.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

22/02/2021

sampaio. simão. antónio...



pintura - rené magritte



sampaio!? queria chamar-me outro nome qualquer – sampaio deriva do latim sanctus pelagius. que significa santo pelagius. santo marinho – com o passar do tempo acabou por sofrer algumas alterações na grafia. passou a sam peaio. são payo e. por fim. sampaio – em portugal teve origem num senhor de honra em trás-os-montes: vasco pires de são payo. que tinha a sua morada numa aldeia perto de vila-flor – muito bem. eu até gosto dessa terra para lá dos montes. mas sou minhoto e não faço ideia se algum dos meus antepassados viveu nesses solos que aguentam três meses de inferno e nove de inverno – a questão é que me saturei do sampaio. parece-me um nome com pouco sal. com uma fonia um bocado arrastada. e sempre que alguém me chama sampaio. traz-me a esperança de que o meu pai ainda esteja por perto – ao senhor meu pai o nome caía-lhe como a honra do vasco pires. já a mim. não sei porquê. mas fico sempre com a ideia de que não tenho destino para sampaio. nem a honra do vasco – precisava de ser muito mais bonito. mais assurgente. com mais visibilidade. mais certeza no futuro. com um bigode a sombrear o lábio superior. precisava de mais sorrisos de dia e mais sono à noite para sossegar a sorte – custa-me saber que vou morrer com este nome de gente importante. gente que veio de roma com pergaminhos de centurião. e eu. perdido à procura de um nome que faça rima entre a bota e a perdigota – às vezes gostava de me chamar simão. não o leproso. mas o simão que foi pedro. o pescador. que no meu caso seria não um pescador de peixes. mas da vida. aquele que tem fé e acredita. e que para cada acontecimento menor. intuía pela fé que viria um objetivo maior – heráclito dizia que nada é permanente exceto a mudança – por isso é que não quero mais chamar-me sampaio. preciso de mudança. preciso de outro nome para aquilo que resiste em mim. para o que não sei nomear. para o que não sei dar vida – sampaio cansa-me. gela-me os pés. e não poucas vezes deixo de andar – depois. as mãos. sinto-as trémulas. enrilhadas. já moribundas de medo. como se já soubessem que a vida já não trará dignidade – por último. o coração. a bater devagar. a bater gelo. gelo-pedra. pedra inútil – e o ar. pesado como chumbo. a carregar desassossego – um coração pedra só dá beijos gelo-pedra – toda a humanidade quer mudança. porque só com mudança sobrevive ao paradoxo temporal: não vamos ao passado mudar nada. como acontece na ficção. mas tudo o que fizemos no passado muda o futuro – o manifesto político de marx e engels pedia para que os proletários se unissem. que se revoltassem porque a única coisa que poderiam temer era os seus grilhões – também eu sou um proletário. e o júlio. o antónio. o saramago. o luís. a florbela. a sophia. e o simão também o seria. todos têm em comum os seus grilhões. e por isso escreveram os seus “manifestos” – eu também gostava de escrever o meu. não o manifesto do que nasce nestas mãos ingratas. não. mas o manifesto do que penso. do que sinto. e às vezes sinto tanta coisa – mas rapidamente dou conta de que simão também não seria um bom nome. está muito ligado à cristandade e eu pequei demasiadas vezes para andar a bater com a mão no peito com arrependimento – não quero chamar-me nome algum. nem simão. nem antónio. nem saramago. nem luís. nem florbela. nem sophia. talvez me chame tonto – tenho que aceitar o que sou. e aceitar com obediência o destino gasto que me coube – a minha absolvição mora agora ao pé de uma cruz que já não aceita crucificações – talvez o melhor seja mesmo morrer sem nome. inutilmente sem nome – a minha última morada será um frasco de cerâmica. e a lápide escrita à mão trémula por fora: aqui jaz tudo o que este tonto foi 

 


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