1. código
invisível
sei que cheguei ao
dia de hoje. mas. na verdade. não sei se chegarei ao amanhã. a vida é uma
tômbola. com prémios valiosos e ingratos. e fico a pensar: somos nós que
escolhemos o prémio. ou será o prémio que nos escolhe? às vezes quero acreditar
que o nosso destino já vem acertado com a hora de nascimento: nascemos. e na
primeira golfada de ar recebemos um número em código de barras. como se.
naquele instante. o percurso ficasse definido. e nos marcasse para sempre – a
partir daquele momento já não podemos fazer mais nada. as virtudes e os
defeitos estão inscritos no DNA do código – não há livre arbítrio. somos o que
somos. e por mais que tentemos ser diferentes. não mais será possível – noutras
ocasiões. acredito que somos nós a escolher o caminho. não todos. mas aqueles
que já vêm associados aos nossos pais. afinal nós somos o somatório dos dois. por
vezes somamos o melhor deles e acabamos por nos acrescentar. somos um pouco
melhor do que a soma das partes. outras. somamos as partes piores e acabamos
por apanhar uma ruela em vez de uma avenida. e os pais dizem: não sei a quem
sai este miúdo – claro que para isso vai contribuir muito as opções que fazemos
durante a vida. o meu lema é sempre este: faz o que está certo no momento
certo. mais cedo ou mais tarde serás recompensado – é verdade que há quem faça
asneiras a vida inteira e nada lhes aconteça. é o tal fator que não controlamos.
às vezes é sorte. outras é um acaso cruel –
ter o tempo a nosso favor nos momentos certos é muitas vezes a razão de
estarmos vivos. vamos ao dentista por causa de uma cárie. e ele descobre um
cancro ainda numa fase inicial. seis meses mais tarde estaríamos
irremediavelmente mortos – a sorte é o pêndulo que faz com que o nosso coração
bata certo mais tempo – mas muitas vezes interrogo-me. por que raio é que quem
realmente merece viver parte sempre primeiro. enquanto os trastes ficam? nos
dias em que estou no melhor de mim. como canta a marisa. acredito que é apenas
por terem menos sorte. outras vezes. prefiro acreditar que essa gente menor consegue
ludibriar o azar. e até passá-lo aos melhores. ladrões de sorte. que se
alimentam da dos outros – lembro-me perfeitamente do meu tio joão. cinquenta
anos. uma alma boa. inteligentíssimo. com uma paciência de santo para me
aturar. tinha eu os meus vinte e poucos anos. revestido de sabedoria. vaidoso.
arrogante. dono do mundo. e ele. sentado num sofá. sustentava toda a minha
soberba com o seu shot de whisky. e gole a gole. lá me ia ouvindo no meio do
meu ruído. aturando-me. como se já soubesse que a parvalhice da juventude passa
com o tempo – e. de um dia para o outro. partiu. sem uma palavra. ficámos sem
saber o que fazer. sem perguntas. sem respostas. só ficou o silêncio – gostamos
sempre de dizer que deus o quis levar para junto de si. como se ele lhe desse
atenção. era um homem livre. da esquerda marxista. e os afazeres de deus não
eram coisa que o preocupasse – não sei se foi ter com ele. mas a família
perdeu-o e eu senti a sua falta – depois. não haveria forma de escrever esta
crónica sem o mencionar. o meu pai. um homem generoso. bondoso. digo. verdadeiramente
bom. com uma capacidade única de empatia com quem quer que fosse. sempre com
uma palavra gentil para oferecer. genuinamente preocupado com a sua família.
com os seus colaboradores. honestíssimo. mesmo quando lhe custava caro. nunca
se desviava do que era justo. presente para os mais vulneráveis. com uma ligação
natural para compreender os mais novos. especialmente o seu filho. a seu lado
não havia tristeza. ele era paz. era luz. morreu já com alguma idade. porque
ninguém é novo aos setenta e três anos. mas para nós. já se despedira quatro
anos antes. e nesses quatro anos. foi submetido ao impensável. agonizou até
deixar de ser ele. e passou a ser apenas dor – foi muito difícil acompanhá-lo
nesse período. confesso-vos. muitas vezes quis pôr fim àquela dor – não merecia
– a doença foi tão cruel que nunca mais envelheci com elegância. envelheço com
medo – mas há pouquíssimo dias uma pessoa que conheci recentemente. não posso
dizer que era chegado. mas já tínhamos jantado juntos na companhia de amigos.
com cinquenta anos. deitou-se e o coração pregou-lhe uma partida. parou – não
fumava. não bebia. atleta. elegante. praticava desporto. tinha um comportamento
exemplar. e por comportamento exemplar quero dizer: viver segundo as regras de
uma vida saudável – só não sabia que precisava de ter mais cuidado com a
própria sorte. talvez mais análises. mais exames. daquelas que os que
prevaricam fazem sem que os justos saibam. e assim. talvez. ganhar mais tempo –
ninguém merece morrer com cinquenta anos. principalmente quando um homem deixa
uma filha menor. não há justiça. como se deixa uma mãe sozinha para acompanhar
o crescimento de uma filha? quem lhe vai segurar a mão quando ela subir ao
altar? quem a vai ver crescer? quem a vai proteger? nunca poderá ser o pai.
nunca mais poderá dar um conselho. receber um último beijo. ou ouvir um 'gosto
de ti'. não terá direito a uma despedida. nem mesmo a um 'até já' – neste mundo
não basta fazer tudo certo. às vezes desperdiça-se o valor silencioso de cada
dia. e os mais sensatos. por vezes. não têm tempo de perceber que algo não está
certo
2. carolina e as
ausências
eu não sou um homem
crente. às vezes tento. mas não consigo. porque haveria deus de me dar atenção?
porque haveria de eu ser diferente dos outros? se por cá ando é apenas por uma
questão de sorte. ou pelo código de barras. ou talvez o meu lugar no nível
seguinte ainda me esteja barrado. não ganhei os anéis douradas necessários. não
sou o famoso ouriço azul. o sonic. ou não terminei a minha missão. algo que
ainda falta cumprir. não sei. nem quero saber. não tenho a mala feita. ainda quero
dar mais alguns abraços. cumprir a minha prova de vida com a minha família. com
a minha nova neta carolina. nome de minha mãe. levar-lhe a minha voz. a pele. mostrar-lhe
o sorriso. falar-lhe dos bisavós. de nós. do sentido da nossa família. mostrar-lhe
o meu mundo. os lugares onde fui. e os que me faltaram ir por falta de tempo.
trepar a uma amendoeira em flor e apontar-lhe
as estrelas. uma é dela. gravei-a com um S grande. S de sorte. de saber. de
sentido de responsabilidade. de sensibilidade. de sacrifício pelo que é certo.
um S grande de sol. luz. porque todo o caminho tem de ser trilhado com luz – por
isso não entendo porque leva deus as almas justas mais cedo. se deus nos ama.
se nos perdoa tudo. se aos seus olhos nenhum vale mais do que outro. então qual
será a razão para nos fazer sofrer tanto. porque deixa órfãos. filhos condenados
a viver para sempre com a ausência inesperada dos seus protetores – crente ou
não. o que peço é que a carolina cresça sempre resguardada e amparada pelos
seus pais. que sejam o seu farol. iluminando-lhes o caminho com saber e
ternura. e que assim a ajudem a tornar-se numa mulher adulta. feliz e realizada
e aqui
cheguei. hoje. perdido em
interrogações. cansado de procurar respostas em sítios onde só crescem dúvidas.
mas há momentos. principalmente nos dias em que sou um bocadinho crente. quero
acreditar que a nossa vida é um jogo. tipo o sonic.
e que durante a vida vamos apanhando anéis. e quando atingimos uma certa
quantidade. passamos para outro nível. é como se. ao nascer. entrássemos noutra
etapa de existência. isto é. quando tivermos cumprido o percurso com distinção:
ética firme. moral íntegra. fomos justos nas escolhas. generosos nos gestos.
leais nas intenções. e amámos com verdade. com entrega. com tudo o que sabíamos
dar. então. deus. ou o universo. ou no que acreditarmos. chama-nos para uma
outra etapa – e partimos. ficamos saudade. fazemo-nos fotografia para sempre.
calamos os gestos. os sorrisos. os abraços. e se tivermos vivido com inteireza.
em certos momentos. voltamos à vida nas lágrimas – a recordação é a única
lápide que não se apaga – depois. fico a pensar. mas há exceções. como a teresa
de calcutá. mahatma gandhi ou chico xavier. e interrogo-me... por que razão
permanecem essas pessoas mais tempo entre nós? não sei. ninguém sabe ao certo.
mas quero acreditar que essas almas são… um tipo de pastores. que conduzem as
ovelhas pelos prados. dão-lhe um propósito. protegem-nas dos perigos. e
juntam-nas para que. unidas. se tornem mais fortes. que não se tresmalhem. que
não se percam por caminhos erráticos – são estes guias de bondade na terra que
nos conduzem. sem nos forçar ao lado certo das coisas – são eles que nos ajudam
a encontrar a sorte mais facilmente. a corrigir caminhos. e muitas vezes. são
também eles que nos ajudam a encontrar os companheiros certos para a nossa
jornada de evolução na terra – sem as pessoas certas nunca seríamos quem somos.
nunca deixaríamos saudades. ninguém sentiria a nossa falta na hora da despedida.
ninguém choraria por nós – nós chegamos a este mundo como semente. e semente
deixámos. o que levamos connosco é o sentimento profundo de que um dia fizemos
uma flor sorrir. às vezes um jardim – nada mais
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