.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

21/04/2025

parabéns. mas pouco – um desabafo contra o calendário

 


nota introdutória

não gosto de aniversários. nunca gostei. esta é apenas uma tentativa [ou desabafo] de entender o motivo — ou talvez de justificar. é um texto pessoal. escrito com liberdade e sem filtros. entre memórias. exageros. ironias e verdades mais ou semi-reveladas. uma viagem que começa no dia em que nasci e que ainda não acabou. não é para comover. nem para entreter. mas se alguém se reconhecer aqui. então talvez não esteja sozinho


nunca gostei de fazer anos. uns dias antes da data já começo a sentir-me inquieto. quero fugir do mundo. principalmente de quem sou. fazer como a avestruz. enfiar a cabeça na areia e fingir que estou hibernado para a verdade: como se não envelhecesse mais – também já me ocorreu fugir para mercúrio. não para a lua ou marte. estes ficam ao pé de casa. digo mercúrio porque está mais próximo do sol. sinto-me mais enxuto. com pensamentos mais aconchegados a mim. e aos outros também. e quando tiver saudades da minha casa. basta olhar para a viagem e talvez me consiga ver por um binóculo – mercúrio para mim não é um planeta. é um SPA celestial. onde vou a banhos. atiro-me para dentro da banheira granítica e cubro-me de água até o corpo tomá-la como sua. transformo-me numa tartaruga gigante de galápagos e passo a viver sem urgência – alcançar o melhor de mim é agora uma questão de tempo – já cheguei acreditar que era o planeta onde era possível lavar as feridas com mercurocromo. e que. com alguns dias de tratamento. regressava ao corpo purgado de todas as feridas do ano que deixava para trás – apenas desejei um aniversário. o da maior idade. nesse dia em que me tornei dono de mim. mesmo vivendo à custa do meu pai. prostrei-me inteirinho à porta da escola de condução serra. tirar a carta de condução seria o meu maior feito. grande não sei. mas tão desejado tenho a certeza – o meu pai já me tinha comprado um carro em segunda mão. um NSU TT. branco. pronto para competir comigo o tempo. tinha-o guardado na nossa casa da aldeia. só esperava pelo selo oficial do instituto da mobilidade e dos transportes. IMT que chegou no final de agosto – quem é que tinha um pai assim? ninguém. o meu pai vivia a minha juventude como se fosse a dele. talvez por não a ter tido. talvez por não ter envelhecido amargurado com a vida e a aceitar tal e qual como aconteceu – viver e sorrir era para ele mais do que suficiente – foi pena não ter envelhecido um pouquinho mais depressa. talvez ainda fosse a tempo de lhe dizer que era um pai excecional. o melhor. e que faria de tudo para ser o mais parecido com ele – depois desse aniversário não me lembro de mais nenhum que me fizesse tão feliz – em memória do trigésimo terceiro aniversário. e no meio da nostalgia pensei: cristo morreu com esta idade. é melhor pôr-me de soslaio. pode haver para aí um judas. sei que não valho trinta moedas. mas da forma como está a vida. vendem-me por tuta e meia a um qualquer herodes. e sem saber como. apareço pregado numa cruz. nem precisam de um carpinteiro para a fazer. já carrego a minha de nascença. só precisam de passar pelo leroy merlin para comprar uns pregos – que sejam ao menos de inox para não enferrujar. tenho pavor do tétano – mas não pensem que nunca tive um aniversário feliz. tive um. sim. sei que não foi coisa de monta. mas deixou-me momentaneamente feliz. um instante precioso no meio da minha história amarga com os aniversários – não sei com que idade aconteceu ao certo. mas vamos imaginar. eu gosto muito de imaginar coisas. e nesse gesto solene de soprar as velas. encontrei um contentamento improvável. eu explico: acreditava. na minha modéstia interior. que estava a comemorar a entrada nos quarenta e oito anos. e claro. triste. em agonia absoluta. sei apenas que tinha somado mais um ano. e foi nesse momento trágico de soprar as velas que se deu o contentamento. eu explico: acreditava. na minha modéstia interior. que estava a comemorar a entrada nos quarenta e oito anos. e claro. triste. em agonia absoluta. quase a morrer. os festeiros acendem as velas do bolo de aniversário para cantar os parabéns. alegrar-me um pouco. e é nesse preciso instante da combustão do fósforo. que consigo perceber que os números nas velas me indicavam menos um ano – foi quando me informaram. não fazes quarenta e oito. mas sim quarenta e sete – foi um grande momento. apoteótico. fiquei eufórico. afinal teria mais trezentos e sessenta e cinco dias com a idade que pensei já ter perdido – foi muito bom. e sim. foi um grande aniversário – há três anos fugi com a maria joão para o exterior do país. desliguei os telefones do mundo. e passei o dia todo deprimido. perdi-me dentro de mim e confesso que não foi fácil encontrar a saída para a realidade – o problema é que no regresso a casa foi levado a audiência familiar pelos filhos. noras e netos. e tal como num tribunal com jurados. não houve misericórdia para a minha disfunção com aniversários. fui considerado culpado por unanimidade. e proibido de reincidir na proeza. isto é. tenho que aguentar o vómito nostálgico do aniversário. e se este assolar à boca. o remédio é engolir. para fora é que não pode passar nada – ninguém me compreende. ninguém teve compaixão pelo meu sofrimento. é a minha cruz – hoje é então o dia do meu aniversário. e pensei. que podes fazer para te alegrar? não acredito que possa fazer grande coisa. mas comecei a pensar em como teria sido o dia da minha família quando nasci – a minha mãe deve ter pensado: estou metida num grande sarilho. pelo jeito que eu berrava de mau feitio. nasci com fome de tudo. não prometia nada de bom – e  renovou o pensamento: acabou de chegar e já protesta. mau feitio. não vai ser fácil aguentá-lo – o meu pai. que não via problema em nada. tudo se resolvia com dois dedos de conversa. deve ter-se interrogado pela primeira vez: este não vai com palratório. pelo ar enfunado que chegou creio que vamos ter problemas. talvez o melhor seja entregá-lo à caridade – não o fez. tramou-se. levou com a minha irreverência a vida toda. para não falar na vontade de ser dono de mim mesmo vivendo aos seus custos –era um jovem muito à frente para a época. só hoje é que surgem jovens com a mesma tara. protestar por tudo e por nada enquanto vivem na casa dos pais – os meus irmãos acredito que passaram o dia todo a agoniar. principalmente a minha irmã. que já tinha treze anos. e percebeu rapidamente que eu seria o seu maior problema. a sua adolescência seria preenchida a dar o biberão e mudar as fraldas – já o meu irmão. com onze anos. deve ter entrado em pânico e pensado: acabou o sossego. acabou o gira-discos. acabou o chá-chá-chá. acabaram os beatles. esta casa vai virar convento. tolerância zero para o barulho. nem um espirrozinho. não se pode acordar o menino – restou-me a lurdes. esta foi a única que me recebeu com um sorriso. percebeu rapidamente que enquanto tomasse conta de mim não cozinhava. não passava a ferro. muito menos lhe berravam. tinham medo de acordar o mau feitio – foi assim que cheguei ao mundo dos humanos com consciência. já era humano na barriga da minha mãe. mas não tinha consciência do que me estava reservado – então. essa minha irmã que quando nasci tinha mais treze anos. hoje. continua a garantir essa diferença de idade. o que é fantástico e faz muito feliz – mas o grave é que me ligou a dar os parabéns. o que me pôs logo o corpo a contorcer-se com dores de aniversário – atendi. e perguntei-lhe se estava a ligar por causa do meu aniversário. disse-me que sim. o que fui obrigado a responder-lhe: é preciso muita lata estares a ligar para dar os parabéns. sabes bem que não gosto. nunca gostei – mas é a minha irmã mais velha. e como já não sou irreverente. quer dizer. sou ainda um bocadinho. mas nada como antigamente. disse-lhe obrigado. mas escusavas de te maçar. e mais uma vez tentei explicar o porquê de não gostar de aniversários: o motivo é simples. mesmo sabendo que os sintomas têm vindo a piorar: sinto um gajo todo físico. com aqueles músculos que parecem inchados. como se tivessem sido picados por abelhas asiáticas. ou então enchidos com bomba de ar. como se fosse um pneu prestes a rebentar. em que os gajos ao sair de casa passam pela estação de serviço. dirigem-se à máquina de ar. enfiam o tubo na válvula e metem 40 bares de pressão. é quando olhas e vês aqueles gajos todos encurvados dos braços. com os músculos esgaçados à força nas mangas da t-shirt. em agonia – muito braço para pouca manga – mas voltando à história com a minha irmã. dizia-lhe que sinto um gajo todo musculado atrás de mim a empurrar-me para o precipício. e se no passado o energúmeno empurrava e eu não via perigo. sabia do precipício. mas não o via. agora é diferente. eu já consigo vê-lo. e por perceber que mais tarde ou mais cedo vou ter problemas com o tombo. quero adiá-lo o mais possível – bem enterro os pés no chão. mas mesmo assim o brutamontes insiste em empurrar-me. e se fosse só o empurrão. ainda goza comigo. está sempre ao meu ouvido a dizer: vais-te foder – e sim. um dia isso vai acabar por acontecer. mas talvez tenha uma surpresa… mando-o foder. e atiro-me eu de livre vontade à minha liberdade – quero ver com que cara é que ele vai ficar – e assim chego ao fim do meu aniversário. com a certeza de que nada seria sem a família e amigos – os amigos são cada vez mais importantes. estou na fase de os escolher bem. os melhores. serão aqueles que estarão mais próximos das fragilidades que o corpo irá acolher – já o escrevi. mas nunca é demais dizê-lo. não quero perder mais amigos. os que estão por perto que continuem por louvação. mas se tiverem que partir. que mo informem. ainda acredito que só não há solução para os defuntos – mas também tenho cada vez mais certezas: os erros em mim são persistentes. alguns irreparáveis. mas o que me torna um homem bom justifica que continuem por perto entretanto e enquanto a viagem dura o que entendo ser verdadeiramente importante. é manter ainda mais perto aqueles de quem gosto e me fazem ser o que sou: a família. filhos. noras e netos. estes num círculo apertadíssimo mais a minha MJ e a lurdes – num segundo anel circular a restante família. estes. são para mim uma honra enorme tê-los na linhagem – a minha vida é como escalar o monte everest – tal como a vida não é possível chegar ao cume de uma só viagem. tem que ser como etapas. um pouco como os aniversários. a família e os amigos não chegam todos de uma vez. é necessário esperar. conquistá-los. e instalá-los dentro de nós até eles se sentirem acolhidos – a penúltima base antes de atingir o cume do monte everest é o campo 4. também conhecido como south col – este acampamento situa-se a cerca de 7.920 metros de altitude e marca o início da chamada “zona da morte” – é aquela em que estou agora. a olhar para cima e perceber que estou cada vez mais perto do céu. onde o ar rarefeito e as condições extremas tornam a permanência prolongada perigosa – a família é o meu oxigénio. é por ela que teimo em chegar ao topo do meu mundo. e quando lá chegar. perceber que  deixei para trás tudo o que realmente importa. cada um deve trilhar o seu caminho com total liberdade – quando se envelhece um pouco mais a sociedade tem o seu padrão de envelhecimento. não se deixem ficar reféns dessa teia de hábitos e expectativas. envelheçam com ousadia. sejam corajosos para serem cada dia mais vocês. e menos os outros – tenho um amigo que me ensinou a mandar o mundo para o topo do mastro. ao princípio não foi fácil compreendê-lo. mas aos poucos a ideia foi cada vez mais aceite pela minha consciência verdadeira e livre. o que sempre ambicionei ser.  e agora já mando muita gente para o… topo do mastro – de mim quero apenas que fique uma memória serena de quem tentou ser inteiro – agora vou descansar deste aniversário. já só tenho trezentos e sessenta e quatro dias. e se passarem tão rápido como este. o drama repete-se em breve. abril é já ali – espero que o universo se alinhe e me castigue com mais crueldade – até 2026

 


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