radaelli
sou
– tu. escrita. és agora o
meu alimento – bem sei que as palavras estão sem sal. sem vinagre. sem
cozedura. sem a força do deus fogo. bem sei – trago dentro de mim umas quantas
frases feitas e não sei para que servem. recordações – amargurado. escrevo – a
mágoa alonga sempre o que escrevo – as palavras multiplicam-se na
proporcionalidade da mágoa – o que não era relevante é agora tudo o que me
resta de um tempo fértil – e eu em banho-maria. a levantar fervura de recordações
que nem sabia existirem – um homem com recordações pode morrer a qualquer momento
– tempo-sábio. aprendemos tanto com a soma dos dias – trezentos e sessenta e
cinco dias vezes cinquenta e dois isto é igual… não interessa. sei que é muito
tempo – depois. chega a prova dos nove e quase tudo é resto zero – nas contas
do tempo sobram unicamente as recordações. centésimas que fazem a diferença no
acerto das contas – agora sou feito de tempo e recordações – escrever é um ato
solitário – quando escrevo encontro o silêncio de todas as almas do mundo. cobrem-me
com uma proteção sagrada. e a mão escreve num silêncio divino. em estado puro.
sem pecado. sem remorsos. sem relógio. sem idade. sem nenhum dedo a julgar. e a
balança parada num equilíbrio justo: de um lado o homem errante. do outro. em
jeito de contrapeso. o perdão sobre a minha palavra de honra – sou feito de
tempo – o silêncio para quem escreve é a prova de que a vida existe – no
interior as palavras libertam-se finalmente das correntes. e o passado volta a
ser hoje – com a escrita consigo ser hoje o que fui no passado e então. como criança.
sou novamente feliz – ser feliz. alguém consegue ser feliz enquanto pensa?
–
só escrevo com a mão direita e a direito
estou
só. como gosto. e não tenho para quem ler esta folha. que ainda agora era
branca. bastou um leve mover de mão. exagerado. para sarrabiscar tudo o que
carrego numa saudade-medo – tenho medo de me esquecer – um dia esqueço-me –
sinto que as palavras são a única forma de não deixar esquecer este sou – podia
trazer outro sou para a escrita. mas não. trago este – não escolhemos o sou nem
o seu fruto. somos o que somos e não há forma de fugir às palavras que me
crescem nas mãos deste sou – da mesma forma que as macieiras dão maçãs e não
dão cerejas – sou este sou e nunca conseguirei ser outro – cada árvore dá o que
tem na raiz. e a minha raiz é esta. assim. com o corpo caído para norte e a mão
a teimar escrever para sul – escrevo torto por linhas direitas – escrevo para
dizer que existo. se não tivesse estas palavras como testemunhas. neste papel
que já foi árvore. ninguém saberia da
minha existência. talvez nem eu – neste tempo
grisalho. os sonhos são cada vez mais pequenos – quando escrevo faço-me existir.
lerem-me é saber que existo de verdade – escrevo logo existo
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