muito para além da minha vida terrena – amar é
ressurreição. e o único caminho para a imortalidade – só me falta deitar no
chão. ao pé dos meus amigos mais fiéis. dar duas voltas sobre mim. enroscar o
corpo. e fechar os olhos num vagar doce e sossegado. e se alguma coisa me
aborrecer. liberto um latido mimado. ou rosno com ferocidade. de seguida. volto
a enroscar-me e adormecer com o melhor da vida: paz – nesta brevíssima passagem
por este mundo complexo. podemos comprar tudo. podemos viajar. ir ao cinema. à
discoteca. ao restaurante. agora até já se pode ir ao espaço ver as estrelas de
mais perto. mas a paz… a paz verdadeira… não se pode comprar. é preciso
procurá-la. conquistá-la. trabalhá-la. encontrar um espacinho dentro do corpo.
mesmo que pequenino. e depois aconchegá-la às memórias. e quando olhamos para
trás. percebemos que a juventude acabou. percebemos que as rugas e os cabelos
brancos são a contagem do tempo – o confinamento deu-me essa oportunidade.
arrumei o que há muito tempo estava desarrumado. empilhei tudo a um canto dentro de mim. e
instalei pela primeira vez a paz no corpo por inteiro – foi muito bom ter
encontrado essa paz. confesso-vos. foi mesmo muito bom. fui feliz. feliz como
se fosse um catraio – como é bom viver com paz e luz – só os cristais ficaram
foscos. sem brilho. zangados penso eu. talvez adivinhassem o fim das festas.
das visitas. do champanhe. do reboliço e das conversas vazias. tudo o resto
numa calmaria bela: telefone. campainha. TV. despertador. tudo num marasmo
absoluto. como as manhãs de sol nas pradarias. com aquele ar pejado de
silêncio-calmo. e o vento escorrido das montanhas a tombar as searas para o
lado certo da vida – está tudo parado em minha casa. eu também. faço companhia
aos relógios. sem corda a meu mando. sem que um único ponteiro possa correr
pelo meu novo tempo – e eu ali sentado. a olhar a minha maria joão. mais minha
do que nunca. e a interrogar-me: o que verá em mim agora que nos escondemos do
mundo – eu sei. paz. paz como nunca tivemos – nascemos e logo nos ensinam a
juntar coisas. a procurar ser o melhor na escola. depois chegam as melhores
notas. a melhor criança do mundo. chegam os louvores: é um bom rapazinho e
muito inteligente. ainda não perdeu um ano – depois. a barba chega. em passo
acelerado chega também a vaidade. e já tem carro. e tem amigos que nunca mais
acabam. e o sucesso à medida de cada mente infetada. agora mais uma viagem à
volta do mundo. e férias nas maldivas. e depois no japão a degustar um peixe fugu.
e uma foto em áfrica abraçado a uma hiena que não para de rir à gargalhada.
para de seguida mergulhar no oceano à procura do tesouro do pirata das
caraíbas. e agora só quero chegar à lua e pôr um pé em marte – mais isto e
aquilo. e ainda mais. e quando não tinha imaginava ter. amanhã levanto-me e
faço isto. e depois aquilo. e mais não sei o quê – tudo isto deve chegar para
dar mais duas voltas ao mundo – foi preciso uma pandemia para compreender que
afinal tudo o que quero está dentro da minha casa – a pandemia trouxe-me o medo
e o desespero. mas também a sabedoria para compreender que é nas coisas mais
simples que existimos com verdade e paz – nada do que pudesse ter comprado ou
amealhado se compara à paz de estar naquele sofá. mesmo desaparecido em medo e
rezas – encontrei o que tinha perdido com o crescimento. ouvi pela primeira vez
em muitos anos o meu silêncio. encontrei uma paz que nem sabia existir. e vivi
o tempo em pleno. sem que um único relógio assinalasse o meu envelhecimento –
se com a morte alcançar esta serenidade. então… estou pronto
2. confissão
confesso que
nunca fui tão feliz como em todo o tempo que estive confinado – bem sei que
muitos foram obrigados a trabalhar e a colocar a sua vida em perigo para que eu
pudesse estar a salvo do covid-19 – a todos esses heróis o meu obrigado eterno
– também sei que muitos milhares de pessoas perderam os seus negócios. as suas
casas. o seu emprego. famílias inteiras ruíram. e como sempre as crianças são
as que mais sofrem. para não falar no isolamento dos idosos. meses a fio sem um
único abraço. sem verem uma única face familiar – foi tudo muito mau. o nosso
mundo não estava preparado para esta maleita. diria que a pandemia foi a nossa
terceira guerra mundial. desta vez. infelizmente. não nos foi possível declarar
neutralidade. tivemos baixas em combate. muitas. foi tudo aterrador e
angustiante – àqueles que estiveram doentes e principalmente aos familiares
daqueles que pereceram. o meu lamento sincero – felizmente a covid-19 não
passou aqui por casa. também é verdade que tudo fizemos para que a maldita não
tivesse qualquer oportunidade de continuar a sua propagação. mesmo assim.
acreditamos que na vida é sempre preciso uma pontinha de sorte. nós tivemos
essa sorte. e estamos gratos por isso
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