.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

14/03/2020

um ensaio estranho sobre o absurdo



cyril rolando 


I.

abraço-me. abraço-me num abraço absurdo – que autoestima existe num abraço absurdo? que dúvidas farão de mim um recomeço? a irracionalidade de um abraço absurdo é quase sempre desespero. e dor – procuro no absurdo justificação para uma tristeza que às vezes se cola como um hábito que vicia – sabe-se hoje que a genética interfere na herança dos vícios – cada vez acredito mais que nasci viciado numa dependência de cocktails absurdos – talvez sofra do síndroma de abstinência neonatal – não me lembro de viver sem um absurdo por perto – porque raio não param de me  acontecer estes absurdos excêntricos – talvez o diabo me tenha tomado a alma à nascença. infetando-a de medos e horrores absurdos – talvez  deus me tenha posto neste caminho absurdo apenas para me purificar de outras vidas – que raio trago no corpo para que deus ou diabo se interessem por alguém tão estupidamente absurdo – sim. eu tornei-me num absurdo sem deus nem roque e o que temia sobreveio-me – toda a vida é um absurdo incontrolável. um segundo mais tarde perde-se o comboio. um segundo mais cedo seríamos esmagados pelo mesmo comboio – em cada segundo cabe uma enormidade de absurdos – somos o que somos num tempo incrivelmente egoísta. ninguém quer saber o que te levou a viver em absurdos. ou porque foste tu e não outro o parceiro perfeito para os absurdos – não acredito no destino – tudo vazado de um caldeirão de humanos. contaminados pelo absurdo das suas diferenças. onde ninguém é igual a ninguém e. no entanto. todos parecem tão iguais – não escolhemos viver assim. na fragilidade do nascimento somos infetados por um mundo absurdo – sou o gozo estúpido de um espermatozóide. eram mais de mil… absurdamente o que chegou à vida fui eu – não há dia em que não me interrogue o porquê desta vida absurda que me consome numa labareda que só eu sei que existe – bem sei que as dúvidas absurdas confirmam a minha existência primitiva – perdoe-me deus ou diabo. mas só eu posso alterar o que vive e sinto em mim – bem sei que já não sinto grande coisa – um homem é sempre o que sente e. mesmo que duvide do que acredita sentir. não pode deixar de acreditar. por mais absurdo que lhe pareça esse sentir incerto: às vezes amor. outras. apenas indiferença… ou ainda um absurdo de coisas que não se explicam. sente-se. e sabe-se – é na dúvida que se encontra a certeza? a dúvida existe para nos dar certezas? que absurdo se tornaria o meu mundo se um dia perder as dúvidas sobre mim – quero continuar a viver este meu mísero e triste absurdo. quero continuar a duvidar. quero que o tempo que me resta seja todo ele de enormes incertezas absurdas – “antes morrer de pé do que viver de joelhos” – que cabeça não se permite duvidar? como se para se ter dúvidas do absurdo. fosse preciso o corpo viver no mundo das invenções. dos aviões. dos relógios atómicos. dos foguetões e das balas que continuam a matar aqueles que já morreram várias vezes de vergonha – confesso. tenho medo e vergonha do que penso. porque tudo o que penso quero que exista. e tudo que existe é um absurdo que só faz sentido na minha cabeça – tenho raiva do presente. e vergonha do passado. mas nada tenho para o amanhã. a não ser fabricar na minha cabeça absurdos inimagináveis – nada das coisas que imaginei morreu em mim porque o tempo das coisas não é de quem pensa. mas sim de quem faz – ainda quero fazer milhentas coisas. mesmo que absurdas pareçam – a felicidade e a tristeza alimentam-se do pensamento. mesmo quando absurdo – penso. logo sou absurdo – utopia é acreditar que um dia todos os meus absurdos o deixarão de ser – nunca recusarei ser o que sou. mesmo que o absurdo em mim possa parecer loucura

 

II.

vivo agora também a dúvida absurda do silêncio – o silêncio preenche todos os vazios. traz bondade. dignidade. perdão e quando chega o barulho das dúvidas absurdas… já não tem força. nem tamanho para ferir – não deixa de existir. não. torna-se apenas num barulho menos barulhento. mais humano. clemente. mais compreensivo. e generosamente vai repetindo ao ouvido. numa serenidade completamente absurda: estás perdoado por toda essa vida absurda – e o eco das palavras a embalar-me num sono de criança.  talvez a síndroma de abstinência neonatal continue a fazer das suas. um viciado não se cura nunca. a falta do cordão umbilical existirá até ao último suspiro – talvez esta resistência à loucura do absurdo seja o que me mantém vivo. ou então. é a forma que encontrei para vos dizer que ainda tenho dignidade para suportar os vivos – talvez a dúvida absurda exista porque eu existo no silêncio – sem o silêncio da noite não sou nada – na dúvida absurda do silêncio posso correr para o outro lado de mim e não encontrar nada ou… encontrar todo o barulho do mundo: os meus amigos a jogar à bola. o carro a acelerar. as máquinas a trabalhar. os filhos a chorar. a mãe a chamar. e o pai a apontar para o absurdo dos nossos antepassados – e a mente que cria as tempestades absurdas pede uma última certeza que não seja absurda. e corro por todo lado e em todo lado me encontro com as mesmas marcas no corpo. as mesmas dúvidas absurdas – será que não há uma alegria absurda perpétua? não tenho onde me esconder. e as tempestades não param porque não consigo deixar de pensar nos absurdos da minha vida. não consigo deixar de duvidar do que fiz – confesso. não sei se a culpa é minha por me tornar num absurdo. ou o absurdo é um cabrão sem piedade que me injeta doses maciças de inverdades. insegurança. hesitações e medos – o pior disto tudo é que não consigo fugir da inverdade. da insegurança. da hesitação e do medo – sofro. fugir de sofrer é já sofrer – não consigo deixar de viver onde cresci – sou um todo e mesmo que me divida em silêncio ou barulho. em irreal ou real. em fé ou desconfiança. em deus ou ateu. em luz ou negrume. serei sempre eu. e mesmo morto continuarei a ser eu. ninguém me apagará do universo – também eu alimentei o absurdo da vida. também eu fui de casa em casa. amigo em amigo. trabalho em trabalho.  sonho em sonho. em paz ou irado. ajoelhado ou de pé. com deus ou com o diabo. tudo dentro de um destino que não escolhi – nunca poderia ser pescador. porque nasci sem mar. sonhei-o muitas vezes. visitei-o. senti-o quando a cada mergulho me fiz água. nadei como os peixes. mergulhei como os golfinhos. fechei-me numa garrafa e percorri todas as correntes do mundo com mensagens absurdas. no entanto. a minha casa não cheirava a mar. cheirava a couro e a dor. os barcos eram máquinas e os pescadores eram operários – o absurdo é que amo as máquinas e o mar – tenho no peito tatuado uma gaivota e o mundo num abraço que não consigo dar – aristóteles dizia que todos os seres existem para um fim – a minha dúvida é se há fins absurdos – o que faz um homem num desespero absurdo? olho para mim e interrogo-me se sou o que quis ser. ou sou o que me rodeou? o que fiz fez-me. ou sou o que sou porque não fiz o que deveria ter feito – há um limite para tudo. há um limite. mesmo quando não há respostas para o que queremos saber – há um limite até para os absurdos – também eu fui castigado como sísifo. e a pedra no sopé da montanha todos os dias a crescer. e o absurdo das coisas em mim a roubar-me as forças para carregar o que mais ninguém vê – uma pedra enorme no sopé de uma montanha absurda – porque me deram uma montanha se o que sempre desejei foi apenas o que sentia em mim? e o raciocínio perdido num sacrifício absurdo. em dor. em raiva. em desespero. maior que qualquer montanha absurda. maior que a pedra de sísifo – elimino o absurdo que nasceu comigo? seria eu o mesmo sem ele? ou o absurdo é a minha pedra. que carrego e não chega a lado nenhum – infelizmente a eutanásia não se aplica a quem sofre de coisas absurdas – tenho que viver

 

III.

não tenho inveja do que não alcancei. talvez um traço de azedume. ou arrependimento. mas não posso alterar o passado – serei o que o destino quiser. continuarei a erguer-me do chão quando cair – não me posso zangar por aquilo que errei quando pensava estar certo – cada época tem as suas certezas absurdas – não posso continuar a amar quem não respeita esta minha forma absurda de ser – não posso aceitar calado tamanha humilhação – não posso respeitar quem não acredita que o absurdo existe. como nas “brujas. no creo. pero que las hay. las hay” – prefiro morrer sozinho. prefiro morrer a falar comigo. a explicar-me até que o último sopro me despedace esta absurda certeza incerta que vive comigo. como vive o coração. que bate como o coração. que voa como as gaivotas. que chora como os homens – escolhi sempre o melhor absurdo. não o menos arrojado. mas aquele que no futuro me faria honrar todo o passado – às vezes a justiça do passado faz-se apenas com uma única absurda certeza incerta – estou aqui meu querido absurdo. quero honrar-te também. quero fazer-te existir como mestre de uma arte que. por ser absurda. só poucos reconhecem – o absurdo não existe apenas porque eu nasci. mas confesso. às vezes até que parece – se deus não me receber no dia que chegar ao céu.  que as portas do inferno se abram para que possa caminhar sobre as chamas. pois esse será o meu último absurdo – se no passado abandonei o divino. hoje. ajoelho-me com fé. e peço humildemente a deus que ilumine com sabedoria esta minha última viagem. absurda ou não – quero morrer em paz. e que a minha alma suba ao céu enaltecida. mesmo que seja apenas por causa dos absurdos – quero confiança. saber e um bom destino para aqueles que deixei no teu quintal do mundo – mas se nesta última caminhada. perceber que fui eu o único culpado do absurdo existir. então. que me reste saber e memória para o escrever com a maior crueldade que trago nas mãos – eu não me encerro em mim. não sou o fim do mundo. sou futuro naqueles que. mesmo por caminhos errados. fui capaz de trazer à vida – e o sagrado perpetuou-me

 


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