.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

13/12/2022

pedras 7

 






[7 pedras. 7 dias da semana]


1.

perseu era meio homem meio deus. eu sou meio parvo meio escritor. que melhor comparsa poderia ter eu encontrado para me caracterizar? perseu era um guerreiro-herói. cortou a cabeça a medusa. acabando com a maldição de quem a olhasse nos olhos se transformasse em pedra – eu não sou guerreiro. nem herói. nem nunca transformei ninguém em pedra. mas acreditem. já arremessei palavras como se fossem pedras – mas hoje confesso-vos. estou enojado de tanto escrever sobre calhaus. e por via desse nojo. esta saga. 7 pedras. 7 dias da semana. terá hoje o seu fim. a bem. ou no desenrasca – no entanto. e como gosto de escrever. sei que todo o fim encerra em si um recomeço. e não tendo ainda acabado em definitivo este embaraçado de pedras. já fervilho pelo próximo desafio – e agora. do alto dos meus mais de vinte aniversários a passar-me para papel. e porque toda a escrita é autobiográfica. posso dizer-vos. continuo inconformado com o que escrevo. diria mesmo. zangado. profundamente zangado – escrever é a minha fantasia. e também o meu maior pesadelo – já ultrapassei mais de metade da minha esperança de vida. e a única cabeça que cortei… foi a minha – porém. nunca devo ter feito um grande trabalho. pois sempre que a corto. ela volta a pendurar-se no pescoço – o que me aborrece. é que volta como se nada tivesse acontecido. como se não tivesse culpa do que me fez ver. do que me fez fazer. e principalmente. do que me fez não fazer – “cabeça de vadio é hospedaria do diabo” – se os homens refletissem um pouco mais sobre sabedoria popular. a sua vereda não seria tão magoada – ao princípio. enquanto jovem e parvo. sempre quis acreditar que todos os caminhos iam dar a roma. não é verdade. alguns não nos levam a lado nenhum. entretém-nos para envelhecermos iludidos no tempo – a juventude é feita de escolhas. de carreiros e avenidas. de inconsciência. leviandade. erro. pouco cérebro. muita barriga. e também muita imortalidade – agora. recrimino-me e interrogo-me: porque fui por ali e não por acolá? se tivesse ido por ali talvez tivesse envelhecido devagarinho. e um homem envelhecido com o vagar do tempo sabe sempre o melhor caminho para chegar a roma – não tenho certeza de que se tivesse tomado outro caminho não me tornaria num ser humano bem pior. podia ter sido um mau pai. um mau filho. um assassino em série. um vagabundo. um viciado em drogas. um sem abrigo. um analfabeto. o que pode ser pior do que um analfabeto? nada – enfim. podia ser qualquer coisa bem mais trágica – bem sei que estou a dar exemplos extremos. os piores dos piores humanos. mas eu gosto de extremos. sem eles ficaria aqui a passar letra de um lado para o outro. a esticar palavra como quem estica fio – vivo agora uma dúvida permanente e arreliadora: o que serei eu se nada do que sou me parece digno de ser? existirá algo no que não sou? poderei ser um dia suficientemente bom com tanta coisa má? quais as incertezas que fazem de mim um iluminado. ou um louco à porta do manicómio? gostava de ter certezas. mas não tenho. talvez por isso viva constantemente um desassossego absoluto. como direi? um desassossego profundamente dorido. que nasce com o escuro e sobrevive com a alvorada – agora. quando não escrevo envelheço. e peço a santa bárbara não para me proteger das trovoadas. mas que encontre um raio que me ilumine o caminho das palavras – e aqui estou. sentado a escrever para não envelhecer. olhando pela minha janela o que resta do mundo. e mesmo que o céu tenha descido mais um pouco até mim. resisto escrevendo-me – sei agora que preciso de escrever algo que sobreviva ao meu tempo. ainda não fui capaz. mas acredito que um dia. envelhecendo um pouco mais. ficando mais lúcido. mais sábio. acabarei por o fazer – até no delírio é necessário acreditar – nada do que fui será futuro. mas não haverá futuro sem nada do que fui – envelhecer é a única forma de gastar o tempo – e aqui estou. a escrever. nesta encruzilhada. com o tempo de trás a teimar em passar para a frente. sem vagar. sem parar. sem piedade. às vezes imoral. carrasco. a informar com subtileza que o caminho é agora curto. e o corpo a dar de si. a cabeça a dar de si. sem saber se sonhar é doença. ou devaneio que vem de nascença – vivo este pavor. como se em mim nada mais pudesse acontecer de novo. dorido. num cotejamento animalesco com o dia de amanhã. anotando as rugas como glosas. dando pontos cruz com cada cabelo esbranquiçado. com cada noite amedrontada. com cada interrogação que encrosto no que temo – e o medo de não ser capaz a agigantar-se. a plantar-se nos ossos. nas articulações. nas falanges distais. e o cérebro aos tombos. a cair sem saber para onde. e os dedos cegos a tatear teclas. a escrever: já não serei capaz. já não sou eu. já não sou o rapaz de dezoito anos. nem o de trinta. muito menos o de quarenta. arrasto-me. medro para dentro. desapareço em olhos encovados num negro trágico e supremo – escrever é um terror. que se repete numa rotação que gira em volta da falta de tempo – que o universo me atire um cometa contra esta couraça de letras agoniadas… e me desfaça num ponto final

 

2.

preciso sobreviver ao passado. preciso viver o presente. preciso esconder-me do tempo. preciso de evadir-me deste corpo – tenho que sair de mim. mas se não souber ou puder. minto-me. finjo que saio. e mesmo fingindo. e sabendo que estou fingindo. tenho que acreditar que saí. e o que vejo e sinto. se não for real. não quero saber. é o mundo que criei e onde escrevo – e agora. o que quero mesmo que viva neste ponto final das pedras 7. sou eu. assim como sou. mesmo fingindo. porque para fingir eu tenho que ser qualquer coisa. qualquer coisa que pensei. vi. ou sonhei – e por cada segundo que vivo fingindo. ou sonhando. a minha torre de babel aproxima-se do universo – que nada em mim se desmorone. que nenhum pranto se faça pelo que não fui capaz. e que nenhuma estrela se apague no que de mim ficar – quando o corpo tiver sumido ao fogo. a alma habitar o universo. e o meu eu terreno sobreviver nos vindouros. então sei que escrevi mais do que uma palavra. mais do que uma inteligência. mais do que um par de olhos. mais do que um livro. e mesmo não sendo tudo o que senti. o que sofri. o que amei. saibam sobre palavra de honra. de que fui sempre mais do que as pedras que carreguei. fui também. e em absoluto… o espaço vazio entre elas – escrevo para continuar a viver em cada neto. em cada bisneto. em cada coração que bata como bate o meu – uma família não nasce repentinamente. demora quatro a cinco gerações a formar-se. a tornar-se forte. a aceitar-se tal como é. a conhecer os seus defeitos. as suas virtudes. a sua forma de caminhar. de gesticular. de olhar. de tocar. de dizer olá. de falar do que sente… porque o que sente faz parte de uma viagem que ninguém sabe onde começou – não podemos parar de sonhar. de resistir quando o corpo estiver cansado. de não resignar quando acreditamos que estamos certos. de equilibrar a balança porque só assim se equilibra a existência. de lutar até à exaustão. e de saber morrer como as árvores. de pé – uma família tem obrigação de recordar os que já partiram. de os lembrar com saudade. e de renovar diariamente os votos de lealdade ao seu nome – só assim seremos uma família absoluta. trazemos de todos um pouco. e de todos nos fizemos assim como somos. únicos  

 


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