coleção de sapatos de imelda marcos
certo dia.
na feira da literatura do luso poemas. um poeta ambulante desta “escola”.
elitista [penso]. postou no seu espaço de opinião umas linhas de sua autoria
sobre um qualquer assunto que já não recordo – lembro-me que gostei – despertada
a minha modesta atenção. peguei no teclado. toquei as teclas com muito jeitinho
e comentei como entendi – não sei se bem ou mal. comentei com a arte que ao
longo do tempo fui capaz de amealhar – não foi muita. confesso com vergonha –
já fiz muitas coisas na vida. não nestas coisas da literatura. destas. infelizmente.
nada sei. mas de outras que sendo menos eruditas. ensinaram-me a compreender vagarosamente
o que os hábeis escritores vão escrevendo numa arte que invejo – confesso que a
minha destreza para a escrita é muito modesta. mas na oralidade o desastre é multiplicado
por dez – um mal nunca vem só – daí a importância da “escrituração” para os
mancebos como eu – escrever é comunicar – nesta habilidade feita a punho é
sempre possível voltar atrás. reescrever o que pensamos estar menos bem. repensar.
voltar a reescrever – fico sempre com a sensação de que quando reescrevo a
emenda é pior que o soneto – aprendi a suportar com tristeza esta marca – burro
velho não aprende línguas –
[prosseguindo. penso ainda]
comentar um autor. que através da
escrita. teve a mestria de conquistar a minha [leitor] atenção. deve ser
gratificante – que inveja tenho desta gente que é lida – eu bem tento. mas
nada. ninguém me comenta – só deus [se houvesse] e eu é que sabemos a dor que
me consome o corpo – as palavras são sempre tão difíceis de juntar
[andando]
confesso que para mim comentar. é
na maior parte das vezes um impulso impregnado de gratidão. com resultados quase
sempre inesperados pela perturbação emocional com que me entrego ao teclado. quero
dizer: desfecho de escrita duvidosa
[raios partam a minha sorte]
é amargo para quem não tem o dom
da escrita – dentro da cabeça milhentas coisas lutam desesperadamente por um
lugar no papel. as ideias penetradas por um sentimento maravilhado pulam de lado
para lado. empurram-se. esmagam-se e arrumam-se como podem no espaço branco de
uma folha a4 sem expressarem uma milésima parte do que deveriam dizer – tanto deslumbramento
e o corpo sem forma de o mostrar – e a desarrumação aos gritos no branco da
folha – desordem emocional é tudo o que ganhei por um dia ter aprendido a ler
[que inveja da cegueira dos analfabetos.
nenhuma letra os atrapalha]
mas nem sempre somos o que
queremos. na maior parte das vezes somos o acaso de um caso na vida – um dia o
meu pai e a minha mãe resolveram dar um beijo no período fértil. aconteci – cresci
a imaginar coisas e de cravo na mão parti no meio de uma manifestação a cantar
zeca afonso – quando olhei para mim era homem
[menos homem do que sou hoje. era um
garoto de maior idade]
assim foi. e o tempo a fazer-me
crescer e a consumir vontades – os dias eram pequeníssimos para tudo o que
sonhava fazer – as coisas do saber exigiam-me tempo que não podia dar e tudo
foi ficando adiado em nome de ideais que hoje já não existem
[também o meu muro caiu. eu e berlim
unidos pelo mesmo destino]
os dias tornam-se compridos e
impertinentes – envelheço a sonhar com uma casa virada para o mar. um sofá. uma
lareira e uma mesa carregada de saber: livros e livros de gente que não sabe
que existo. eu ali estou – sozinho para eles. acompanhado de amigos para mim –
todos tão diferentes e todos como eu. unidos pela força das palavras – eu e
eles virados para a lareira. eu e eles a ouvir o ir e o vir do meu mar e todos
felizes com tão pouco – no resto do mundo as minhas gaivotas rasgam o vento
numa liberdade que nunca alcancei – se eu pudesse acontecer de novo – na cabeça
a morte trágica de romeu e julieta alimenta-me a esperança de eu também partir
envenenado por uma última leitura do amor da minha vida: júlio dinis – havia
tanto nos livros deste homem: saber. honra. verdade. tradição. família.
trabalho. esperança. amor. caridade. humildade. humanidade. havia sonhos –
sempre sonhei com um mundo bom –
[adiante]
uns dias mais tarde recebi em
jeito de resposta ao meu comentário um pequeníssimo amontoado de palavras. que reconheço.
talvez por minha culpa. nunca fui capaz de as compreender – lembro-me de ficar
irritadíssimo – resisti – ao longo de muitos dias não fui capaz de encontrar no
meu conhecimento o mérito suficiente para compreender o meu ilustríssimo
escrevente – fiquei arrasado. mas logo percebi que o autor escreveu tudo num
superlativo absoluto sintético – não tenho estudos para superlativos – envergonhado. remeti o meu corpo ao silêncio
[desonra pensei. e como manda a tradição
do país ao melhor soldado japonês. suicidei-me no meu silêncio]
não se vive em desonra – como foi
possível não ter sido capaz de interpretar um simples amontoado de palavras –
sei que estavam cobertas por uma ambiguidade sarcástica – como foi possível
isto acontecer – tudo isto sufocava. tudo isto era como o enrolar da jiboia.
apertava cada vez mais e a asfixia total era uma questão de tempo – o que o
nobre colega retratou naquele breve comentário pode ser descrito como uma
pintura abstrata lírica. de cores pouco definidas. traço largo. firme e
suficiente forte para abraçar toda a ingenuidade do leitor ao ponto de o deixar
confuso [louco]
[havia
naquelas palavras um cheiro forte a tons pastel-terra. lembrando o outono. o cair
da folha. as primeiras geadas e a morte dos mais débeis à crueldade da natureza]
lembro-me de ficar com um misto
de intriga e fascínio pela imagem do avatar do colega – era arrasadora: os
olhos inclinavam-se para dentro. protegidos por uns óculos de massa que mais
pareciam uma prisão. a boca como se nunca tivesse falado. perfeita – a barba [percebia-se]
cortada à tesoura. a tombar para a esquerda como se impõe a um verdadeiro
revolucionário com estudos – toda a imagem era profundamente perturbante. uma
mistura deliciosa de madre teresa de calcutá com a heroicidade de che guevara –
lembro-me de pensar: a história jamais apagará um retrato como este – nunca lhe
perdi a admiração. ainda hoje. em segredo. pé ante pé para não incomodar. lá
vou eu dar um escapadelazinha ao seu covil de saber – fico sempre estarrecido
com a humildade de quem sabe que sabe
[sou um romântico]
fiquei tempos sem fim a olhar
para as palavras. ora lia o meu comentário. ora lia a resposta ao meu
comentário – hoje posso garantir com verdade que não foi nada fácil aguentar
aquela dor de saber que nada sabemos – é como nas corridas de fundo no atletismo.
a meio da prova. surge uma dor na zona abdominal. chamam-lhe dor de burro.
confesso que não sei o porquê – na dor de burro. sabemos que dói. colocamos a
mão sobre o local da dor para comprimi-la mas não há nada a fazer. só pára mesmo
de doer quando paramos de correr. neste caso de ler – assim fiz. e logo a dor
parou – hoje à distância do tempo já gasto. lembro-me do local da dor e de um
pequeno excerto do comentário que originou uma das piores dores de burro que
tive na vida – dizia o meu caro colega: as minhas palavras lhe traziam à
memória imelda marcos pela adoração que esta tinha por sapatos – este
comentário mudou a minha vida – hoje. sou um comprador compulsivo de sapatos. fanático
e sem tratamento – tudo faço para embelezar os pés – aprendi que é
absolutamente necessário estar bem calçado para que uma escrita se torne
credível. formosa e principalmente lida – nunca escrevo descalço. não. nunca
mais quero ter aquela dor de burro
[escrevi. li. pensei. escrevi e
passaram-se provavelmente dois anos]
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