.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

23/10/2016

entrego-me a um café. fazem-me companhia?




imagem - google




entrego-me a um café. cremoso. gostoso. aromático e espesso. aprecio-o. tomo-lhe o paladar numa degustação inocente e silenciosa – deixo-o acontecer dentro de mim sem nenhum obstáculo entre o seu aroma e o meu silêncio – o corpo experimenta a cafeína como se fosse a primeira toma da manhã. não é – escurece o dia e o corpo – o coração acelera desorganizado. trémulo. sem perceber o motivo de tanto apego à vida. revolve-se. inquieta-se. cospe fantasmas teimosos. resgata memórias perdidas. ajusta-se a conflitos vergonhosos e resiste com voracidade a batimentos confusos – mais um pequeno gole. pequeníssimo. o tempo e o café tem que durar – a cafeína endurece a voz com uma energia forçada. esta fica rouca. fula. desconexa. a comer sílabas e ideias também. atabalhoa-se e profetiza ora raiva. ora resignação – quando a alma adoece o corpo desaparece – tal como os bêbados um corpo drogado diz sempre a verdade – e o café numa espera perfeita liberta um vapor de quem arde no seu interior – o silêncio [interior também] resiste num absolutismo implacável  – olho-me de cima a baixo e não me encontro –

estou perdido. não me descubro em lado nenhum a não ser na cor do café – olho-o com atenção. é negro. um negro absoluto – percebo que para lá deste negro não existe nada – o silêncio é agora. também. de um negro-café-absoluto. com aroma – recupero o ritmo cardíaco normal num sossego aromático – tudo me parece tão distante. tão do começo do mundo. dos dinossauros – extinguiram-se atropelados por um cometa idiota. dizem que vinha do lado do oriente. perdido e desorientado  caiu aqui como podia ter sido noutro lado qualquer – a partir desse dia nada foi igual. nasceu um novo mundo – eram bichos enormes. fortes. poderosos. temíveis. maiores que todas as plantações de cafeeiros – sucumbiram por inabilidade ao novo mundo – continuo distante de tudo que me rodeia – o corpo reclama mais droga. mais cafeína. mais descuido para matar a lucidez – só perdido me posso encontrar – talvez esteja na hora de me procurar. de dar duração à vida. existir – um homem só existe vivo – encosto-me a mim. entrelaço as mãos. o coração com as veias e prometo ao corpo um último gole de café quente. enquanto o armageddon. na minha janela.  se faz anunciar em forma de vento delicado –

que saudades de um cigarro. daquele fumo a deslizar para o inferno de um português suave – eu e o tabaco suaves – sempre me senti um homem suave quando me entregava ao silêncio – confisco-te as beatas. e assim ficava obrigado a entregar o fim de cada cigarro ao amigo confiscador – era o preço que pagava aquele que era portador de um maço de tabaco – não era o puto mais rico. tinha era mais sorte no acesso ao dinheiro – os amigos confiscaram-me a vida em pontas de cigarros – ainda os guardo dentro de mim – muitas vezes ouço sussurrar: há outro mundo para além da tua janela – são eles. tenho a certeza – uma vez amigo. amigo eterno – mas da minha janela já não se chega a lado nenhum – há um montão de coisas que acumulei enquanto fui vivendo: um livro da primária. uma espiga amarela pintada num fundo preto. uma coleção de cromos da bola. um colégio de padres onde o diabo encarnou. uma revolução de abril que nunca terminou. muitas conversas a entrarem pelas noites dentro. sexo bom e mau. correrias quase sempre para lá da realidade. tropeços sem explicação e mais umas quantas ninharias que prefiro não falar – velharias que perderam valor no tempo. gastaram-se na inutilidade e acabaram por tapar a janela de futilidades –  

resta-me o café. o seu aroma. e esta forma de estar sentado – estou de lado e já nada me embarra. tudo me passa ou pela frente ou pela parte de trás – no fundo da chávena aquecida a borra. enlameada de um negro pestilento. parece acabadinha de chegar de um navio negreiro – mas a borra nunca deixará de fazer parte do café por mais pestilenta que nos pareça aos olhos – sem borra não há café – perdido em conflitos interiores mexo e remexo o que me sobra na chávena com a força de um mandingo – mexer não me serve para nada. o que é borra borra fica – resta-me a janela e a borra do café tal e qual como é – do lado de fora da janela o tempo remexe-se [também] num vagar que não é o da mão que revolve a borra – mesmo tomado pela cafeina. pedrado. sei que o que me resta é a apenas esta borra. é ela que me faz viver – talvez esteja a exagerar e a questão possa ser analisada em base de uma doença mental. quem sabe o problema reside no sistema nervoso. ou em mim. intrinsecamente meu. nascido. criado e desenvolvido para me fazer crescer assim como sou. prenho de infinitos. preso a um cordão umbilical do tempo dos dinossauros –

mas para que serve esta conversa. para que serve falar destas coisas todas se o que interessa mesmo são as borras do café e o seu aroma – e eu a mexer. e o melhor do café tombado no fundo da minha garganta. morto por já não ser grão. e o aroma perdido para sempre numa viagem escura ao centro do corpo e o paladar esgotado pelo esforço de o manter perto da boca que é como quem diz. perto de quem me pode ouvir – já pouco resta do café agora misturado em ácidos estomacais. agita a chicote a minha única doença comprovada pela ciência: úlcera gástrica – a loucura nenhum médico foi capaz de a comprovar apesar de a médica de família já me ter dito que o meu maior problema não era o café mas sim o cérebro – talvez tenha razão – e lá estou eu com a colher para trás e para a frente como se tudo dependesse do sentido com que guio a mão. revirando tudo que é passado como se fosse uma borra gigante – estou aqui pedrado como se a vida fosse esta colher minúscula e tudo o que lhe vai dentro – mal-agradecido. enquanto mexo estou vivo e tenho amigos que já partiram. já não mexem colheres – que é feito do luís vieira? deve estar no céu. todos os meus amigos tem direito ao céu –

era um bom rapaz. gostava de ser guarda-redes. gostava de voar para as bolas. era calado mas maroto que chegasse – o tabaco e o pulmão levaram-no quando estava mais bonito do que nunca. era pai – todos os pais são bonitos – tenho saudades dele. tenho saudades daquela puberdade em que espreitava-mos pela janela do seu terraço a sua empregada a despir-se num vagar que nos levava à lua – ela sabia que as crianças são feitas de pressas – que sofrimento – e a descoberta de que afinal eramos mesmo machos – era ele malandro. a empregada ainda mais e eu valia pelos dois – que alegria. creio que foi a primeira mulher que vi nua. logo dum terraço de onde se via tanto da minha cidade – em frente a igreja do carmo badalava os sinos enquanto as pombas esvoaçavam pânico com o tocar das horas – só mais tarde percebi o pânico das horas – sou doido por relógios – ainda hoje gosto de janelas e continuo a ter uma casa com terraço onde as gaivotas que guardo em mim podem agarrar o vento noto. quente. criador de nuvens e sonhos cristalinos – já não creio voltar a ver nenhuma mulher nua por uma janela. mas também para que me interessa hoje ver uma mulher nua numa janela se elas andam nuas por todo lado –

eramos felizes com coisas do arco do diabo – os seus filhos devem estar grandes. tomara que sejam felizes e saibam que o pai era um miúdo fantástico – o pior da morte é partirmos sem deixar nada para que os outros possam entender o que por aqui andamos a fazer – é do que tenho medo. desde miúdo que tenho medo desta morte que nos rouba não a vida mas a nossa existência. a nossa missão enquanto homens com ambição. com consciência. com paixão. com uma vontade de abraçar o mundo e de o trazer para dentro do corpo – já não tenho peito para o mundo por mais pequeno que seja. estou completo – na minha janela o tempo corre com todos os vagares do mundo – quando o mundo é feliz o tempo corre sempre mais devagar. ninguém tem pressa de tomar um outro café quando o que acabamos de tomar ainda está amarrado ao céu da boca conservando todas as particularidades do local onde nasceu – eu nasci numa rua onde já não moro. nem eu nem nenhum dos meus amigos. nem o campo da feira. nem o campo dos padres. nem a casa de pasto luso brasileira. nem a celestinha da lusitana. nem o sr. capa batateiro que usava uma calça fazenda larga em que se notava os testículos a baterem-lhe no joelho –

não vivem ali mas vivem noutro sítio. uns no céu. outros noutras ruas com direito a céu – eu não vivo ali nem em nenhuma rua que me permita olhar o céu como o fazia com os meus amigos – já não tenho coragem de pedir o céu –  vivo no inferno à tanto tempo que já não seria capaz de me habituar às alturas – do café já só há restos da sua existência. quase não dá para um gole. ficaram ao menos as marcas na chávena para testemunhar que um dia existiu – uma nesga de sol atiça-me a vontade de viver – agarro – mas logo a deixo fugir – tudo se me escapa das mãos – o café está morto. como a maior parte de mim – remastiga o estomago que grita por já não aguentar mais a cafeina – não quero mais suplementos de vida – e a borra cada vez mais densa. pastosa. escura. melosa e o cheiro pestilento ao café retardado impulsiona a mão a mexer cada vez com mais força – toda esta força feita sem sentido. sem tino. demente. louca. ás vezes para a direita. às vezes para o fim do mundo –tudo se resume ao fundo de uma chávena e uma mão perdida em voltas que já não me levam a lado nenhum e a borra cada vez mais minha por tanto lhe mexer e todo eu sou disparate com tanta volta da colher e o corpo a pedir uma sombra para descansar – dói-me tudo e não sei o que é este tudo –

não sei nada. nunca soube nada e sempre procurei saber tudo – e a borra em agitação agarra-se à colher minúscula como se o paladar genuíno só existisse verdadeiramente nas borras do café – porque sou assim? não sei – e a janela grávida de mil e uma coisa que nunca fui capaz de aprender e a ilusão débil desaparecida num excremento de café – está na hora de me absolver e parar de mexer no que sobra de mim – e a borra cada vez mais escura. negra-morte. enquanto o pensamento me leva para a frente de um punhal que não para de me chamar para dentro de si – como te resisto se a borra um dia acabar? tudo o que escrevo é agora com uma mão. a outra amarra o último sopro de esperança – mais nada pode fugir do interior da chávena. não aguentava – e a colher de um lado para o outro ao encontro das paredes que já não separam o antes do desespero – tudo está misturado. perdido num infinito de reflexões que não encaixam com nada racional – só a chávena continua bonita. talvez seja da porcelana ou da luz que lhe entra pela janela – e o corpo a pedir contas de tudo que ficou para trás. de tudo que ficou por fazer. de tudo que não fui capaz de trazer para dentro de um futuro que fede como borra de café – estou cansado. muito cansado. quase a tombar com todas estas palavras que esperneiam como se o café pudesse acabar a qualquer momento – escrevo –

escrevo para permitir ao futuro arquivar com veracidade estas minhas divagações loucas. irracionais quase suicidas mas também gentis. delicadas. frágeis que me ajudam a conservar a coerência nesta degustação silenciosa – mas não adianta. já não vou a tempo de as escolher com cuidado. já não são minhas. são da cafeina. são desta loucura que mata cada segundo do que ainda mexo dentro de mim – a borra do café cada vez mais borra e o açúcar desaparecido de tanto mexer – um dia todas as palavras serão borra de café – não há terra que suporte nenhuma plantação de palavras. nem de propósitos. nem promessas. nem de coisa nenhuma. porque só pode nascer o que é semeado – no meu corpo  todas as palavras morrerão com o último gole de café – escrevo – escrevo porque são as palavras que me seguram na viagem para dentro do punhal – resisto. o aroma de café cada vez mais distante e a chávena a pedir à razão para não pingar para dentro da lâmina – e a borra cada vez mais seca. mais compacta enquanto o interior da chávena ainda mais preta e a porcelana a esgotar-se enquanto os dedos que a seguram agoniam num esforço final para a aguentar junto ao corpo – e a janela com o mundo todo do outro lado e eu cada vez com menos força para o visitar –


sou a cada momento mais desta chávena. desta borra. deste negro com cheiro a café que por ser borra não deixou de nascer num cafeeiro ao lado de milhões de grãos de café – resta-me a mão que amarra o último sonho. mantenho-a presa a um corpo que tem ainda dois olhos maiores que a janela – estou absolutamente parado. os livros acumulam-se para um novo mundo que não sei se verdadeiramente existe e a leitura adiada para uma próxima vida onde as chávenas do café sejam apenas chávenas e o café só café e os sonhos mais que sonhos e a força da mão que mexe as borras morra de cansaço e o negro parta como vidro e voe como gaivotas –

vou tomar mais um café. fazem-me companhia?  





Sem comentários:

Enviar um comentário