caspar friedrich
nem
sei
se respire ou deite a alma ao lixo – estou assim. os dias a contar dentro de mim e eu sem saber que gaveta abrir – conto. conto tudo que pode ser contado: os botões da camisa. os dedos das mãos. as lâmpadas acesas e as que fundiram com o passar do tempo. conto pernas e sapatos cambados de tanto
caminhar. conto dias em que sorri e outros em que desapareci –
estou assim. pesaroso. lamentado e perdido. procuro-me nas razões. na sorte e no destino. às vezes sozinho. outras. junto companhia como quem não quer a
coisa – passo o tempo entretido a contar.
a vida não é uma conta que se faz de cabeça baixa. tudo que conto hoje não sei se dá para contar amanhã. é tudo tão volátil. tão fácil de quebrar – o futuro corre
sempre tão depressa – conto cada abril honrado. cada natal vivido e conto março como se fosse ontem – conto os
vivos. os que já não estão vivos e
os que estando vivos se fingem de mortos – um corpo aflito só resiste ao
descanso eterno pela saudade – conto pelos dedos para não me enganar e não
enganar o mundo das contas que se faz e desfaz consoante a vida passa – e eu
defronte das minhas gavetas sem saber contar o tempo que me resta para abrir
cada uma delas – conto comigo e quem comigo me ajudou a fazer as contas do
tempo. as contas não se fazem
sozinhas. dentro das minhas contas
há contas de outras contas que nunca poderei compensar – conto as vezes que amei sem saber que o amor se pode contar como
um conto: era uma vez uma princesa
linda. tão linda que é impossível
contar a sua formosura – e tudo que conto ligado por nós que não sei desatar. e os dedos gigantes enrodilham-se em
contas que não tem fim – conto as noites que passei sem dormir. conto os fantasmas que inventei e
outros que por serem invisíveis não sei contar. conto estrelas. conto
gaivotas e conto as rugas de uma face velha.
puída. a chamar morte. destino. horror – e as luzes do sótão acesas. a iluminar o mundo das contas e a faca entalada garganta a baixo
grita em desespero: noves fora zero. zero. igual a nada
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