.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

05/02/2021

aurora & aurora





foto google




enquanto a noite teima em mirrar. a teimosia teima em desabrolhar – as estrelas abalam delicadamente para norte. marte apaga-se. e a lua toma a china com o seu luzente luar – e eu em hostilidades com a deusa do alvorecer. pergunto-lhe: porque me trazes o sol se só me encontro no escuro – porque me mostras o mundo. se quando caminho por ele me perco – e é nesta luta de sombras e luz que me esfarrapo por encontrar uma palavra especial. para um escrito que se quer também especial – mas. infelizmente para mim. a perseverança confunde-se com a falta de arte. ou de dicionário – é assim a vida de quem peneira palavras em rio seco – como não estava a ter arte nem sucesso nesta busca doentia. fui assolado por um pensamento: porque raio de sorte. ou coisa de uma qualquer identidade maior. é que quando nascemos não trazemos um manual de instruções – facilitaria imenso a nossa vida – ajudava a montar o destino: seguíamos as etapas da nossa criação em folheto. e no final eis: igualzinho a mais mil da linha de montagem – sabias pela mecânica da montagem o que te estava destinado: não serás escritor. não serás cientista. não serás condutor de ambulâncias. não serás livreiro. nem aquele polícia de barriga e bigode farfalhudo – serás parvo – o melhor parvo do mundo. modelo de luxo. com alguns extras que irão fazer de ti um parvo especial. uma edição limitada: fígado com capacidade de destilação extraforte para whiskys velhos. gin com predominância de zimbro. margaritas coloridas. e vodka preta e branca para prevenir o racismo – pulmão com filtro de carvão activo. preparado para receber qualquer tipo de fumaça: cigarro três vintes. canábis do alentejo. charutos de havana. e até fumo de carros com o motor partido – na cabeça dois olhos que enxergam tudo a cores. com focagem automática do rico e do pobre. do roto e do nu. da virtude e da aldrabice. do escritor e do rabiscador. e quando não quiser ver fecha os olhos. e tudo fica bem – duas mãos que não sabem escrever. nem apertar parafusos. nem moldar o gesso. pintar. dar cartas. ou roubar carteiras. em boa verdade. duas mãos inúteis – duas pernas prontas para fugir. para jogar à bola. à macaca. e ao esconde. esconde. e ao corre que a vida vai-te apanhar – seria um gajo de outro mundo. talvez até alien. ou mesmo criação divina. com tecnologia de ponta. coisa de anúncio de TV – bem sei que tinha que mudar hábitos. e em vez de rezar a um deus poderoso e omnipresente. rezava aos técnicos de software – era como se nascesses com o destino certificado. com garantia. código de barras. e número de série – se alguma coisa corresse mal reclamava-se à detentora dos direitos de produção. que logo enviaria um técnico especializado para reparar o desvio no destino traçado. e se a coisa fosse grave: sucata com o podre. e substituía-se a máquina por um modelo mais recente e fiável – e a vida voltaria ao percurso talhado – aurora. aurora. deusa dos dedos rosados. como lhe chamava homero. porque me iluminas estas mãos inúteis. se é na escuridão que as sinto – e assim estou. com voltas e mais voltas. e a interrogação persiste: porque raio me meti por este atalho? possivelmente. por culpa de algum fusível no lóbulo central. ou curto-circuito nos neurónios. talvez tenham apanhado humidade. gosto de sonhar com gaivotas. com o mar de uma forma geral – a salitra corroeu as ligações – ou sabotagem: a parteira em vez de me dar uma sapatada no rabo deu-me um murro nos circuitos – ando para aqui em volta das palavras que não me levam a lado nenhum – por este andamento nem como parvo me distingo – mas se não há livro de instruções porque raio é que a janela não me mostra o futuro? porque raio é que plantaram à minha frente uma cordilheira que chega ao céu – porque raio é que não tive direito a um jardim de magnólias. e no seu meio um portal para viajar no tempo. ou um banco feito de esperança para poder catar o verão – estou nu. com os fios descarnados. tão nu que nem as vogais querem nada comigo: chamo-me smp rg – eu corrijo-me. acreditem. eu corrijo-me. apago as consoantes. antes me quero invisível. a parvo nas bocas do mundo – todo o homem precisa de um pedaço de terra para viver. a minha terra são as palavras. os meus sonhos as raízes. a minha força a família

 

p.s. – a minha irmã chama-se aurora. é também uma deusa e mais velha do que eu treze anos. e ainda esta semana lhe dizia que uma das minhas mágoas persistentes foi não ter os nossos pais mais novos. gostava de ter brincado com eles. de viver um pouco a sua juventude. de os ter mais perto de mim. menos adultos. menos responsáveis. menos preocupados – mas não lhe disse tudo. também gostava de a ter tido a ela mais nova. adolescente. menos senhora. menos aperaltada. sei lá. podíamos ter ido à discoteca. e ser eu a tomar conta dela. em vez de ser ela a tomar conta de mim – a vida é o que é. e nada pode ser alterado. só as palavras é que podem ser diferentes. é isso que faço. escrevo para tornar tudo diferente. porque em boa verdade. o que amo mesmo neste mundo. é a minha família. que para mimcomeçou nos nossos pais

 


 

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