.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

24/05/2025

 

 

1. código invisível

sei que cheguei ao dia de hoje. mas. na verdade. não sei se chegarei ao amanhã. a vida é uma tômbola. com prémios valiosos e ingratos. e fico a pensar: somos nós que escolhemos o prémio. ou será o prémio que nos escolhe? às vezes quero acreditar que o nosso destino já vem acertado com a hora de nascimento: nascemos. e na primeira golfada de ar recebemos um número em código de barras. como se. naquele instante. o percurso ficasse definido. e nos marcasse para sempre – a partir daquele momento já não podemos fazer mais nada. as virtudes e os defeitos estão inscritos no DNA do código – não há livre arbítrio. somos o que somos. e por mais que tentemos ser diferentes. não mais será possível – noutras ocasiões. acredito que somos nós a escolher o caminho. não todos. mas aqueles que já vêm associados aos nossos pais. afinal nós somos o somatório dos dois. por vezes somamos o melhor deles e acabamos por nos acrescentar. somos um pouco melhor do que a soma das partes. outras. somamos as partes piores e acabamos por apanhar uma ruela em vez de uma avenida. e os pais dizem: não sei a quem sai este miúdo – claro que para isso vai contribuir muito as opções que fazemos durante a vida. o meu lema é sempre este: faz o que está certo no momento certo. mais cedo ou mais tarde serás recompensado – é verdade que há quem faça asneiras a vida inteira e nada lhes aconteça. é o tal fator que não controlamos. às vezes é sorte. outras é um acaso cruel – ter o tempo a nosso favor nos momentos certos é muitas vezes a razão de estarmos vivos. vamos ao dentista por causa de uma cárie. e ele descobre um cancro ainda numa fase inicial. seis meses mais tarde estaríamos irremediavelmente mortos – a sorte é o pêndulo que faz com que o nosso coração bata certo mais tempo – mas muitas vezes interrogo-me. por que raio é que quem realmente merece viver parte sempre primeiro. enquanto os trastes ficam? nos dias em que estou no melhor de mim. como canta a marisa. acredito que é apenas por terem menos sorte. outras vezes. prefiro acreditar que essa gente menor consegue ludibriar o azar. e até passá-lo aos melhores. ladrões de sorte. que se alimentam da dos outros – lembro-me perfeitamente do meu tio joão. cinquenta anos. uma alma boa. inteligentíssimo. com uma paciência de santo para me aturar. tinha eu os meus vinte e poucos anos. revestido de sabedoria. vaidoso. arrogante. dono do mundo. e ele. sentado num sofá. sustentava toda a minha soberba com o seu shot de whisky. e gole a gole. lá me ia ouvindo no meio do meu ruído. aturando-me. como se já soubesse que a parvalhice da juventude passa com o tempo – e. de um dia para o outro. partiu. sem uma palavra. ficámos sem saber o que fazer. sem perguntas. sem respostas. só ficou o silêncio – gostamos sempre de dizer que deus o quis levar para junto de si. como se ele lhe desse atenção. era um homem livre. da esquerda marxista. e os afazeres de deus não eram coisa que o preocupasse – não sei se foi ter com ele. mas a família perdeu-o e eu senti a sua falta – depois. não haveria forma de escrever esta crónica sem o mencionar. o meu pai. um homem generoso. bondoso. digo. verdadeiramente bom. com uma capacidade única de empatia com quem quer que fosse. sempre com uma palavra gentil para oferecer. genuinamente preocupado com a sua família. com os seus colaboradores. honestíssimo. mesmo quando lhe custava caro. nunca se desviava do que era justo. presente para os mais vulneráveis. com uma ligação natural para compreender os mais novos. especialmente o seu filho. a seu lado não havia tristeza. ele era paz. era luz. morreu já com alguma idade. porque ninguém é novo aos setenta e três anos. mas para nós. já se despedira quatro anos antes. e nesses quatro anos. foi submetido ao impensável. agonizou até deixar de ser ele. e passou a ser apenas dor – foi muito difícil acompanhá-lo nesse período. confesso-vos. muitas vezes quis pôr fim àquela dor – não merecia – a doença foi tão cruel que nunca mais envelheci com elegância. envelheço com medo – mas há pouquíssimo dias uma pessoa que conheci recentemente. não posso dizer que era chegado. mas já tínhamos jantado juntos na companhia de amigos. com cinquenta anos. deitou-se e o coração pregou-lhe uma partida. parou – não fumava. não bebia. atleta. elegante. praticava desporto. tinha um comportamento exemplar. e por comportamento exemplar quero dizer: viver segundo as regras de uma vida saudável – só não sabia que precisava de ter mais cuidado com a própria sorte. talvez mais análises. mais exames. daquelas que os que prevaricam fazem sem que os justos saibam. e assim. talvez. ganhar mais tempo – ninguém merece morrer com cinquenta anos. principalmente quando um homem deixa uma filha menor. não há justiça. como se deixa uma mãe sozinha para acompanhar o crescimento de uma filha? quem lhe vai segurar a mão quando ela subir ao altar? quem a vai ver crescer? quem a vai proteger? nunca poderá ser o pai. nunca mais poderá dar um conselho. receber um último beijo. ou ouvir um 'gosto de ti'. não terá direito a uma despedida. nem mesmo a um 'até já' – neste mundo não basta fazer tudo certo. às vezes desperdiça-se o valor silencioso de cada dia. e os mais sensatos. por vezes. não têm tempo de perceber que algo não está certo

 

2. carolina e as ausências

eu não sou um homem crente. às vezes tento. mas não consigo. porque haveria deus de me dar atenção? porque haveria de eu ser diferente dos outros? se por cá ando é apenas por uma questão de sorte. ou pelo código de barras. ou talvez o meu lugar no nível seguinte ainda me esteja barrado. não ganhei os anéis douradas necessários. não sou o famoso ouriço azul. o sonic. ou não terminei a minha missão. algo que ainda falta cumprir. não sei. nem quero saber. não tenho a mala feita. ainda quero dar mais alguns abraços. cumprir a minha prova de vida com a minha família. com a minha nova neta carolina. nome de minha mãe. levar-lhe a minha voz. a pele. mostrar-lhe o sorriso. falar-lhe dos bisavós. de nós. do sentido da nossa família. mostrar-lhe o meu mundo. os lugares onde fui. e os que me faltaram ir por falta de tempo. trepar a uma amendoeira em flor e apontar-lhe as estrelas. uma é dela. gravei-a com um S grande. S de sorte. de saber. de sentido de responsabilidade. de sensibilidade. de sacrifício pelo que é certo. um S grande de sol. luz. porque todo o caminho tem de ser trilhado com luz – por isso não entendo porque leva deus as almas justas mais cedo. se deus nos ama. se nos perdoa tudo. se aos seus olhos nenhum vale mais do que outro. então qual será a razão para nos fazer sofrer tanto. porque deixa órfãos. filhos condenados a viver para sempre com a ausência inesperada dos seus protetores – crente ou não. o que peço é que a carolina cresça sempre resguardada e amparada pelos seus pais. que sejam o seu farol. iluminando-lhes o caminho com saber e ternura. e que assim a ajudem a tornar-se numa mulher adulta. feliz e realizada


 3. a flor que deixamos

e aqui cheguei. hoje. perdido em interrogações. cansado de procurar respostas em sítios onde só crescem dúvidas. mas há momentos. principalmente nos dias em que sou um bocadinho crente. quero acreditar que a nossa vida é um jogo. tipo o sonic. e que durante a vida vamos apanhando anéis. e quando atingimos uma certa quantidade. passamos para outro nível. é como se. ao nascer. entrássemos noutra etapa de existência. isto é. quando tivermos cumprido o percurso com distinção: ética firme. moral íntegra. fomos justos nas escolhas. generosos nos gestos. leais nas intenções. e amámos com verdade. com entrega. com tudo o que sabíamos dar. então. deus. ou o universo. ou no que acreditarmos. chama-nos para uma outra etapa – e partimos. ficamos saudade. fazemo-nos fotografia para sempre. calamos os gestos. os sorrisos. os abraços. e se tivermos vivido com inteireza. em certos momentos. voltamos à vida nas lágrimas – a recordação é a única lápide que não se apaga – depois. fico a pensar. mas há exceções. como a teresa de calcutá. mahatma gandhi ou chico xavier. e interrogo-me... por que razão permanecem essas pessoas mais tempo entre nós? não sei. ninguém sabe ao certo. mas quero acreditar que essas almas são… um tipo de pastores. que conduzem as ovelhas pelos prados. dão-lhe um propósito. protegem-nas dos perigos. e juntam-nas para que. unidas. se tornem mais fortes. que não se tresmalhem. que não se percam por caminhos erráticos – são estes guias de bondade na terra que nos conduzem. sem nos forçar ao lado certo das coisas – são eles que nos ajudam a encontrar a sorte mais facilmente. a corrigir caminhos. e muitas vezes. são também eles que nos ajudam a encontrar os companheiros certos para a nossa jornada de evolução na terra – sem as pessoas certas nunca seríamos quem somos. nunca deixaríamos saudades. ninguém sentiria a nossa falta na hora da despedida. ninguém choraria por nós – nós chegamos a este mundo como semente. e semente deixámos. o que levamos connosco é o sentimento profundo de que um dia fizemos uma flor sorrir. às vezes um jardim – nada mais

 


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