1. o homem
um dia percebemos que o
corpo já não é portador de uma consciência una.
íntegra e lúcida – divina ou não. esta consciência. ao longo do tempo
foi obrigada a reordenar-se em fações temporais. numa existência quase sempre
mutilada. imperfeita e fraturada – consciência é sinónimo de homem. da sua
intimidade. de honra. de bondade. de vergonha. da sua inteligência. da perceção
do que fez. do que ainda pode fazer. e da capacidade de criar novos estímulos
para se reconstruir do erro – por último. e com base no que escreverei mais
adiante. a consciência permite-nos pensar na morte e decidir se a vemos como a
última fatalidade ou então. se a encaramos como “libertação total”. como diz
mário quintana – esta verdade sobre a consciência altera todos os nossos
relógios biológicos. o que era importante já não é. o que era para amar fica
para esquecer. o que era coragem transfigurou-se em covardia. e o que era para
eterno. é agora para um dia destes – chegou o momento de aplicar as rotinas de
sobrevivência. tentar equilibrar o que se desequilibrou – o corpo só subsiste
no equilíbrio absoluto entre a consciência do conhecimento e a consciência
moral – na sua intimidade. inviolável por tão profunda. constrói-se o homem que
trazemos ao mundo das sensações. em doses prescritas e controladas por um ego
que se alimenta do seu próprio conhecimento. numa realidade partilhada. que se
decompõe entre o que se sente e o que permitimos saber do que se está a sentir.
o que nos dói. e o que consentimos revelar sobre onde nos dói. o que nos
corrompeu a fé. e o que permitimos saber de como fomos corrompidos – assim.
chegamos a um corpo mergulhado num infinito de soluções. tantas quantos
pensamentos. e o cérebro sempre a trabalhar para lhe dar uma razão para a sua
existência – a vida é uma partida de poker onde quem tem a melhor mão nem
sempre leva a vitória – neste baralho da vida ninguém fica de fora. e aqui
estou eu com as cartas que escolhi. num jogo partilhado com o meu pequeno
mundo. jogando sem bluff. numa única mão. sem rei. sem duque. sem nada que me
convença de que ainda devo continuar a buscar a sorte – azar. digo eu. tiveste
até muita sorte. dizem outros. indiferença. para outros tantos – todos certos.
todos errados. e todos acreditam guardar em si todo o conhecimento do universo.
e juram que sabem exatamente o que cada corpo sente. e outros juram que não
sentem apenas porque não querem sentir. e depois há ainda aqueles que dizem que
só se sente porque se quer sentir – tudo certo. tudo errado. e tudo orquestrado
em consciências interpessoais incompletas – o que é para um homem não é para
mais nenhum. cada homem é único no seu nome. como escreve mia couto: “cada
homem é uma raça” – dentro do corpo. num emaranhado de contradições. existimos
nós. em balanços intermináveis. em juízos castigadores. em punições exemplares.
em remorsos eternos. em arrependimentos cortantes. em aflição que desesperam. e
a inteligência emocional a reparar os excessos com ética para que a consciência
moral resista por mais um dia
2. a morte
o corpo morre aos bocados.
em agonia. num falecimento silencioso. num desmembramento selvagem. é a morte
em doses que nos mata por estágios da alma: hoje perdemos um sorriso. amanhã um
abraço. depois um amigo. e mais outro. e ainda outro. até que se perde o céu.
as nuvens. o destino. as gaivotas param de voar. e tudo caminha lentamente para
um estado terminal consentido. num silêncio tão profundo que. paradoxalmente.
assassina de ruído a consciência afetiva – aceita-se a resignação. aceita-se o
fim – abrimos a janela. mas já não há brisa. apenas uma acalmia necrófaga. os
abutres fabricados transmitem uma dimensão reduzida ao tempo. a morte paira no
ar – aprendemos a escapar ao medo e aos poucos. sem que o corpo tenha
compreendido. resignamo-nos à inevitabilidade do desfecho: a morte como
libertação do pensamento – afinal nem tudo foi assim tão mau – a escuridão
engole o sol. a determinação. a coragem. a audácia. o discernimento deixa de resistir à nostalgia
– o sol também se apaga quando o corpo desiste – chega um cansaço de estátua. e
ali ficamos parados. hirtos. gelados. como se a morte quisesse provar que estar
morto é imobilidade. é silêncio. é uma espiral de renúncia assombrada pelo fim
de um ciclo – e segundo a segundo esvai-se mais um trago da vida em aflição –
no meio de quatro paredes. o corpo aceita finalmente o seu fim numa humanidade
serena – deixo de falar e o silêncio toma o lugar de companhia. tudo acontece
sem voz. tudo se desenrola em pensamento. às vezes num maquiavelismo revoltoso.
em grito desesperado. raivoso. impiedoso. assassino. e tudo o que resta de mim
pelo chão. a rastejar. a contar os cantos às paredes. enquanto os pulmões ardem
em dióxido de carbono – respiro fundo – as súplicas são agora deslumbramentos
que se atrapalham no cérebro em busca de uma porta de emergência – não há
portas de emergência. foram-se fechando sem que o racional desse conta – nada
pode sair de dentro para fora. ninguém pode saber que se está a desistir – e
morre uma perna. e o corpo afunda-se na cadeira que já não é acessório. mas
urgência. uma necessidade para iludir gente sã – contraio-me. encolho-me.
embrulho-me numa posição fetal. a cabeça nos joelhos e as mãos num emaranhado
de coisas. coisas que o corpo estendeu ao mundo e eu sem saber como explicar a
este pequeno mundo estas coisas – aperto-me. cerro os olhos. esfaqueio-me e nem
uma gota de sangue. estou seco. mumificado e sem forças para chamar por um nome
que me acuda – matem-me por favor – e os que apareciam aparecem menos. e aos
poucos acabam por falecer primeiro do que eu – finalmente só – sentar-me é tudo
o que me resta. sentado sou enorme. sentado ninguém percebe que me estou a
desfazer. sentado não toco no chão. sentado tenho as mãos ao nível do coração.
será este o último a render-se à consciência – só as cobras rastejam pela
imundice do chão – e o corpo vai-se perdendo numa aceitação cristã – perde a
vista porque não há nada para recordar. perde os braços porque não quer ter
saudade dos abraços. perde a fala porque não quer que ninguém o ouça. perde os
gestos para que ninguém saiba que ainda não morreu por inteiro. e o que era
simpatia reconhecida torna-se agora um fardo para enganar aqueles que nos
querem ver no passado – o coração ora arranca. ora começa a trazer o que não
quero que seja verdade – sente-se medo. e pergunto-me se será deste modo que o
corpo desaparece todo à mesma hora – o coração continua a bater. e o sangue
bombeado soletra em agonia: tens que aguentar. a consciência ainda luta – e uma
lágrima pendurada no canto do olho brilha. carregada de saudade. de um dia de
natal. de um dia de anos. de um abraço. de um amigo. da família. meu deus. a
família – deus. se realmente existires perdoa-me – e sufoco as recordações. as
molduras. incendeio todas as fotos coloridas. apago a cor. e o rasto também –
sobrevive apenas o preto e branco – morre mais um pouco de resistência. e
depois de coragem. e a esperança já foi toda. e já só resta a vergonha. e a
maior parte do mundo sem entender nada sobre falecimentos – ninguém morre de
uma só vez – e o punhal em cima da mesa rasga em facadas limpas as cartas de
recomendação. uma a uma. e a vida em sobra resumida a uma única miséria: já
acreditei. já existi – enquanto o corpo não morre todo à mesma hora. o passado
insiste em assombrar o presente – o que resta do futuro arrasta-se num punhado
de abutres •
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