alexandre pavan
e a vida sem
quase nada é gasta a anotar a presença de quem se me demora no olhar – e são
tantos os que por aqui ficam em silêncio. a ocupar o tempo. sem pressa. a falar
baixinho. e sempre com tanta coisa pendurada no corpo – chegam em pezinhos de
lã. sem olhos. sem sorriso. sem fé. e com os braços a suspirar em todas as
direções. olham sul esperança. e eu ali a ouvir com os olhos – gosto de ouvir
assim. a sentir os corpos a invadir o que é só meu. e o cavalheiro ali. aflito.
a guardar tudo que consegue agarrar. às vezes tanto. dorido. pesado. às cores.
também a preto e branco. e o que era meu deixou de ser: sou feito de gente. sou
nós – quem entende este nós? alguém? não sei. não sei mesmo. sei que os sinto.
sinto toda esta gente amarrada ao corpo. nosso. e o espaço dentro do cavalheiro
cada vez mais apertado para o homem que já não consegue viver sem ele – a culpa
é do homem que escreve. deixo entrar sempre tanta gente pelo corpo. mas como
faria a escolha. pela roupa? pelo corte do cabelo? pelas mãos? não sei. sou um
ingénuo? não. preciso deles para falar. quer dizer. para escrever o que sou com
eles – são eles que me fazem escrever. é com eles que sinto – só não sei porque
aceitam viver num corpo agitação. não sei mesmo. imagino que seja esperança. talvez
acreditem que a eternidade é feita da palavra escrita – loucos. alguém pode
acreditar que posso dar a eternidade ao que quer que seja com o que escrevo –
pobre gente. enganados por todos. até pelos cavalheiros – já não há cavalheiros
como antigamente. esses sim. tudo que escreviam era para sempre. basta olhar
para a minha estante e vê-los vivos. com as capas duras. gravadas a ouro
importante. e os nomes como se fossem família. orgulho – escrevo. não tenho
outra forma de dizer o que sinto se não escrever. mesmo que nunca chegue a ter
a certeza de que o que escrevo é verdadeiramente sentido. loucura – a dúvida
das palavras é grande. do homem que escreve é o dobro – se houvesse uma palavra
para cada coisa que sinto. mas são tantas a dizer sempre tanto e o corpo encurralado
em ilusão. serei capaz de escrever a
minha vida sentida na primeira pessoa? o que sinto é verdade? tenho a certeza que
não. se fosse verdade escrever seria fácil e as palavras surgiriam a qualquer instante
do dia. baixavam da boca às gargalhadas – o papel branco. raivoso. agonia. nem
uma pinga de tinta. nem uma palavra escrita. solidão – e os olhos cada vez mais
cansados de procurar as palavras desta gente que me entra pelo corpo. pesam – tem
de existir uma área de bem-estar neste corpo enorme. tem de haver um local de
sossego onde o olhar descanse do que sente. tem de haver – acredito e procuro –
talvez esse local esteja escondido nas pernas. não escrevo com as pernas. nem
penso. nem corro. as pernas servem para me manter de pé. e quando quero parecer
maior também servem para me colocar em bicos de pés. não fico muito maior. mas
há quem pense que sim – mas a vida dobrou-me e passo a maior parte do tempo de
joelhos à procura de palavras perdidas – dentro do corpo que escreve. um nada
gigantesco. sinto-me tomado por um nada que não sei explicar. tenho mais de
meio dia gasto no corpo. e nada de palavras – sinto que a solução é trazer os
corpos até às mãos. povoá-las. dar-lhes vida. escrever – nenhum relógio de sol marca
o tempo sem sombra. projeção – a chegada da noite é a qualquer hora. acontece
com a escrita. recolha – um papel. e logo aparece gente sem nome. e ali ficam
dias e dias a fazer de conta que o tempo não pesa para os homens que gostam de
escrever. para os cavalheiros – talvez saibam ler o futuro de quem trabalha
constantemente orações subordinadas. sabem que o erro e o belo está na mão que escreve.
na linha da escrita. no apuro da dúvida. mestria – somos tantos dentro deste
corpo – mas ali ficam. às voltas no papel. à espera da palavra mais-que-certa
para perdurarem na eternidade de uma folha – escrevo. escrevo cada vez o que é
menos meu e mais desta gente que não se cansa de me acompanhar. tudo é deles.
tudo. não tenho nada meu. nem o cavalheiro. nada – quem sou eu para lhes
retirar o que só a eles pertence? o homem que escreve não é dono de nada.
escreve porque escreve. escreve para ter voz. escreve para dar sentido ao que
sente. ao que lhe entra pelos olhos dentro. escreve para não adoecer – não
conheço mais nenhuma razão para escrever – escreve porque o coração não se
cansa de bater palavras – quem sabe um dia a ciência faz “mea culpa” de tudo o que
disse sobre o coração – afinal o músculo
não bate por bater. o músculo bate paixão. bate pessoas. bate abraços. bate
vida. bate sentir – há um fundamento sério dentro do homem que não escreve
para aceitar esta gente sem nome dento de si. sente-os – o cavalheiro sem eles não existiria – e o homem
que escreve em alerta. vigilante. tenso. a doer. a devastar minuciosamente cada
corpo. em espera. estáticos. clementes. transparentes. humanos. e eu a sentir.
a ver como sentem. tudo. tudo de um lado ao outro – sinto. paulatinamente sinto. escrevo. e esqueço o
mundo dos que me amam tal e qual como sou. nada – o coração a trabalhar calmamente.
sereno. doce. sem ruído. e o silêncio perfeito silencia a dor das palavras que
nascem a ferros – a cada batimento um golpe no músculo que sustenta o
cavalheiro. e o homem vai sofrer – pela boca a chegada de um sopro frio de
melancolia existencial. mais silêncio – e os corpos que me ocupam a passearem
de um lado para o outro sem saberem que os sinto como se fossem meus. nascidos
de mim. cobertos de palavras. alimentam-me a esperança de um dia saber falar
sem ser a escrever – e o cavalheiro em duelo de morte promete ao homem o
sossego – um dia cravo o lápis no coração – a beleza perfeita está sempre nas
palavras que ficam por escrever. sofrimento
[2 de 4] – contínua
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