sampaio!? queria chamar-me
outro nome qualquer – sampaio deriva a partir do latim sanctus pelagius.
que significa santo pelagius. santo marinho – com o passar do tempo
acabou por sofrer algumas alterações na grafia. passado a sam peaio. são
payo e. por fim. sampaio – em portugal teve origem num senhor de
honra em trás-os-montes: vasco pires de são payo. que tinha a sua
morada numa aldeia perto de vila-flor – muito bem. eu até gosto dessa
terra para lá dos montes. mas sou minhoto e não faço a menor ideia se
algum dos meus antepassados viveu nesses solos que suportam três meses de
inferno e nove de inverno – a questão é que me saturei do sampaio.
parece-me um nome com pouco sal. com a fonia um bocado esguia. e
sempre que alguém me chama sampaio. traz-me a esperança de que o meu pai
ainda está por perto – ao senhor meu pai o nome caía-lhe como a honra do vasco
pires. já a mim. não sei porquê. mas fico sempre com a
ideia de que não tenho destino para sampaio. nem a honra do vasco –
precisava de ser muito mais bonito. mais assurgente. com mais
visibilidade. mais certeza no futuro. com um bigode a sombrear o
lábio. precisava de mais sorrisos de dia e mais sono á noite para
sossegar a sorte – custa-me saber que vou morrer com este nome de gente
importante. gente que veio de roma com pergaminhos de centurião e eu.
perdido à procura de um nome que diga a bota com a perdigota – às vezes gostava
de me chamar simão. não o leproso. mas o simão que foi pedro.
o pescador. que no meu caso seria não um pescador de peixes. mas
da vida. aquele que tem fé e acredita. e que para cada
acontecimento menor. sabia pela fé que haveria de chegar um objetivo
maior – heráclito dizia que nada é permanente exceto a mudança – por isso é que
não quero mais chamar-me sampaio. preciso de mudança. preciso de
outro nome para o que resiste em mim. para o que não sei escrever.
para o que não sei dar vida – sampaio cansa-me. gela-me os pés. e
não raras vezes deixo de andar – depois. as mãos. sinto-as
trémulas. enrilhadas. a ficarem moribundas de medo. como
se já soubessem que a vida já não traria dignidade – por último. o
coração. a bater devagar. a bater gelo. gelo-pedra. pedra
inútil – e o ar. pesado como chumbo. a carregar desassossego – um
coração pedra só dá beijos gelo-pedra – toda a humanidade quer mudança.
porque só com mudança sobrevive ao paradoxo temporal: não vamos ao
passado mudar nada. como acontece na ficção. mas tudo o que
fizemos no passado muda o futuro – o manifesto político de marx e engels pedia
para que os proletários se unissem. que se revoltassem porque a única
coisa que poderiam temer era os seus grilhões – também eu sou um proletário.
e o júlio. o antónio. o saramago. o luís. a
florbela. a sophia. e o simão também seria. todos têm em
comum os grilhões. e por isso escreveram os seus “manifestos” – eu
também gostava de escrever o meu. não o manifesto do que nasce nestas
mãos ingratas. não. mas o manifesto do que penso. do que
sinto. e às vezes sinto tanta coisa – mas rapidamente dou conta de que
simão também não seria um bom nome. está muito ligado á cristandade e eu
pequei demasiadas vezes para andar a bater com a mão no peito – não quero
chamar-me nome nenhum. nem simão. nem antónio. nem
saramago. nem luís. nem florbela. nem sophia.
talvez me chame tonto – tenho que aceitar o que sou. e acatar com
obediência o destino arrastado que me tocou – a minha absolvição mora agora ao
pé de uma cruz que já não aceita crucificações – talvez o melhor seja mesmo morrer
sem nome. inutilmente sem nome – a minha última morada será um frasco de
cerâmica. e a lápide escrita a burrona por fora: aqui jaz tudo o
que este tonto foi
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
22/02/2021
sampaio. simão. antónio...
pintura - rené magritte
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