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I.
1943. as estradas
do mundo estavam cobertas de explosivos – em portugal o metal de cor branca
tornava-se a abastança dos que viviam da terra – os candongueiros. a soldo dos
alemães. pagavam pelo volfrâmio valores
impensáveis a gente afeita à escravidão do trabalho nos campos – finalmente uma
oportunidade trazia alguma dignidade à vida miserável das gentes do interior – abandonaram
os campos para se tornarem mercadores do século XX – substituíram os camelos
pelos burros. as areias pelos montes. os oásis pelas aldeias e criaram a rota
do ocidente: o destino não era veneza. mas berlim. capital do império nazi – winston
churchill bem protestava. mas antónio salazar. astuto. acalmava os ingleses com
a promessa de uma neutralidade temporária – a prioridade para o nosso ditador
era impedir que portugal entrasse para o conflito que mais vítimas causou [60
milhões] em toda a história da humanidade – por tudo isto. a terra era abria-se
sem resistência. e o volfrâmio seguia em marcha acelerada para as fábricas da
guerra – na capital do império. as notícias do conflito chegavam pela voz de
fernando pessa que. via BBC [rádio] de londres. dava conta do avanço das forças
hitlerianas pelo mundo – todas as noites. os ouvidos dos portugueses colavam-se
à rádio. a voz da verdade do mundo livre tinha hora certa para chegar – o medo
agigantava-se na casa das famílias. ninguém queria ver os seus filhos partir
para uma guerra desta dimensão – as consequências trágicas da nossa
participação na I guerra mundial ainda sangravam na memória dos portugueses –
as baixas humanas quase chegaram aos dez mil mortos. milhares de feridos. para
não falar nos custos económicos. um desastre com consequências sociais muito
graves – os telégrafos não paravam de picar fita. decifrar a notícia rapidamente
era crucial para que o jornal da manhã informasse a população da coragem com
que os soldados da aliança tentavam impedir o avanço do inimigo – as páginas
dos jornais encolhiam perante o peso das atrocidades nazis – chegavam as
primeiras notícias da perseguição aos judeus pela polícia secreta do estado
[gestapo] – recomeçava a carnificina de um povo originário das tribos de israel
– o talmud era a palavra da fé numa aliança secular entre deus e os filhos de Israel
– no entanto. desta vez. depressa perceberam que as leis e mandamentos de deus
reveladas a moisés. no monte sinai. não lhes serviriam de proteção – a
sobrevivência era a fuga – começaram a chegar ao nosso país os primeiros refugiados
judeus – poucos foram os que se fixaram definitivamente em portugal. a maior
parte apanhou o oceano e rumou para o brasil e estados unidos da américa – de
país em país. a cruz suástica ascendia ao topo das bandeiras nacionais.
enquanto a europa se tingia de sangue – resistia estoicamente leningrado e
londres – o mundo voltava a ter um inferno aceso pela mão do homem – o papel da
imprensa tornava-se importantíssimo. os jornais eram a fonte de notícias e
informação mais credível da época – apesar do pouco espaço editorial para
informações não relacionadas com a guerra. fazia-se notícia da intenção do
governo português de criar uma nova indústria – pequenas fábricas da porcalhota
uniram-se para erguer plano estratégico de interesse nacional – o projeto surgia.
os fornos aqueciam. o minério derretia. e o milagre acontecia – novos
operários. ainda sem nome. trabalhavam o ferro com mãos fundidas numa liga
resistente com mais de nove séculos – o ferro. símbolo Fe. misturava-se à fé cega
num regime fascista que moldava o país – novos homens de fato macaco. de gancho
em punho. atiravam-se com coragem ao fogo de um inferno nunca antes trabalhado –
a confiança destes novos operários fundia-se a ferro. solidificada em coquilhas-molde
– existia um novo saber. passá-lo de geração em geração tornava-se obrigatório –
todas as grandes nações do mundo assentavam nesta herança de sangue. e dentro
deste povo correria para sempre a cultura. a tradição. a língua. a bandeira – a
alma de um povo como o nosso nunca morria. renova-se com o melhor dos seus
antepassados – tudo agora era aço. temperado pela força do acreditar de gente
com esperança – neste complexo industrial trabalhava gente de todos os cantos
do país. vinham à procura de uma vida digna para os seus filhos – deixaram tudo
para trás: a família. a fome dos campos cobertos de invernos rigorosos. o ceifar
da erva tenra para os animais. as desfolhadas do pão que o diabo amassou. a
meninice descalça com os pés gretados do gelo. a malga de sopa de couves e
feijão. a sardinha para quatro. e as casas acesas com candeeiros de petróleo de
luz vacilante e sombria – partiram vazios de tudo. dentro de si as memórias e a
certeza de que as campas rasas dos antepassados nunca mais seriam aparelhadas –
desta vez a morte dos seus avós chegava para sempre. a saudade não vencia [ainda]
as distâncias – deixaram a noite e acreditaram nos rumores de uma nova luz cristalina
para os lados da capital – tudo valia a pena naquele tempo. a vida brotava em
quartos escuros. e a infância esvaía-se no secar das tetas – aprender era
trabalho. e a escola um mistério que só os ricos sabiam desvendar – para a
gente que vivia do que a terra fazia o favor de dar. escrever era revolver o solo
de enxada na mão. ao ritmo das estações do ano – semear. regar. colher e
sobreviver – finalmente a vida dava-lhes razão. o ferro não se batia com letras.
mas com braços firmes e calos nas mãos – e a nação respirava vaidade com esta
gente de trabalho e silêncio – o fontismo morrera. mas o seu povo à beira-mar
plantado. não – nasceu a sorefame
II.
pouca
terra. pouca terra. o comboio apita caminho – pouca terra. pouca terra. passo a
passo. assinala a conquista de novas terras a gente nova – e a gente esquecida
no tempo de uma nação ingrata a levar os seus afazeres à cabeça para dentro de
braços lusitanos – o norte e o sul estavam ligados desde os primeiros anos do século
XX. mas agora tudo é diferente. nos carris a fadiga dos materiais é nacional. e
as rodas de ferro estão cunhadas com a mesma cruz de valentia com que partiram
as naus do tejo à descoberta do novo mundo – descobrir outro portugal com a
mesma esperança dos nossos navegadores – há uma audácia neste povo que ninguém
entende. somos corajosos. destemidos. arrojados. atrevidos. e o medo-admastor é
sempre para conquistar – somos nós. somos lusitanos. e agora a fazer rolar as
rodas das locomotivas como viriato o fez com as pedras – as pedras eram
enormes. os homens também – tudo começa com viriato. a defesa da soberania
lusitana é feita contra os invasores romanos – verdadeiramente ninguém ainda
hoje sabe dizer quem era este homem que empurrava pedras nos montes – dizem que
era pastor e que os romanos lhe chamavam dux – dux fez-se guerreiro e das
debilidades fez a robustez – tudo estava na força dos braços – mas os traidores
também fazem parte da nossa história: o melhor amigo entregou-o à morte do
inimigo – vendeu a soberania a troco de um par de mordomias – foi um de nós que
o traiu – talvez seja sina da nação parir traidores
mas…
falamos da sorefame.
importante construtor de material circulante ferroviário – nós somos como
somos. e dentro de nós há povos de tantas partes do mundo que não é possível
saber porque somos assim – somos assim porque somos. e nunca seremos capazes de
valorizar o que construímos no tempo desta pátria que não se cansa de ser nossa
– este país é único. apesar de todas as imbecilidades dos seus governantes o
povo continua a envelhecer como afigurou o nosso primeiro afonso – e de branco
e azul tomamos o verde da esperança e o vermelho do sangue – sina. penoso o sofrimento e o povo obrigado a cantar
o fado para caminhar – uma nação feita com a penitência de gente enganada de
século em século – vendemos tudo. tudo. e a nossa identidade é agora um estrangeirismo
que não sabemos entender – dois caracteres em chinês. um verbo em alemão. e por
fim. a vénia inglesa. cor-de-rosa como manda a tradição – e o mundo mais uma
vez cortado à faca dos interesses que não são os nossos. e o talento de um povo
em fuga há séculos – já ninguém se lembra do tratado de tordesilhas – construímos.
e logo de seguida. destruímos – não somos solidários. não há fraternidade.
camaradagem. solidariedade. crescemos em demasia. envelhecemos depressa – na
juventude somos amigos apenas porque somos. falamos a mesma língua. o mesmo
calão. jogamos na mesma equipa. somos do mesmo bairro. vivemos na mesma rua. vamos
à mesma igreja. subimos a mesma árvore. e o pai do meu amigo é amigo do meu pai
– somos – quando nos zangamos resolvemos o problema de punhos ao léu. e no
final tudo que é importante continua dentro de nós: continuamos a falar a mesma
língua. o mesmo calão. jogamos na mesma equipa. somos do mesmo bairro. vivemos
na mesma rua. vamos à mesma igreja. subimos a mesma árvore. e o pai do meu
amigo continua amigo do meu pai – somos – “somos” deveria ser suficiente para
uma nação abraçar e proteger o seu povo – mas a história repete-se e quem diz
que a água só passa uma vez debaixo da mesma ponte engana-se – mais uma vez o
impensável acontece. as nossas cabeças de ferro contaminadas ditam a sentença: sorefame
condenada à morte por injeção letal no conhecimento adquirido – nunca mais
haverá saber a passar de uma geração-respeitada pelo saber guardado pelo tempo
– quem lhes prometeu um país equitativo? portugal já não corre em carris para lá e para
cá – povo deixa de entender o apito da boa nova. a língua já não é de camões. e
o comboio já não diz: pouca terra. pouca terra – ninguém entende o barulho
desta coisa que anda para lá e para cá – do “somos” já não resta nada. nem
fado. nem futebol. nem fátima. nem traidores. estes ficaram na praça do
comércio a olhar para d. josé I de portugal. nome completo: josé francisco
antónio inácio norberto agostinho de bragança. cognominado o reformador devido
às reformas que empreendeu durante o seu reinado – que cognome daremos aos
nossos governantes? defunteiros? – josé sócrates I. o defunteiro – passos
coelho I. o defunteiro – e os séculos vão passar e de nós nada haverá. nem dor.
nem agonia. nem perda. nem ossos. nem remorsos. nada de nada. só história em
papel enganado e vendida em escolas aos filhos da geração do pecado – estamos
em pecado mortal. não matamos. mas deixamos matar – o último traidor tinha
vendido o país a espanha – raios parta esta gente parida na revolução de abril
– abril não foi feito para isto. este “somos” não é liberdade. igualdade.
fraternidade. não é cravo – gentalha de malfeitores. fizeram-se políticos. homens
do saber. e sem saberem como nos fizemos ao longo dos tempos – gente falsa.
esta que diz e desdiz. não entendem o somos – somos: um povo de camaradagem nas
guerras contra castelã. de camaradagem nas naus dos descobrimentos. de
camaradagem nas camaratas da guerra ultramarina. de camaradagem na história da
nação – já não há nevoeiro que traga um d. sebastião – ó gente que decide! o
que fizeste à nossa nação? que fizeste ao nosso “somos”? agora as rodas de
ferro não conhecem as nossas gentes. vem de terras distantes. feitas por mãos
que não nos entendem. não são. não querem saber do “somos” – uma bomba(rdier)
acabou com a sorefame – não foi uma bomba atómica. não. foi uma injeção. aniquilou
a empresa. aniquilou o saber de gente que nunca soube escrever para se defender
– foi um envenenamento controlado à distância: primeiro a falência de um rim.
um pulmão de seguida. uma válvula do coração. e quando tudo fazia acreditar que
a culpa seria atribuída ao colapso dos principais órgãos. primeiro corta-se uma
perna e de seguida outra – o corpo cai desamparado e o que era ferro trabalhado
é agora sucata – lágrimas. ainda não. mais tarde o povo chorará – ninguém
acredita que dentro do ferro retorcido houve um dia ali gente de martelo em
punho a fazer bater o coração de centenas de vidas – e o povo culto grita: é
lixo. é lixo. vai para reciclar – o que é nacional nem sempre é bom diz o
político feito às três pancadas numa revolução de cravos que dizia: o futuro
somos nós – já não somos – já não falamos a mesma língua. não temos o mesmo
calão. não jogamos na mesma equipa. não somos do mesmo bairro. não vivemos na
mesma rua. não vamos à mesma igreja. não subimos a mesma árvore e o pai do meu
amigo já não é amigo do meu pai – já não temos ninguém capaz de voltar a
ensinar um modo de vida que já ninguém sabe como nasceu – eles sabem que há
coisas que nunca mais podem voltar a fazer história – assim se destrói o tecido
empresarial de uma nação – primeiro um milhão para as pessoas. depois um milhão
para o abate. e depois um milhão para calar os que mandaram abater – o trabalho
está concluído – agora pagamos a mercadoria que nos faz falta – ficamos para
sempre sem um saber que não vem nos livros. e já não há mais gente sem saber
ler e escrever para nos ensinar – no passado o ferro era batido ao som da
lembrança das pedras a rolar monte abaixo – já não somos como dantes – somos
desempregados. somos despojos. somos descartáveis – uma gente sem esperança
Gosto tanto de reflectir contigo, num pouca.terra-pouca.terra de palavras em busca da terra.tanta... Esperança, onde ficas...?
ResponderEliminarBeijinho JLL
pois é assim teresa. e os filhos da nação a partir para terras que não são nossas – as escolas vazias. os velhos sozinhos. as ruas fechadas para sempre – cada dia que passa todos ficamos mais sós - beijo grande e boa semana
ResponderEliminarAs estradas do mundo não são mais as mesmas, as estradas da vida também não... O verde deu lugar ao marrom, o marrom deu lugar ao cinza, o cinza deixou os olhos pálidos, palidez define a humanidade, pálidas e sem vidas para se esperançar, para lutar, para ser... E são tantos, e somos esse tanto de nada, esse tudo do pouco, esse pouco que se basta mas que faz falta. As estradas do mundo não são mais as mesmas as estradas da vida também não...Falta chão, falta ver, falta ser, falta o pão, falta o dentro...
ResponderEliminar(Adormecendo aqui) belas, intensas, verdadeiras, perfeitas palavras!
obrigado márcia - este texto é feito de uma revolta que não consigo mais aguentar - esta gente dos dólares está a destruir o mundo dos nossos filhos ´- não dá mais para aguentar. está na hora de fazer o mesmo que vocês fizeram aí no brasil - ir para a rua e gritar a até que a voz não aguente mais - beijo e bom fds
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