.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

16/10/2016

smile







não posso renegar a verdade – aqui estou. solitário. sozinho. retirado do mundo. entregue a uma luxúria de imagens repletas de sorrisos raros – as fotos chegam numa cadência de urgência enquanto os likes. atarefados e eufóricos. se perfilham pela ordem de chegada nas notificações. anunciando efusivamente a sua  presença a vermelho – estamos todos por cá  – são fotos incríveis. com mensagens ainda mais incríveis. numa alegria estonteante. quase a fazer mal. a doer. como droga alucinogénica. paranoica. cega – e todos os presentes confusos. assustados. apavorados por não saberem até onde poderá chegar esta felicidade – nunca nenhum artista tinha pintado os sorrisos assim. nunca. nem o de mona lisa – e tudo isto em redes de vai e vem. em partilhas feitas ao segundo. em velocidade estonteante. louca – e os sorrisos sempre em crescimento. satisfeitos. animados. a trazer prosperidade ao futuro –  quanto maior o sorriso maior a felicidade – as fotos não mentem. acredito eu que estou só. retirado do mundo e dos afetos de proximidade – e todos reagimos. sem pensar. num impulso idiota. numa sinceridade inquestionável. assinalamos a receção dos sorrisos com uma nova linguagem global. invariável. imutável e incorruptível: os smiles –

símbolos a representar vida. amizade. amor. proximidade. satisfação. dor. paixão. harmonia. acolhimento. revolta. ira. a rir pouco. a sorrir muito. a visionar campos de infinitos beijos. de abraços. de carinhos. e as mãos estendidas à procura de um toque não virtual. e o corpo a sentir um arrepio extra sensorial – somos amigos – o telemóvel vibra. chama por mim. e o som passou a uma tocata sem condições de fuga – atendo: quem fala? a máquina multifunções não tem o número memorizado – afinal é um amigo do tempo em que os  chamamentos eram na campainha da porta. dois toques sorrateiros. não fosse a mãe entrar em histeria e o proibisse de vir à rua. e logo respondia pelo vão das escadas: -- já desço – e eu sentado na soleira da porta. a queimar a demora. e o tempo a passar num vagar de meter medo – hoje como se diferencia um amigo do peito de um amigo tecnológico? digo então para facilitar esta nova comunicação: é um amigo mesmo amigo – que coisa mais louca. um amigo deveria ser sempre amigo e nunca necessitar de um pronome demonstrativo para confirmar uma amizade – agora temos os amigos do facebook. do instagram. do twitter do youtube e tudo isto numa trama intelectual. ligados a uma rede que não nos deixa ficar [mesmo] sozinhos. entretidos com a nossa companhia. conhecendo-nos um pouco melhor. apreciando-nos e retificando em silêncio os nosso barulhos interiores –

o tempo já não mete medo – ligo-me a mil amigos. e a outros que me perguntam se conheço e ainda a outros que talvez queira conhecer e isto tudo numa irracionalidade que por ser constante aos pouco se torna racional – e os amigos que não são mesmo amigos gostam da mesmas cores. da mesma moda. dos mesmos livros. dos mesmos hobbies e pensam igual. e a religião não interessa. e o sexo indefinido. ou só mulher. ou só homem. ou as duas coisas. e este é casado ou está numa relação em euforia ou agonia – gente igual. gémea mesmo. comprovada por uma máquina que só sabe falar verdade: estatística facebookiana – diferente mesmo só sou do amigo mesmo amigo – tudo que é cérebro é agora alimentado por fios que não vemos e que nos levam e trazem para sítios que nunca imaginávamos chegar – agora estou em Ibiza. de copo na mão e uma palhinha sai de um copo às cores e atravessa o planeta em fibra ótica. cheguei ao japão. e o peixe a ser cortado fininho por uma faca de samurai enquanto os pauzinhos levam à boca imaginação – atrás de mim uma gueixa segreda-me luxúria para o começo da noite – e a feed notícias do mundo a girar num ecrã plano. e um canguru perseguido por um aborígene. não. afinal é o aborígene que persegue o canguru –

todos nós perseguimos alguma coisa. e muita mais coisas nos persegue sem que saibamos – tudo isto a correr numa notícia de última hora. triste. muito triste. faz hoje anos que pavarotti nos deixou. e o avião do cristiano ronaldo teve um acidente. e o marido atirou ácido à ex-mulher enquanto a sogra era atropelada por um camião desgovernado na via de cintura interna – estou amargurado. tonto. também quase sou atropelado por uma última notícia não fosse um convite promiscuo para saltar para uma cama surreal – e aí estou. embrulhado em lençóis. feliz como nunca. ao lado de um par de pernas que nunca tinha sonhado. parecem-me as da sara tavares. e pela primeira vez sou infiel. e o corpo a suspirar por mais que apenas pernas. quero mais. afinal para que serve a tecnologia – estou esgotado. esta mulher não é para mim – e a minha vida recordada há um ano. vê as tuas memórias. e uma lágrima misturada com gratidão por estar vivo – e tudo nas mãos é velocidade estonteante. e quase nada tenho para fazer. a imaginação já não é minha é de um grupo de confecionadores de emoções. produção industrial. em série. e em constante atualização. e tudo me assenta na perfeição. como se soubessem tudo de mim. como alfaiates. e o giz a riscar as sobras. e a tesoura a ajustar tudo ao corpo enquanto o alinhavo marca numa certeza absoluta os contornos do corpo – bebo então para esquecer. preciso de um copo para matar esta angústia que verdadeiramente não sei de onde apareceu –

mando vir uma sangria. e mais uns quantos amigos virtuais. e os copos ao centro numa amizade que não é de amigo amigo: à tua saúde. enquanto a francesinha num molho cor de pêssego fumega da mesma forma que fumega a síria. e os mortos espalhados pelas ruínas feitas à bomba de um mundo cada vez mais terrorista – no facebook também – a alegria do estômago termina em agonia. enjoa e afoga-se de vez no mediterrâneo com gritos que são súplicas de refugiados que. de polegar no ar. não acenam. não. imploram ao mundo tecnológico que substitua os likes por botes salva-vidas – estou arrasado – também quero um like para mim. um enorme. com um dedo gigante a apontar para um salva-vidas que me salve do egocentrismo dos meus likes – que ingratidão – e mais um toque. e o telemóvel a vibrar e eu assustado. em pânico. descontrolado. não posso fazer esperar um amigo e o braço a correr com a voz para o ouvido: desculpa estava trinchar uma francesinha com uns amigos virtuais – e paro a vida para atender a urgência daquele apelo – todos os toques são importantes – de seguida mais um toque e adio o amor para a noite seguinte. e mais um toque e fecho o livro. e outro toque e digo que já não vale a pena sonhar. tudo acontece ao segundo e o futuro já não interessa o que interessa é o feed de notícias –

fecho tudo. eu também. o mundo todo. deixo ficar ao meu lado a desilusão em que a vida se tornou. não a minha vida que por ser minha não tem interesse para ser notícia mas a de um smile que chora. chora como uma criança – todos os smiles tem face de crianças. e eu desfeito em sofrimento saio disparado por wireless à procura do pokémon que magoou o smile das lágrimas – isto tudo sem abdicarmos de nenhum tempo porque deixamos de sentir este tempo eletrónico. gastámo-lo como se fosse inesgotável. como se aos dias pudéssemos somar mais tempo. e por cada ano gasto um mês extra. como se isto fosse um jogo de flippers e por cada centena de like`s um dia de bónus – estamos parados e andamos sem dar conta num tempo que deixamos de contar como tempo – mas conta – interrompemos o tempo verdadeiro. apanhamos o like e seguimos vidas que nunca serão a nossa vida – e aí vamos por uma estrada que nos leva a todo o lado para nunca chegar a lado nenhum – olhamos o universo num retângulo que dá luz. com sinais sonoros. e com música. e conta histórias feias e bonitas. verdadeiras ou falsas. de amor ou de sangue e tudo isto apenas com um tremor do braço. um click do dedo – mais um toque a pedir voz. atendemos e depressa nos dizem: manda mensagem. é mais fácil –

o mundo cada vez mais mudo. os dedos já não querem olhos porque conhecem as letras no escuro.  tudo cego no mundo real – que sofrimento – e os homens cerebrais do outro lado dos fios que não se vêem a dizerem que estás inibido de viver por vinte e quatro horas – eles fazem lei. julgam e ditam a pena – culpado – tudo isto porque mostraste as pernas da marylin monroe. o mamilo com piercing da janet jackson. duas lésbicas num amor proibido. um profeta parecido com allah. um poema de escárnio. e um nu do século quinze com um carimbo a censurar o belo – e a noite chega. tão noite como outra noite qualquer. o corpo preso a vibrações que agora já são choques elétricos. e o feed de notícias sem dormir caminha por ti com sinais sonoros de conveniência desumana – os olhos encostados a um sono em estado de alerta geral fazem o possível por descansar – são os novos guerreiros da tecnologia. enquanto um olho dorme o outro vigia o feed notícias – já nada te pesa no corpo. o passado está morto. e às tuas costas já não carregas amigos mesmo amigos. carregas um mundo que não é teu num padecimento transgénico  – estou só. devastado de tudo. de gente que não conheço e de mim também –

 sou agora este corpo tecnológico num mundo que só me aceita a rir. a falar com frases curtas. ou com pensamentos empacotados em caixilhos dourados de gente ilustre que não merecia este destino – e os sonhos cortados como se a vida fosse apenas estes clicks com o dedo para cima – força amigo tu vais conseguir. não desistas amigo. a vida um dia compensa-te. adoro-te. és lindo. beijinhos. gosto muito de ti – isto tudo rematado com um smille. um polegar na direção do paraíso e o inferno é descobrir uma verdade em tanta mentira – tudo o que digo é um like e o que não digo também e o que faço leva um like com um sorriso cada vez maior – um dia. irritado. recuso-me a por mais likes e digo: estou morto. morri. desapareci. cansei. suicidei-me com um cordão de likes – é então que milhões de likes emocionais aparecem para um último adeus.  o feed notícias chora. os dedos apontam para a terra. e os smiles das lágrimas esbarrotam-se em manifestações de dor e pranto – carpideiras em histeria dolorosa – os amigos que não são amigos colocam faixas pretas nos avatares. e milhares de emoções soltam lágrimas que nada molham – estamos  interligados a números de computação cruéis – somos então um IP entre janelas que nunca se fecham e promovem  uma contabilidade que sobrevive a uma bateria sempre em carga –

como tudo isto pode ser efémero – com a falta de power na bateria a morte pode acontecer a um qualquer momento – é então que o pânico acontece. falta o carregador. o isqueiro do automóvel está avariado. parece impossível mas não há nenhuma tomada elétrica num raio de cem metros. e o corpo a tremer. convulsões. vómitos. e uma ira que pode magoar de verdade enquanto a realidade está em fuga duma ressaca que pode levar à morte – são os novos toxicodependentes – estamos todos loucos – aqui estou a jogar com a vida. às vezes em ironia. outras. a tentar ser esperto. e lá chega mais um like sabichão – e passam carros e bicicletas com gente que já não pedala. e tudo sem margem de erro ou esquecimento. comandado por apitos que nos dizem: hoje o teu amigo mesmo amigo faz anos – tudo é feito à hora certa – tal como os comboios passam à hora certa. e os autocarros. e o metro. e as bicicletas. e os táxis. e a uber. e os transportes que não são urbanos. e os velhos com a solidão às costas. e os doentes em ambulâncias que já não gritam dor. e o povo sem se reconhecer. nem pela voz. nem pelos olhos. nem pelo seu jeito de ser. nem abraço. nem saudação. nem por nada. espera sentado pela sua vez a chegada de um destino que não controla –

ninguém tira os olhos do ecrã – por mais noite que seja há sempre um ex-humano parado num apeadeiro à espera de uma foto. de uma notícia. da morte de um amigo íntimo do mundo das fotos. de um smile. de um sorriso empacotado – e o like a cair como cai a urina. na sargeta. e logo de seguida um escarro e um cão de perna alçada espera também pela sua vez e o like coberto de um ácido que corrói o cérebro – as fotos sem flexibilidade. tiradas por um braço metálico. estendido para o fim do universo. sacam um último sorriso. e de repente. em total demência. o suicídio coletivo numa gargalhada fotográfica – o mundo afinal é todo feliz – infeliz só existo eu – só eu sei que estou triste. triste de morte com uma faca encostada à jugular e o coração a dizer: és o único que não tem vida – não me rio. não sorrio. e não digo que hoje o dia está lindo – não tenho trompete a tocar silêncio porque verdadeiramente não estou morto. estou apenas uma merda num mundo de merda – e assim termino esta crónica num sorriso de verdade e que por ter mais de duas linhas jamais terá direito a um like feliz



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