.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

09/05/2017

o corpo não morre todo à mesma hora





pintura - emanuele descanio




1.    o homem


um dia percebemos que o corpo já não é portador de uma consciência una.  integra e lúcida – divina ou não. esta consciência. ao longo do tempo foi obrigada a reordenar-se em fações temporais. numa existência quase sempre mutilada. imperfeita e feia – consciência é sinónimo de homem. da sua intimidade. de honra. de bondade. de vergonha. da sua inteligência. da perceção do que fez. do que ainda pode fazer. e da capacidade de criar novos estímulos para se refazer do erro – por último. e em base do que escreverei mais adiante. a consciência permite-nos pensar na morte e decidir se a vemos como a última fatalidade ou então. se a encaramos como “libertação total”. como diz mario quintana – esta verdade sobre a consciência altera todos os nossos relógios biológicos. o que era importante já não é. o que era para amar fica para esquecer. o que era coragem transfigurou-se em covardia. e o que era para o infinito é agora para um dia destes – chegou o momento de aplicar as rotinas de sobrevivência. tentar equilibrar o que se desequilibrou – o corpo só subsiste no mais perfeito equilíbrio entre a consciência do conhecimento e a consciência moral – na sua intimidade. inviolável por tão profunda. faz-se o homem que trazemos ao mundo das sensações. em doses prescritas e controladas por um ego que se alimenta do seu próprio conhecimento. numa realidade partilhada. que se decompõe entre o que se sente e o que permitimos saber do que se está a sentir. o que nos dói. e o que permitimos saber onde nos está a doer. o que nos corrompeu a fé. e o que permitimos saber de como fomos corrompidos – assim. chegamos a um corpo mergulhado num infinito de soluções. tantas quantos pensamentos. e o cérebro sempre a trabalhar para lhe dar uma razão para a sua existência – a vida numa partida de poker onde quem tem a melhor mão nem sempre ganha o jogo – neste baralho da vida ninguém fica de fora. e aqui estou eu com as cartas que escolhi. num jogo partilhado com o meu pequeno mundo. a jogar sem bluff. numa única mão. sem rei. sem duque. sem nada que me faça acreditar que ainda devo continuar em busca da sorte – azar. digo eu. tiveste até muita sorte. dizem outros. indiferença. para outros tantos – todos certos. todos errados. e todos julgam guardar em si todo o conhecimento do universo. e juram que sabem exaltamento o que cada corpo sente. e outros juram que não sentem apenas porque não querem sentir. e depois ainda há aqueles que dizem que só se sente porque se quer sentir – tudo certo. tudo errado. e tudo articulado em consciências interpessoais incompletas – o que é para um homem não é para mais nenhum. cada homem é único no seu nome. como escreve mia couto: cada homem é uma raça – dentro do corpo. num emaranhado de contradições. existimos nós. em balanços intermináveis. em juízos castigadores. em punições exemplares. em remorsos eternos. em arrependimentos agoniantes. em aflição desesperante. e a inteligência emocional a reparar os excessos com ética para que a consciência moral sobreviva a mais um dia



2.    a morte

o corpo morre aos bocados. em agonia. num falecimento silencioso. num desmembramento selvagem. é a morte em doses que nos mata por estágios da alma: hoje perdemos um sorriso. amanhã um abraço. depois um amigo. e mais outro. e ainda outro. e depois perdemos o céu. as nuvens. o destino. as gaivotas param de voar. e tudo lentamente a caminhar para um estado terminal consentido. num silêncio tão profundo. que tranquilamente. mata de ruído a consciência afetiva – aceita-se a resignação. aceita-se o fim – abrimos a janela mas o vento já não é brisa. há uma acalmia necrófaga. os abutres fabricados transmitem uma dimensão reduzida ao tempo. a morte anda no ar – aprendemos a escapar ao medo e aos poucos. sem que o corpo tenha compreendido. resignamo-nos à inevitabilidade do desfecho: a morte como libertação do pensamento – afinal nem tudo foi assim tão mau – a escuridão engole o sol. a determinação. a coragem. a audácia e o tino deixa de resistir à nostalgia – o sol também falece quando o corpo desiste – chega um cansaço estátua. e ali ficamos parados. hirtos. gelados. como se a morte nos quisesse mostrar que estar morto é imobilidade. é silêncio. é uma espiral de uma abdicação assombrada pelo fim de um ciclo – e segundo a segundo lá vai mais um trago da vida em aflição – no meio de quatro paredes. o corpo aceita finalmente o seu fim numa humanidade serena – deixo de falar e o silêncio toma o lugar de companhia. e tudo é feito sem voz. tudo é feito em pensamento. às vezes num maquiavelismo revoltoso. em grito desesperante. raivoso. assassino. sem piedade. e tudo o que resta de mim pelo chão. a rastejar. a contar os cantos às paredes. enquanto os pulmões ardem em dióxido de carbono – respiro fundo – as súplicas são agora deslumbramentos que se atrapalham no cérebro em busca de uma porta de emergência – não há portas de emergência. foram-se fechando sem que o racional desse conta – nada pode sair de dentro para fora. ninguém pode saber que se esta a desistir – e morre uma perna. e fica cada vez mais sentado e a cadeira já não é um acessório. é urgência. uma necessidade para iludir gente sã – contraio-me. encutinho-me. acolho-me numa posição fetal. a cabeça nos joelhos e as mãos num emaranhado de coisas. coisas que o corpo estendeu ao mundo e eu sem saber como explicar a este pequeno mundo estas coisas – aperto-me. cerro os olhos. apunhalo-me e nem uma gota de sangue. estou seco. mumificado e sem forças para chamar por um nome que me acuda – matem-me por favor – e os que apareciam aparecem menos. e aos poucos acabam por falecer primeiro do que eu – finalmente só – sentar-me é tudo o que me resta. sentado sou enorme. sentado ninguém percebe que se está a cair. sentado não estou rente ao chão. sentado tenho as mãos ao nível do coração. será este o último a render-se à consciência – só as cobras rastejam pela imundice do chão – e o corpo vai-se perdendo  numa aceitação cristã – perde a vista porque não há nada para recordar. perde os braços porque não quer ter saudade dos abraços. perde a fala porque não quer que ninguém o ouça. perde os gestos para que ninguém saiba que ainda não morreu por inteiro. e o que era simpatia reconhecida é agora uma trabalheira para enganar a quem nos quer ver no passado – o coração ora arranca. ora começa a trazer o que não quero que seja verdade – sente-se medo. e pergunto-me se será deste modo que o corpo desaparece todo à mesma hora – o coração continua a bater. e o sangue bombeado a soletrar em agonia: tens que aguentar. a consciência ainda luta – e uma lágrima pendurada no canto do olho a brilhar com saudade de um dia de natal. ou de um dia de anos. ou de um abraço. ou de um amigo. ou da família. meu deus. a família – deus se realmente existires perdoa-me – e abafo as recordações. as molduras. incendeio todas as fotos coloridas. mato a cor. e o rasto também – resiste o preto e branco – morre mais um pouco de resistência. e depois de coragem. e a esperança já foi toda. e já só resta a vergonha. e a maior parte do mundo sem entender nada de falecimentos – ninguém morre de uma única vez – e o punhal em cima da mesa a rasgar em facadas limpas as cartas de recomendação. uma a uma. e a vida em sobra resumida a uma única miséria: já acreditei. já existi – enquanto o corpo não morre todo á mesma hora o passado não se cansa de teimar o presente – o que resta do futuro sobrevive num punhado de abutres






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