.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

08/02/2021

eu. o meu primo toni e o meu pai





fotos google



 

tinha acabado de saber que o meu pai e a minha mãe iriam viajar. no dia seguinte. para estremoz – nessa bonita terra alentejana. havia um daqueles curandeiros com mãos milagrosas. constava pelo país dos doentes. que com mezinhas e pancadinhas punha as colunas mais rijas do que as colunas dóricas do parthenon – a viagem na época não era fácil. não havia autoestradas. e os quatrocentos quilómetros eram feitos no vagar da preguiça. devagar. devagarinho. e quase parados – a coluna da minha mãe. maltratada pelo trabalho. já não dava para grandes estiradas [pensava eu]. a opção era pernoitar pelas redondezas. descansar. e regressar pela manhã do dia seguinte – para mim era uma grande notícia. em boa verdade. o curandeiro podia até ficar nos montes urais. quanto mais longe. mais quilómetros de liberdade. com carro e casa só para mim só podia mesmo ser dádiva do céu – não ficava bem sozinho. ficava com a lurdes. governanta da casa e do meu equilíbrio financeiro. era ela que aumentava significativamente o meu pecúlio semanal. ao desviar uns trocos do orçamento que mantinha a casa nutrida – nos dias de hoje seria acusada de peculato e abuso de confiança – mas para ela o crime compensava. afinal eu era o seu menino d’ouro. e como a cozinha era farta. menos uma rasa de feijão não conduzia a nenhum tipo de racionamento. e permitia-me manter o nível de vida abastado mas isto de conduzir sozinho era um aborrecimento. na adolescência precisamos sempre de um compincha. uma testemunha viva e credível. alguém que pudesse confirmar. sob palavra de honra. a destreza e coragem dos feitos. e para isso. nada melhor do que o meu primo toni – o toni tinha menos um ano do que eu. mas muito mais ajuizado – creio que estaria por volta das catorze primaveras. um companheiro fantástico. bom. às vezes temos medo de dizer certas palavras. mas o toni era um rapaz excecionalmente bom. educado. nada malandro. sossegado. gordinho. cara redondinha. uma falha nos dois dentes do tamanho do arco da porta nova de braga. sempre a escorrer água. inverno e verão gotículas de transpiração caíam-lhe em bica pela face. como se estivesse permanentemente em exercício físico – era uma joia de rapaz. ainda o é. ainda há poucos meses tivemos oportunidade de rever e gargalhar com algumas das nossas malandrices [com tempo contarei outras façanhas nossas] – foi muito bom aquele encontro. fez-me muito bem. lavou-me a alma. uma prova de vida e de memóriamas como ia dizendo. o meu primo era muito sossegadinho. mas quando estava comigo alinhava em tudo. era o compincha ideal para a minha intrínseca necessidade de movimento e ação – bem. adiante os meus pais saíram e o meu primo veio para minha casa. e por lá nos mantivemos num reboliço saudável e nada perigoso durante todo a hora de laboração da fábrica [os meus pais tinham uma pequena fabrica de artigos de pele] – naquele dia as horas teimavam em manter-se atrasadas. a noite aproximava-se persistentemente lenta. e enquanto a empresa não encerrasse não havia carro. este estava alocado a serviço externo e sempre em movimento – jantamos cedo o que era hábito em minha casa. e logo logo saímos porta fora com a chave da 4L na mão: depósito cheio. e prontos para fazer quilómetros – dois putos. menores de idade. sem carta e sem nenhuma noção da gravidade das suas ações. e mais grave. motivados para perigosas infrações ao código da estrada. para piões. derrapagens. para não falar no excesso de velocidade – a juventude dos rapazes tem destas coisas. precisam de adrenalina para crescer. para se fazerem homens – a minha sorte é que a lurdes era. ainda é. pegada aos santos e ofícios da igreja. uma devota de cristo. e as suas preces começavam sempre com um pedido expresso de proteção à família e. em particular. ao seu menino – e para que não houvesse esquecimentos. e como agradecimento ao sagrado. oferecia umas missas de ação de graças. e velas de luz e fé – “quem vive a sua fé brilha como a luz” [jesus]. a lurdes vivia a sua fé e brilhava como mais ninguém – com a devoção da lurdes tenho a certeza de que andava comigo sempre um anjo da guarda. ela e o santíssimo era tu cá. tu lá – bons tempos – a primeira paragem foi no café luso-brasileiro com uma entrada de cernelha. em grande estilo. com o corpo a bambolear de um lado para o outro. pernas arcadas. em estilo forcado aldo lima: “oi. oi. oi. ei amigos lindos”. e em vez de levar as mãos à cinta. levava a chave de ignição em exibição pindérica era muito gajo àquela hora da noite. bem-trajado. com estilo. com carro. só nos faltava mesmo duas gajas boas para arrasar. a inveja dos meus amigos escorria como óleo pelo chão da casa de pasto – era uma época diferente dos dias de hoje. os carros eram escassos. e os que havia. na sua maior parte. eram de gente com algumas posses. ou então de trabalho. a grande maioria das famílias não tinha carro. tempos verdadeiramente difíceis e de sacrifício – o café fechou. como sempre fechava pelas 23 horas. e resolvemos. antes de recolher à cama. dar mais uma curva pelas redondezas com passagem pelo bom jesus. sameiro e falperra. o triangulo turístico da minha cidade – tudo corria na perfeição. maravilhosamente bem. e os meus dotes de condutor estavam mais do que certificados – quando chego à minha rua. já tinha batido a uma da manhã na torre da igreja do carmo. qual não é o meu espanto. vejo o carro do meu pai estacionado em frente a casa – primeiro senti uma passagem de corrente trifásica pelo corpo. e de seguida. um friozinho pela espinha. e o coração numa aceleração de um motor V6. e pensei: estou metido num grande sarilho. vais levar poucas. vais – o meu primo toni ficou em transe. e se já era normal suar. a partir daquele momento começou a arfar num silêncio medroso. a arrastar a voz para o pânico. a água que lhe corria pela face era tanta que mais parecia um fontanário – bem. a questão que se colocava é como iria resolver o problema. como é que iria enfrentar o meu pai sem que levasse um bom par de estalos. e bem pior. levar o sermão da praxe e missa cantada. que doía muito mais que a pancada – foi quando tive a brilhante ideia de entrar pela porta do terraço nas traseiras da casa – não era coisa fácil. mas valia a pena tentar. a porta costumava ficar aberta. entravamos à socapa. e pé ante pé.  metíamo-nos na cama com o complô da lurdes. e quando o meu pai viesse [novamente] ao meu quarto. fingíamos que estávamos a dormir – no dia seguinte tudo seria diferente.  ao meu pai tudo lhe passava com um bom soninho. o despertar traria um novo dia. a tolerância tinha passado do vermelho a amarelo vivo. e o mais certo. era a coisa resolver-se com uma reprimenda com a promessa de que na próxima façanha apanharia a dobrar – entre a minha casa e o começo da rua havia quatro casas – a primeira fazia esquina com a praça do comércio. era um bloco de apartamentos com lojas no rés-do-chão e dois andares de habitação – na esquina a mercearia do sr. joaquim e da dona inês. mas era mais conhecida pela mercearia do “lakota”. [um dia irei escrever sobre o zeca. filho mais velho do proprietário e meu amigo] e já no começo da rua a saparia ferreira. do senhor ferreira. que não importava as vezes que eu passasse à sua porta. olhava-me sempre para os sapatos. seguindo-se uma saudação gentil. deformação profissional. seguiam-se as casas do doutor lemos. médico de família. e da dona aninhas. mãe do conceituado piloto de rally bracarense rui lages. por último. a do senhor meu pai – é agora que verdadeiramente começa a história – subimos ao segundo andar da primeira casa onde havia uma escada que dava acesso ao telhado. tínhamos que subir ao parapeito do corredor e dar um impulso para o vazio até atingirmos a escada. não era coisa fácil. se falhássemos eram apenas três andares. íamos diretos à cave. mas com a graça do senhor e do meu anjo da guarda lá subimos sem derrapagens – assim foi. começamos a atravessar os telhados. pelo caminho umas telhas partidas. a noite estava escura como breu. não dava sequer para perceber onde púnhamos os pés – o meu primo toni estava em pânico. estava tão branco que se via no escuro. mais parecia um fantasma – bem. lá fomos indo com o credo na boca. e quando demos conta estávamos no terraço – estaria tudo bem e resolvido se a porta da cozinha não estivesse fechada. ficava aberta todo o ano. mas naquela noite estava fechada a trinco e ferrolho – só podia ser gozação do meu anjo – agora é que estávamos metidos numa grande alhada – comecei a forçar a porta. mas depressa a luz se acendeu. pensei: é a lurdes. tinha sono de passarinho e ao mínimo barulho acordava – soube mais tarde que era o meu pai – mas pelos visto ninguém dormia naquela casa. a minha mãe sentada na cama em ais de aflição. a lurdes em orações à santíssima trindade. e o meu pai. que já sabia do que a casa gastava. a prometer fazer de mim um saco de boxe. a brincadeira estava perigosa e em roda livre – escondemo-nos a um canto e esperamos que a luz se apagasse. a solução era fazer-me homem. entrar pela porta da frente a cantar a portuguesa e resistir até que a voz doesse –não demorou nem cinco minutos e ouvimos o carro do meu pai a zarpar em alta velocidade. tinha ido á minha procura. de cabeça perdida. a rogar-me pragas e coriscos. confesso que com razão – depois de uma viagem cansativa. com a minha mãe aos ais e lamentos de sorte. chegar a casa de noite. esgotado. e não poder descansar porque o filho taralhouco se lembrou de dar umas voltas com o carro da empresa. ninguém merece ter um filho assim – mal ouvimos o carro a arrancar voltamos a subir ao telhado. atravessamos outra vez os telhados. desta vez como íamos em passo de corrida quebramos as telhas que faltaram com a primeira passagem. descemos o mais rápido que era possível. e plantamo-nos em frente à porta de casa – o objectivo estava cumprido. chegar a casa antes do meu pai – abro a porta. e com as costas hirtas. o queixo erguido em modo de coragem. enfrento as escadas como se fosse para o cadafalso. tinha valido a pena. foi uma grande noite de piões e acelerações o meu primo toni estava um farrapo. completamente branco e desfigurado. não sei se tinha anjo protetor. mas estava a precisar de amparo espiritual. as pernas entraram-lhe em fraqueza. parecia que estava a subir o everest – coitado podia ter morrido naquela noite. aquele coração já não era um motor V6. pelo barulho era mais um V36 com as vielas partidas – a lurdes de plantão ao cimo das escadas. em camisa de dormir. com cara de padeira de aljubarrota.  só dizia:

- o menino não tem juízo. valha-nos nosso senhor. os seus pais preocupados. valha-nos nosso senhor. e acenava a cabeça com tanta força que até fazia corrente de ar  

mal se acabava de subir as escadas tínhamos o hall com a sala de visitas à esquerda e o quarto dos meus pais à direita – a luz do quarto estava acesa. abeiro-me da porta com cautelas. da maneira que corria a eletricidade naquela casa nunca se sabia se os sapatos tinham ganho asas. felizmente que não. estava apenas a minha mãe sentada na cama. não sei se por causa das costas. se por mim. mas pela cara o prenúncio não era bom.  o pior podia muito bem estar para chegar – perguntou-me aonde é que andava. não sei o que lhe disse. mas com certeza alguma parvoíce. alguma desculpa esfarrapada. e diz-me uma frase que guardei para a vida

- o teu pai vai-te matar

o meu primo entrou em colapso. já não abanava. quebrou. ficou mudo e só voltou a articular palavras com tino no dia seguinte. deve ter pensado que se o meu pai tinha coragem para me matar. a ele. então. seria morto e esquartejado – fomos rapidamente para o quarto e é quando eu tenho mais uma brilhante ideia. e digo ao toni: mete-te na cama rapidamente. cobre-te. enrola-te nos cobertores. não deixes nem o nariz de fora.  o meu pai quando está zangado fica de cabeça perdida. quando começa a dar porrada as mãos só param quando lhe faltam as forças. para te partir um braço é com duas palheiras – assim fez o meu primo. enrosca-se nos cobertores. não se via nadinha daquele corpo redondinho. apenas uma lomba nos cobertores. parecia uma trouxa de roupa. e eu a seu lado também coberto até às orelhas. mas com uma pequeníssima abertura para o lado do meu primo – não podia perder ponta da história – quando o meu pai entra casa digo ao meu primo toni: não te mexas. mesmo que apanhes alguns tabefes não te mexas. é muito pior. e nem te ponhas com lamechices. não abras a boca. se te mexeres ou gemeres irritas muito mais o meu pai. e é menino para te partir os dois braços – e assim foi. o que ele não sabia é que o tinha deitado no meu lugar. era mesmo um bandido da pior espécie – o meu pai entra pelo quarto dentro. encosta-lhe a boca à suposta minha cabeça. e com a voz muito alterada. de cabeça completamente perdida. diz a berrar umas quantas ameaças e juras de que no dia seguinte a coisa não ia ficar assim – nem sabia se o meu primo estava morto ao vivo. creio que deixou de respirar só para não se mexer. coitado. podia ter morrido do coração [era a segunda vez no mesmo dia] – eu. bandido mesmo. debaixo dos cobertores divertia-me à brava e só esperava pelo primeiro safanão para dar cor a uma noite inesquecível. a cereja no topo do bolo – o toni esteve em paragem cardiorrespiratória. mas felizmente recuperou. não foi fácil. a taquicardia era aguda – eu sabia perfeitamente que no dia seguinte já não haveria consequências de maior. tudo se resumiria a uma conversa e mais umas quantas ameaças – o meu pai era um homem bom. com uma tolerância de anjo. sabia como ninguém o que é ser jovem. era um ser de luz. não conheço ninguém que não gostasse dele – para o meu pai tudo se resolvia com uma conversa.  fiz-lhe coisas que não lembra ao diabo. era um terrorista – nunca conheci ninguém com uma alma tão gentil como a do meu pai – hoje. percebo o seu sofrimento. deus me livre de um dos meus filhos me ter feito algo deste género. confesso que não sei se teria a mesma bondade do meu pai. os tempos também são outros – mas não creio que tenha sido um mau filho. era apenas um jovem com uma vontade enorme de crescer e fazer coisas – ainda hoje mantenho essa energia e esse espírito




 

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