autor desconhecido
sou um escrevente de histórias do peito – só falo com o que escrevo. sou assim:
grande na idealidade. descolorido na boca. vacilante nas mãos – mas escrevo.
sem palavras seria quase nada – sempre que me conto em palavras os dias tornam-se
pequeníssimos. as narrativas agigantam-se em embaraços. o corpo estremece e a
janela que me abriga do mundo já não é solução para os medos – escrevo. digo.
tento escrever. a procura da palavra autêntica é contínua[mente]. trabalhosa. esgotante.
e o belo oculto na minha falta de arte – quando escrevo transformo-me num
cavalheiro – fato preto. camisa branca. adornada com laço de cetim. preto-cinza.
colete de veludo escuro. justo ao tronco. botões madrepérola e dois bolsos
pequeníssimos debruados com duas costuras fortes. elegância – apesar de
pequeniníssimos estes bolsos são marcantes. é no seu interior que faço
descansar os dedos magoados de agarrar o lápis com que me narro – são assim
como os abrigos dos pastores no meio das montanhas: feitos de pedra granítica. entrada
rente ao chão onde os homens entram de gatas. sem janelas. terra batida. cama
de urze e fetos. e em tão pouco o corpo descansa da imensidão do mundo.
isolamento – vive no sossego de tudo que marca tempo. com as estrelas acama.
com o sol desperta – despojados de qualquer conforto. ali resistem à demora do tempo
de uma nova pastorícia – acolher. proteger e agasalhar o pastor e o seu rebanho
é a sua missão. palavras – os meus bolsos também são assim. abrigos graníticos. acolhem-me sempre que o corpo é açoitado pelo
desalento de não saber trazer às mãos o sentir em palavras – um deles. o da
direita. a sul do coração. guarda o tempo numa engrenagem fantástica: rodinhas
minúsculas. parafusinhos insignificantes. chapinhas retorcidas e outras coisas
que o meu saber não sabe descrever. tudo isto a fazer andar o tempo com uma
precisão inacreditável – é neste tempo que sofro pela falta das palavras – o
homem faz coisas incríveis – quantas mãos abençoou deus para purificar estas criaturas
com o dom de fazerem coisas genuinamente incríveis? quantas? e todos estes
homens divinos encurralados num bolso minúsculo a tomar conta do meu tempo.
relógio – no silêncio. feroz. posso ouvir um tic-tac. delicioso. suave. compassado.
intervala com o ritmo intenso do coração ansioso – tic. relógio. tac. coração.
tic. relógio. tac. coração e tudo isto numa cadência perfeita. melodiosa. a grandeza
do tempo no corpo a gastar vida tantas vezes inútil – e as mão a pedir papel.
muito papel. e um lápis com o dobro do meu tamanho. enorme. e dentro de mim
tudo agora é perfeito. tudo mesmo. tudo que pode ser feito com palavras
escritas – sou feito de gaivotas. de liberdade. de braços abertos ao vento. ao
tempo. e o meu melhor amigo. de braço dado. caminha comigo a passo. em palavras
nossas diz-me: sabes! há uma razão para o vento existir. belo – talvez haja – lembro-me
de no passado ler num qualquer livro que não recordo o nome que o belo é aquilo
que desespera – acredito. sinto-me desesperado – na mão a bengala. punho de
marfim. feita à mão por mais um par de mãos abençoadas. talvez haja um grupo de
deuses divididos por áreas de interesse. a criar homens com dons para tornar o
mundo mais belo. e todos aqueles que gosto desiludidos com tanta falta de
palavras – na cabeça uma cartola imponente. pomposa. importada do país de sua
majestade – sempre ouvi dizer que o primeiro cavalheiro nasceu nas ilhas
britânicas. não sei se é verdade mas para o caso também não é importante – para
perturbar este cavalheiro da escrita [desconhecido do homem que escreve] na sua
infindável busca da palavra mais-que-certa. a dúvida e a sua mais-que-perfeita
omnipresença em toda a criação. sou aflição – uma maldade autofágica para uma criatura
muda que tem como o mais belo dos prazeres a escrita. ingratidão
[1 de 4] – contínua
Sem comentários:
Enviar um comentário